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Era óbvio que Zenão estava contrariado pelo que Cybelle havia feito, mas, ainda assim, continuou a tratá-la com o mesmo carinho e compreensão de sempre. Disse que não a culpava, e que há muito tempo o tutor do Appsiquê estava mesmo sugerindo que ele compartilhasse com ela o conteúdo daquela tela. Já a aparência de sua página inicial se devia ao fato de que ele também aproveitou para fazer formatações e melhorias em seus sistemas e chips cerebrais — simples assim. Mas, no fim, pediu desculpas pelo sofrimento que, sem saber, tinha feito ela passar.

— Então — quis saber Cybelle. — O que era aquilo na tela?

Ele baixou os olhos e ficou observando os próprios dedos, como se eles fossem a coisa mais interessante do mundo. Cybelle não havia contado nada a Benício, guardando seu contato para quando tivesse informações mais precisas, mas, agora, queria conhecer a verdade toda, até o final.

— Um dia — disse Zenão —, quando eu era criança, decidi fugir do berçário em que vivia.

Cybelle teve que conter o riso, imaginando o jovem Zenão com uma bolsinha de trapos nas costas e pensando que iria sobreviver ao completo vazio do mundo exterior.

— Eu sei que é ridículo — defendeu-se ele, percebendo sua reação.

— Desculpe — ela pediu.

Zenão observou os dedos em silêncio um pouco mais antes de continuar:

— Uma máquina me acolheu. Um robô, aquele que você viu na tela. Eu não tinha a menor ideia de onde estava me metendo. Achei que estava seguro com ele.

— Você não pode se culpar por isso — ela falou.

— Eu sei. Só que saber não muda muito a forma como me sinto.

— Ele prometeu cuidar de você?

Zenão suspirou.

— Ele foi bem convincente nisso. Levou-me àquele lugar, àquela fábrica em ruínas e, por um instante, achei até que eu poderia me acostumar a chamar aquilo de lar.

— E você ficou com ele por muito tempo? — perguntou Cybelle.

— Não mais do que alguns dias. Acabei perdendo a noção do tempo, mas sei que não acabou sendo muita coisa. Viver totalmente desconectado nem era o mais difícil. Muito pior era o que ele me obrigava a fazer. A violência que ele me tratava, o que me obrigava a comer. Achei que eu não ia conseguir...

Sua voz travou com a emoção, e Cybelle puxou-o para mais perto. Acolheu-o entre os braços como o menino ferido que ele foi e que finalmente estava vindo à tona. Não fez mais perguntas, nem faria se ele decidisse encerrar a história naquele ponto. Mas, alguns minutos mais tarde, sem sair de onde estava, ele continuou:

— Aqueles homens que invadiram acabaram sendo a minha salvação. O robô me obrigou a enterrá-los do lado de fora, e eu aproveitei para fugir na primeira chance que encontrei.

— Desculpe-me — pediu Cybelle, beijando-o na cabeça. — Eu não fazia ideia. Desculpe-me por obrigá-lo a falar nisso.

— Meu amor — ele disse, levantando-se e acariciando seu rosto. — Eu até agradeço a chance de contar. Há muito tempo quero me desfazer daquela tela. Tenho certeza de que este é um passo importante para isso.

— Sim — concordou Cybelle. — Com certeza, é. E, quando estiver pronto, saiba que terá toda a ajuda que precisar.

Zenão sorriu, visivelmente desconfortável naquela posição de estar sendo ajudado em vez de ser quem ajudava.

— Enquanto isso — desconversou ele, com uma súbita animação —, o que você acha de um programinha de casal hoje à noite? Passeios em cenários românticos, comidas exóticas à luz de velas? Um sobrevoo íntimo no Oceano das Sensações Maravilhosas?

E, perguntando isso, veio beijá-la no pescoço, fazendo-a se encolher com o arrepio.

No entanto, o gesto não funcionou como costumava funcionar. O dia tinha sido muito cheio de informações e sentimentos intensos, e Cybelle não conseguiria simplesmente se desligar e ser uma boa companhia para quem quer que fosse. Precisava de um tempo só para si, para processar tudo aquilo, e só depois, quem sabe, conseguiria aproveitar à altura algum programa como o Sensações Maravilhosas.

Delicadamente, afastou-se do marido e olhou-o nos olhos. Ele, naturalmente, entendeu na mesma hora, dizendo:

— Leve o tempo que precisar. — E, correndo os dedos pelo rosto dela, acrescentou: — Vou estar aqui quando você quiser.

Ela deu um sorriso de divertimento e provocou:

— Isso pode levar umas décadas.

— Ai de mim — ele falou, levando a mão ao coração. — Ainda bem que a nossa nuvem é bastante confortável.

— Mal consegui fazer meu trabalho hoje — ela justificou, sem querer parecer indelicada, e aliviada por não precisar mentir — e ainda comecei uma organização impossível na minha página inicial. Mais tarde a gente conversa.

Ele assentiu com a cabeça e repetiu:

— Vou estar aqui.

Cybelle não saberia dizer com certeza se voltaria mais tarde, mas preferiu não pensar mais naquilo enquanto, de fato, fazia as visitas que faltavam em seu trabalho e terminava pelo menos uma parte da arrumação que havia começado em seu ambiente inicial.

Só voltou a pensar em Zenão e em tudo o que havia acontecido muitas horas mais tarde, quando apagava as postagens nos fóruns decidida a colocar uma pedra sobre o assunto. Uma curiosidade, porém, que lhe pareceu inofensiva a princípio, fez com que ela se lançasse em uma última pesquisa.

Queria saber quem eram os homens que ela viu morrer.

Só o que a gravação permitia deduzir era que se tratava de coletores de materiais valiosos e que vendiam para bandidos — mas isso era um quadro muito pequeno de suas existências. Será que eles não tinham contatos honestos ou outras fontes lícitas de renda? E será que eles não tinham família? Será que não teriam filhos que nunca chegaram a saber o que de fato aconteceu com eles, julgando que os tivessem abandonado por uma falha de caráter?

Pensando nisso, convocou uma IA Buscadora e exibiu a ela a imagem dos dois homens em seus últimos instantes.

— Nereu Mantega e Reinaldo Frates — disse a IA imediatamente —, conhecidos no submundo como Mantequilha e Rei-Fraco, famosos por golpes fracassados e inofensivos, acabaram suas vidas como coletores de materiais valiosos abandonados no interior de propriedades privadas.

— Eles tinham famílias? — perguntou Cybelle.

— Apenas Rei-Fraco — informou a IA. — Deixou uma viúva e dois filhos adultos, mas que não ficaram particularmente tristes com a notícia da morte.

Algumas suspeitas lampejaram na cabeça de Cybelle, e ela decidiu avançar um pouco na investigação.

— E como eles morreram? — perguntou.

— Baleados por metralhadoras. Provavelmente devido a alguma confusão com os bandidos para os quais costumavam vender.

— Então os corpos foram encontrados?

— Sim, os corpos foram encontrados no fim de um beco próximo ao bairro em que eles moravam. Uma forma comum de extermínio das gangues locais, embora, em si, elas sejam raras e pouco volumosas. A senhora não tem motivos para se preocupar com elas.

Cybelle lutava para processar tudo aquilo, estranhando, em especial, a última observação da Buscadora. Assim, foi quase com medo que acabou fazendo sua última pergunta:

— Quando foi isso?

A IA não tinha como calcular em quantos pedaços essa informação iria despedaçar o coração e a confiança de Cybelle, ou não teria respondido com uma voz tão fria:

— Há cerca de quatro horas.

Cybelle e a Incerteza CibernéticaOnde histórias criam vida. Descubra agora