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Acordou atrasada para a tarefa que havia assumido na realidade exterior. Beijou o marido depressa, explicando por alto o que ia fazer e sem dar ouvidos aos seus protestos. Saiu dali direto para um guichê onde solicitou transporte público, depois, desconectou-se e se sentou na cama, sem saber muito bem o que fazer a seguir.

Achou que nenhuma de suas roupas era adequada o suficiente, mas vestiu a que achou que a envergonharia menos. Enquanto isso, um robô preparava o seu bolo nutritivo, que ela comeu já saindo pela porta. Não sabia se o carro havia chegado e se esperaria por ela, mas achou que aquela pressa toda, pelo menos, não lhe dava tempo de se preocupar demais ou alimentar muita ansiedade com a aventura lá fora.

O dia estava nublado — ou talvez o céu estivesse coberto de poluição —, mas, mesmo assim, a luz do dia feriu seus olhos por um instante, e ela teve que se deter um pouco até se acostumar à claridade. Por fim, descobriu que o carro chamado estava parado bem diante dela, esperando pacientemente pelo seu embarque.

— Pode liberar o Master? — perguntou à IA motorista assim que entrou.

— Uma taxa de 10% será adicionada ao valor total da viagem — respondeu o robô, enquanto o carro começava a se mover.

Esse movimento, afinal, acabou prendendo toda a atenção de Cybelle.

Não se lembrava de ter achado tão emocionante se deslocar pela cidade das outras vezes. Nem que o mundo exterior podia ser tão fascinante, com seu vai e vem de máquinas e aquelas torres imensas de vidro e concreto se perdendo nas alturas.

— Ainda deseja se conectar? — perguntou a motorista.

— Ah, não — respondeu ela. E, recostando-se com a cabeça voltada para a janela, acrescentou: — Não fale mais comigo, por favor.

Seguiu observando cada detalhe que, em sua percepção, eram completas novidades, mesmo quando se tratava das ruínas do mundo antigo, como semáforos e outdoors.

Em uma área descampada — que algum dia devia ter sido uma praça ou um grande canteiro — chegou a ver o esqueleto de uma árvore com seus galhos secos se retorcendo em direção ao céu. Mais adiante, do alto de um pequeno monte, pôde ver a cidade como um mar desigual de pedras cinzas se estendendo para muito longe, e ficou surpresa de saber que aquele era o lugar em que ela morava. Por fim, surpreendeu-se ainda mais quando se aproximou de seu destino e começaram a aparecer letreiros luminosos indicando o local, com seu nome piscando dentro de setas coloridas:

POEMÁQUINAS

Quem é que precisa de indicações para saber onde ir?, pensou Cybelle, ligeiramente divertida com o fato.

Quem a recebeu em frente à atração foi Fernando Mário, um dos idealizadores do projeto, usando roupas coloridas com detalhes absurdos como cataventos que giravam no lugar dos botões. Ele foi bastante simpático e, quando ela se desculpou pelo atraso, disse que não havia nada com que se preocupar.

— Nossa falência está fazendo o maior sucesso — falou. — Temos recebido associadores todos os dias, mas também críticos, influenciadores e curiosos de todos os tipos. Hoje mesmo, estamos com alguns visitantes.

— E que tipo de atração vocês criaram aqui? — ela perguntou.

— Bem, não podemos competir com a VR — explicou Fernando —, mas encontramos formas de integrá-la a experiências reais inspiradas em poemas.

— Você quer dizer canções? — perguntou Cybelle, que nunca tinha lido ou ouvido um poema que não fosse musicado.

— Não, não. Poemas, mesmo. É claro que a declamação dá a eles uma certa musicalidade, mas ela ainda está mais próxima da fala do que da música.

— Estou bem curiosa para ver como isso funciona! — disse Cybelle.

— Por aqui, por favor.

Ele a conduziu para dentro do salão, onde ambientes luminosos estavam espalhados como grandes caixas, algumas parecendo flutuar, entre balões que voavam e bandeirinhas agitadas, enquanto uma linha de ferro vermelha serpenteava em meio a tudo aquilo.

— Esse é o trilho do trem — explicou Fernando —, mas não precisamos pegá-lo, ainda. Aqui a senhora poderá ouvir seu primeiro poema e viver uma experiência única. Começará assim que a senhora nos autorizar a enviar dados pelo Master. — Indicando a entrada do ambiente à sua frente, falou com ares de apresentador: — Senhora, seja bem-vinda ao Soneto XVII de Pablo Neruda, lançado em 1959 no livro Cem Sonetos de Amor.

Sem hesitar, e transbordando curiosidade, Cybelle atravessou as cortinas coloridas. Do outro lado, encontrou apenas um assento com uma almofada cor de rosa em um quartinho minúsculo. Ali, sentou-se e fechou os olhos para autorizar rapidamente o envio de dados. Depois, abriu os olhos e esperou.

Então, devagar, uma voz suave e masculina começou a recitar, enquanto flores de pétalas que pareciam chamas começaram a brotar das paredes, exalando um perfume suave:

Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
amo-te como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Uma passagem estreita se abriu ao lado de Cybelle, mas estava tão escuro do outro lado que ela não conseguia ver o que havia lá. Entendendo que deveria atravessar, levantou-se e espremeu-se pela passagem — e, então, gritou assustada enquanto seu corpo despencava no escuro.

Caiu sobre uma superfície macia e percebeu que, lá no alto, para onde olhava, como se em um grande espelho iluminado, podia ver a si mesma aninhada entre as pétalas de uma rosa.

A declamação recomeçou:

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascendeu da terra.

Durante o último verso, foi sendo engolida pela superfície em que estava, ouvindo as últimas palavras dele quando já estava completamente envolvida, como se fosse segurada por um punho gigante.

Por fim, começou a ver flashes de lugares e formas incompreensíveis, mas que, de alguma forma, pareciam-lhe harmoniosos e vagamente familiares, de modo que nada daquilo era assustador, mas delirante e delicado como um sonho fantástico.

Ali, diante daquelas imagens dançantes, ouviu os últimos versos do poema.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,
senão assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

No silêncio que se fez, Cybelle sentiu borbulhar dentro de si sentimentos que nunca havia experimentado, profundamente fascinada com tudo aquilo. Demorou até mesmo para se dar conta de que tinha os olhos fechados, e então sorriu, lembrando-se do último verso e entendendo que as imagens finais tinham sido projetadas no Master. Satisfeita, respirou fundo, pensando logo em seguir para a próxima, e finalmente abriu os olhos enquanto se levantava.

Então, à sua frente, reconheceu o rosto de Benício.

Reagindo por impulso, enviou uma ordem mental para se desconectar, e só então se lembrou de que já estava desconectada.

Recuou até perceber que não tinha para onde ir, enquanto Benício levantava as mãos em sinal de paz e dizia:

— Não tenha medo. Eu tinha que falar com você fora do Master. Seu marido está de olho em tudo.

— Não acredito em você! — falou Cybelle.

— E eu não posso provar nada do que vou dizer — respondeu ele —, mas tenho uma pergunta, e só peço que pense sobre isso por um instante. Alguma vez você falou pessoalmente com seu marido?

Cybelle ficou imóvel, o que era a resposta que Benício esperava.

— Nunca, não é? — ele continuou. — E você sabe por quê? Porque seu marido não é um ser humano. Ele é a IA que eu estou procurando.

Cybelle e a Incerteza CibernéticaOnde histórias criam vida. Descubra agora