Quinta, 12 de julho

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Eu estava na mesma sala escura dos pesadelos anteriores, mas, agora, suspenso no ar e, ao mesmo tempo, preso contra a parede pela estaca alojada em meu peito. Ao olhar para baixo, percebi que a estaca de madeira, na verdade, tinha sua irmã gêmea, o que resultava em uma escada amarronzada.

Seu Antônio me observava lá de baixo antes de pular da cadeira de rodas e começar a subir os degraus até chegar perto de meu corpo enjaulado pela madeira. Ele apenas fez um sinal de negação com a cabeça e balbuciou algumas palavras inteligíveis.

Em seguida, deu um tapa seco em meu rosto e aproximou seus lábios dos meus até beijá-los exasperadamente. "Era só você ter me matado. Agora é tarde demais. Nós dois vamos perecer para que a sombra que nos observa consiga prevalecer, de uma vez por todas. Ele vai vencer dessa vez e não tem mais volta".

— Miguel! O que aconteceu? Fala comigo! Abre os olhos.

— Mã-mãe?! Você também está aqui?

— Aqui onde? No seu quarto? Vim correndo quando ouvi os seus gritos. Você voltou a ter pesadelos?

— É, e parece que estão piorando. O de agora parecia tão real que eu conseguia sentir a dor latente em meu peito. Eu não sei o que está acontecendo.

Dessa vez, minha mãe diminuíra o tom de voz.

— Eu sei muito bem o que está acontecendo. Você está canalizando a sensibilidade que corre nas veias de nossa família. Lúcia também tinha pesadelos aterrorizantes quando mais nova, que descreviam de forma distorcida coisas que estavam prestes a acontecer. Ela previa o futuro pela mente, enquanto eu conseguia (e ainda consigo) sentir o véu do mundo pelo toque. Com a minha mão e...

— Mãe, era para você estar tentando me acalmar. Poderia, pelo menos uma vez na vida, agir como uma pessoa normal?

Retraiu o corpo ao ouvir o que eu acabara de dizer e se levantou da cama. Algo brilhava por entre seu rosto e eu poderia jurar que eram princípios de lágrimas. Antes de sair do quarto, voltou-se a mim e estendeu a mão.

— Posso, pelo menos, pegar na sua mão?

— Pra quê? Pra "ver" o meu futuro?

— Tudo bem, Miguel. Eu não sei como nossa relação chegou a esse ponto, mas eu te peço para confiar um pouco em mim. Nós éramos tão próximos antes e parecemos dois desconhecidos. Antes você me ouvia e conseguia entender ou... ou ao menos fingia que me entendia.

— Você sabe muito bem o motivo disso ter acontecido. Quando eu mais precisava de você, eu só ganhei silêncio em troca. Quem se distanciou foi você. Eu apenas continuei o que você começou.

— Miguel, eu só precisava de um tempo para assimilar...

— Você não demorou praticamente nada para "assimilar" a transição da Cecília. Por que comigo, o seu filho, seria tão diferente?

— Justamente por você ser meu filho e eu te querer bem. Mas eu não estava tentando assimilar só isso.

— Me querer bem? Não parece. Por favor, eu quero é voltar a dormir. Estou muito cansado. Apaga a luz quando sair do quarto.

Olhei no celular. Ainda eram 3h30 da manhã. Não conseguia mais pegar no sono. Tinha medo de ter mais um pesadelo como aquele. Sentia-me quente, como se estivesse em estado febril. Decidi fazer a coisa mais inconveniente do mundo: ligar para a minha tia em plena madrugada. Só a Lúcia conseguiria me ajudar naquele momento. Faria-me bem o simples ato de escutar a sua voz reconfortante.

Pelo incrível que pareça, ela me atendeu de primeira. Não parecia ter acabado de acordar – estava até com a voz relativamente enérgica. Pelo visto, estava em plantão no hospital. Eu disse tudo o que me lembrava sobre os últimos dias, desde sonhos ao comportamento estranho de Renato. Não sei se estava fazendo isso para que ela me entendesse ou para que eu pudesse me ouvir falando a respeito de tudo aquilo em alto e bom som.

— Oh, Miguelito, gostaria de estar aí do seu lado para te dar um abraço demorado. Sinceramente, eu acho que você não deve se preocupar. Você está passando por um momento delicado. É o início dos 18 anos e a transição entre o que você era e o que você pretende ser. Eu lembro muito bem como estava no final do ensino médio. Parecia uma bomba prestes a explodir e tudo ao meu redor me incomodava de uma forma mais intensa, vamos dizer assim. A diferença é a sua veia de artista, que tende a ir para o lado mais lúdico, o que não deixa de ser lindo se a gente for parar para pensar. Tudo vai ficar bem. Só tenha paciência com essa fase transitória. Sobre o Antônio, imagine se sentir um estorvo ao longo de vários e vários anos para o sobrinho que tanto ama? Como não ficar depressivo e ter pensamentos extremos? Ele é um ser humano como outro qualquer. Tem sentimentos e crises. O que você pode fazer é ajudá-lo o máximo que puder enquanto está fazendo esse bico na casa do Renato, assim como fez com sua avó. A sensação de ajudar uma pessoa que está sofrendo também pode servir como uma espécie de cura interna até para quem está ajudando. E não somente ele, não é? Renato está possivelmente passando por alguns momentos nada agradáveis depois de ter descoberto a doença que você disse ser terminal. E estou falando da cabeça mesmo. Ele deve estar um pouco perdido. E eu sei que você é contagiante, extrovertido e tem uma energia que esquenta qualquer lugar frio. Tenho certeza que, só pela sua presença, você fará bem aos dois.

— Obrigado pelas palavras, tia Lu. E me desculpe por ter ligado a essa hora da madrugada.

— Fique tranquilo. Eu nem estava dormindo, para começo de conversa. Hoje o trabalho foi intenso aqui no hospital, mais do que o normal. Algumas crianças estavam em situações delicadas. Estou justamente no meu intervalo, mas pode me ligar quando sentir vontade. Se eu não atender, você já sabe o motivo.

— Minha mãe, durante seus ataques de loucura, disse que você também tinha pesadelos quando era mais nova. É verdade?

— Possivelmente não da forma exagerada e mística que sua mãe contou, mas sim. Essa obsessão dela com a espiritualidade me tira do sério. Estava passando por alguns problemas na época. Fui à terapia e estou bem melhor. Bem melhor mesmo. Só voltei a ter pesadelos após a partida da Flora. Você sabe que nunca tive tanto contato assim com ela. Sua avó era somente afetuosa com você, só conseguia demonstrar o que sentia para você e um pouco para Alice. Comigo, ela sempre foi fria e distante. E não é nada interessante ao consideramos o fato de Alice e eu nunca termos conhecido o nosso pai. Não temos nem foto nem nada para saber como ele era fisicamente. Você tem ideia de como é para uma filha não conhecer nem o nome do próprio pai? E o motivo dele ter simplesmente desaparecido quando nós nem havíamos nascido ainda? É uma rejeição difícil de lidar, mas fica pior quando você precisa procurar afeto em outros lugares ao não ter a possibilidade de senti-lo com sua própria mãe. E o fato da Flora ter falecido tão repentinamente, mesmo com uma saúde invejável, mexeu um pouco comigo. Se antes existia um distanciamento, agora restou um vazio. E se antes era difícil localizar o meu pai por falta de informações, agora piorou mais ainda. Porque tudo o que poderíamos saber a respeito dele morreu com a Flora. Enfim, acho que aproveitei para desabafar um pouco. Com terapia e boas doses de vodka, fui criando formas de me reconectar comigo mesma.

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