☆《4》☆

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Gabriel entrou em casa e foi recebido pelo mesmo silêncio de sempre. A casa estava escura, os sons abafados e o ar carregado de uma frieza constante. Não era a ausência de barulho que o incomodava, mas a ausência de algo mais... essencial. Às vezes, ele sentia que não existia. Seus pais quase nunca o enxergavam, exceto nos momentos em que ele fazia algo que não agradava. Ser ele mesmo, por exemplo, era motivo suficiente para ser ignorado ou repreendido.

Subiu as escadas lentamente, como quem não queria perturbar o ambiente imóvel ao seu redor. Ao passar pelo corredor, viu a luz da cozinha acesa, mas não se preocupou em ir até lá. Eles não vão notar, pensou. Eles nunca notam.

Chegando ao quarto, Gabriel fechou a porta atrás de si, trancando o mundo lá fora. Aquele era seu refúgio, o único lugar onde se sentia seguro para ser quem realmente era. O quarto era minimalista, quase vazio, exceto por uma cama, uma estante de livros, e o cavalete que dominava o centro do cômodo. Havia apenas um espelho, pequeno, colocado em um canto e coberto com um pano escuro. Gabriel odiava olhar para o próprio reflexo. Não conseguia acreditar que a pessoa que via era ele de verdade. O rosto no espelho não parecia ser o seu; era uma imagem distorcida, uma mentira que ele se recusava a aceitar.

Ele jogou a mochila na cama, amarrando o cabelo em um coque frouxo. Suas roupas góticas e rebeldes ainda estavam no fundo do armário, escondidas como um segredo proibido. Vestir-se como queria era um ato de liberdade, mas também de risco. Seus pais detestavam qualquer coisa que não se encaixasse em sua ideia de "normalidade". Se o vissem vestido daquele jeito, queimariam suas roupas e talvez até a própria identidade de Gabriel junto com elas, como se ele fosse um bruxo condenado.

Sem pensar muito, ele trocou suas roupas por algo mais delicado e sofisticado, algo que seus pais aprovariam. Havia um peso em sua mente, uma sensação sufocante de que ele estava sempre representando um papel. Mas ali, dentro do quarto, com a porta trancada e o silêncio como companhia, Gabriel podia respirar. Ainda bem que eles não me veem agora.

Caminhou até o cavalete onde uma tela branca o aguardava, silenciosa e desafiadora. O impulso de criar já estava queimando dentro dele desde que se despedira de Patrick naquela tarde. Pegou suas tintas e pincéis, ajustando a tela, enquanto seus pensamentos se enchiam da imagem de Patrick. Seu rosto, seus olhos... cada detalhe estava gravado na mente de Gabriel como uma fotografia vívida.

Patrick... o anjo caído.

Em sua mente, a imagem de Patrick era clara. Ele o via envolto em sombras, como uma figura etérea que flutuava entre mundos. Seus olhos verde-cinza eram profundos, refletindo segredos que ninguém mais podia ver. Os lábios finos, sempre levemente rosados, pareciam formados por uma perfeição acidental, quase como se a natureza tivesse moldado Patrick com a intenção de desafiá-lo. O cabelo escuro e desarrumado, caindo despreocupadamente sobre a testa, acrescentava um toque de rebeldia silenciosa.

Com essas imagens na cabeça, Gabriel deixou suas mãos se moverem. Seus dedos seguraram o pincel como uma extensão de sua própria mente, as cerdas misturando cores com precisão. Tons de azul profundo e preto, com toques de dourado para realçar os detalhes mais sutis. Ele trabalhou rápido, quase febril, sentindo o fluxo criativo tomar conta de si, como se a imagem de Patrick estivesse esperando para ser libertada daquela tela em branco.

Cada pincelada era como uma conversa entre ele e a tela, como se estivesse revelando a essência de Patrick, que o próprio garoto tentava esconder. Gabriel pintou os olhos com uma intensidade quase obsessiva, capturando o brilho melancólico que ele sabia que estava lá. Pintou os traços angulares do rosto de Patrick com um cuidado especial, dando à sua pele uma palidez sobrenatural, que contrastava com o fundo escuro.

Conforme o quadro tomava forma, Gabriel quase podia ver Patrick saindo da tela, como se sua criação fosse ganhar vida a qualquer momento. Ele o pintou de pé, envolto em sombras, mas com uma luz suave que caía sobre seu rosto, destacando os olhos profundos e misteriosos. As roupas, escuras e dramáticas, complementavam a figura de Patrick, como se ele pertencesse a outra era, algo que Gabriel imaginou com frequência: um ser fora de lugar, como ele próprio se sentia. Um anjo caído, perdido no mundo dos mortais.

Quando terminou, Gabriel deu um passo para trás, observando sua obra. Tão belo... pensou, enquanto um sorriso suave surgia em seus lábios. Ele sentiu um calor discreto se espalhar pelo peito. Era a mesma sensação que tivera ao lado de Patrick mais cedo, uma mistura de felicidade e admiração que ele não conseguia descrever. Havia algo em Patrick que o fascinava, algo que ele queria entender, e talvez fosse essa curiosidade que o motivava a capturar cada detalhe do garoto em sua pintura.

Gabriel olhou para o quadro, satisfeito com o resultado. Seus pais jamais entenderiam isso, pensou. Mas ele entendia. Ele via a beleza onde ninguém mais via. Ele via Patrick como um anjo caído, e essa imagem ficaria gravada na tela para sempre.

Ele se aproximou da janela, o sol já desaparecendo no horizonte, e observou o céu escurecer. Por um breve momento, sentiu-se em paz, como se o simples ato de pintar tivesse expulsado os pensamentos sombrios que costumavam rondar sua mente. Ali, no silêncio de seu quarto, com o retrato de Patrick ao seu lado, Gabriel encontrou um raro momento de tranquilidade.

Talvez o mundo não seja tão solitário, afinal.
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"Diante do silêncio de sua casa, Gabriel encontrou nas cores e formas de Patrick a única verdade que parecia fazer sentido: a beleza de alguém que, como ele, era invisível para o mundo, mas essencial em sua própria realidade."

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Espero q tenham gostado!

989 palavras.

☆•○《✨𝐵𝓇𝑜𝓀𝑒𝓃 𝑀𝒾𝓇𝓇𝑜𝓇𝓈✨》○•☆ Onde histórias criam vida. Descubra agora