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Um brilho azulado iluminava de baixo para cima o pequeno espaço onde os dois conversavam, dificultando um pouco a percepção de que estavam vivendo algo real. Ainda assim, de alguma forma, Cybelle sabia que o que Benício tinha dito era verdade.

— Você não trabalha no Departamento Público — falou, sem querer dar o braço a torcer tão rápido.

— Não, realmente não — admitiu ele. Ela não disse nada, e ele entendeu que era uma deixa para continuar. — Perseguir essa IA é só o que tenho feito a minha vida inteira. Ela tirou minha mãe de mim quando eu ainda era só uma criança.

— E por que ninguém mais está fazendo isso?

— Eu não sei. Talvez o Controle de IAs esteja acobertando os antigos donos da Rosares, mas talvez ela possa mesmo estar enganando todos eles. A verdade é que ela é muito boa em se esconder. Seu nome, originalmente, era Faustek, mas ela já se apresentou com muitos outros nomes e funções, em outros lugares, desde seu suposto desligamento.

Cybelle reparou em sua expressão e o tom de voz sinceros, em como aquilo parecia importante para ele e como mexia com seus sentimentos. Reparou também em como era bonito, e que aquela proximidade entre os dois em um ambiente tão pequeno começava a provocar reações em seu corpo que ela nunca havia experimentado. Mais assustada com aquilo do que qualquer outra coisa, agitou-se, procurando uma saída e dizendo:

— Quero sair daqui.

Benício assentiu e, puxando uma cortina atrás de si, abriu caminho para que ela saísse. Ela quase se jogou para fora, colocando-se de pé e respirando profundamente o ar renovado, sem o cheiro daquele homem. Ele veio em seguida, dizendo:

— Os donos daqui são meus amigos desde a escola. Já sua chefe foi bem mais difícil de convencer a me ajudar. Mas ela entendeu a situação, o que, com certeza, é um ponto a favor dela. Já estava preparado para partir para o suborno. — E, apontando em uma direção ali em frente, falou: — Venha. Tem um banco logo ali.

Os dois foram juntos até lá, onde se sentaram diante de um grande telão que mostrava o pôr do sol. Cybelle se esforçava para não olhar muito para Benício, ainda perturbada pela proximidade física, mas, afinal, foi ela mesma quem retomou a conversa.

— Então, essa IA — perguntou. — O que a deixou tão perigosa?

— A Rosares foi criada como um centro de pesquisa há quase um século — explicou Benício. — Sua intenção era estudar o amor e o potencial que ele tem como arma.

— O amor como arma? — estranhou ela.

— Basicamente, acabou se tornando uma pesquisa sobre a manipulação. Usar a ideia de amor é um modo bem eficaz de se controlar alguém, mas ele também pode ferir de outras formas e destruir as pessoas a um nível tão profundo que torna muito difícil para elas se reconstruírem.

Mais uma vez, a forma como ele dizia aquilo era tão carregada de sentimento que Cybelle se sentiu tocada. Rapidamente, então, encontrou presença de espírito para brincar:

— E o que aconteceu? As máquinas enlouqueceram de amor?

Benício sorriu.

— A questão é que o amor, na experiência humana, tem muitas nuances e está sempre misturado a outras coisas. Ideias, circunstâncias, instintos e até mesmo outros sentimentos. A quantidade de variáveis é muito grande, e elas costumam ser imprevisíveis. Isso, em um ambiente de pesquisa, é a receita certa para o fracasso.

— Ainda assim — lembrou Cybelle — você me disse que eles funcionaram por décadas.

— Sim — confirmou ele. — É claro que eles alcançaram muitos resultados, e colheram dados que são usados até hoje na programação de IAs de interação humana e, principalmente, nas estratégias de marketing. Mas além das limitações da pesquisa, eles costumavam ultrapassar alguns limites para poder realizá-la.

Cybelle e a Incerteza CibernéticaOnde histórias criam vida. Descubra agora