Sexta, 6 de julho

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Era a primeira sexta das férias e, consequentemente, a primeira sexta que passaria ao lado de Renato, já que era o dia de home office. As minhas expectativas acabaram sendo somente isso mesmo: frutos do meu imaginário, por vezes, viajado demais. Como era de se esperar — por que eu pensei que seria diferente? —, Renato ficou enfurnado em seu escritório e com a porta fechada. Passeei um pouco com o Seu Antônio e cumpri todos os protocolos possíveis a ponto de não restar nada que não fosse deixar o velho em frente a televisão, enquanto eu jogava conversava fora com a Cecília pelo WhatsApp.

O dia estava mais silencioso do que o normal, nem mesmo o ruído da televisão ligada conseguia abafar o peso monótono do nada. Fui ao banheiro algumas vezes e, por fim, fiquei encarando o teto da sala por já estar cansado do que estava conversando com a Cecília. Era um teto tão limpo e intocado. Alguns blocos de gessos formavam esculturas geométricas, com traços finos e delicadamente proporcionais. 

Parecia ser tão bem planejado que, talvez, se eu olhasse durante muito tempo, conseguiria até mesmo ver um símbolo sendo formado a partir daquilo tudo, a começar pelo tímido círculo interno o outro mais para fora, além de um triângulo dentro do círculo menor e mais um que ultrapassava as duas demais circunferências. Também tinham pequenos círculos que praticamente rodeavam toda a figura. Pensava comigo se aquilo havia sido proposital ou não. O que eu mais tenho tempo agora é de pensar.

Inclusive, acordei meio estranho hoje devido a um pesadelo interminável que prejudicou a minha noite de sono. Eu estava preso a cordas numa sala escura. Não conseguia falar, mesmo que nada estivesse tampando a minha boca. Ao lado de mim, um baú aberto com poeira transbordando até o limite. Uma silhueta se esgueirava pela penumbra da sala e apenas me observava também em silêncio.

Eu queria gritar e sair dali, mas permanecia tão imóvel quanto o Seu Antônio. O único ruído que escutava era de um relógio. Meus olhos dançando ao ritmo do tique-taque ritmado, enquanto finalmente cedia à pressão da corda e descansava as mãos nas laterais amadeiradas da cadeira.

Fiquei assim durante um longo tempo até perceber a silhueta se arrastando até mim. Era nada mais do que um prolongamento da mesma penumbra que, agora, formava sombras disformes no reflexo da lâmpada e de minha pele. Sentia a presença da criatura me incendiar por dentro até o momento em que a brisa de sua respiração oscilou em meu pescoço, causando-me arrepios em todos os cantos do corpo.

Ao acordar, estava mais cansado do que no momento em que fora dormir no dia anterior. Fiquei com uma sensação estranha de algo entalado na garganta ao passo que meu corpo me puxava para baixo a cada passo que eu dava. Acho que, agora, eu estou melhor, mas fazia tempo que eu não tinha um pesadelo, ainda mais como esse.

Conferi a hora na tela do celular. 18H45. Estava quase chegando o momento de ir embora. Pelo fato de estar me sentindo tão cansado, o que eu mais queria era deitar na minha cama e dormir — mas, talvez, a possibilidade de dormir e ter novamente aquele pesadelo estivesse me causando um pouco de desconforto em certa medida.

Escutei passos leves e vagarosos vindos de dentro do escritório. Logo após, um bipe e o ruído da porta se abrindo. Renato estava todo agasalhado, até mais do que o Seu Antônio. Um cachecol cobria o pescoço, enquanto as peças de moletom não deixavam nenhum vestígio de pele à mostra. Ele deu alguns passos até chegar perto de mim e colocou uma das mãos em meu ombro, com um sorriso torto e desconcertado. Retirou logo em seguida.

— Eu tinha me esquecido do frio arredio que faz lá dentro do escritório. Mesmo desligando o ar-condicionado, parece que a temperatura continua a mesma e parada no tempo. Estática, como os ponteiros de um relógio estragado. Como você está? Correu tudo bem hoje? Está gostando do trabalho? Nada que você já não tivesse experienciado com a sua avó, não é? — Disse Renato, enquanto se desvencilhava do cachecol e da blusa de moletom, deixando antever uma marca no pescoço parecida com a cicatriz de Seu Antônio e o relógio de sempre no pulso direito.

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