66 - O Passado Doloroso (AYRTON SENNA)

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In Memoriam

"Eu não sou quem eu era antes de você entrar na minha vida, e agora que você se foi, não sei mais quem eu sou

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"Eu não sou quem eu era antes de você entrar na minha vida, e agora que você se foi, não sei mais quem eu sou."

***

A chuva continuava do lado de fora, escorrendo pela janela em finas cascatas, enquanto eu permanecia no silêncio da oficina. O som ritmado das gotas parecia sincronizar com meu coração, pesado como sempre ficava quando pensava em tudo o que trouxe minha vida até aqui. Não bastava o peso das expectativas de quem conhecia meu sobrenome verdadeiro; o passado da minha mãe era como um espectro que pairava sobre mim, cheio de perguntas não respondidas.

Minha mãe, era jornalista e sua paixão pela profissão era igualada apenas por sua determinação. Jovem, ambiciosa e com um senso de justiça que fazia questão de imprimir em tudo o que escrevia, ela sempre dizia que havia lutado para ser notada em um meio dominado por homens. Aos 25 anos, ela conseguiu uma oportunidade de cobrir o Grande Prêmio do Brasil. Era sua grande chance.

Ayrton Senna entrou na vida dela como uma colisão inevitável. Ela contou, certa vez, que ele não era apenas o piloto brilhante que todos veneravam; havia algo magnético nele, algo que transcendia sua fama.

— Quando ele olhava para você, parecia que nada mais existia — Rose me contou, o olhar perdido em lembranças. — Era desconcertante, mas ao mesmo tempo, impossível de ignorar.

O primeiro encontro deles aconteceu depois de uma coletiva de imprensa. Rose havia feito uma pergunta ousada sobre como Ayrton lidava com a pressão de representar não só a si mesmo, mas um país inteiro. Ele riu, mas a resposta foi direta e franca, como tudo o que vinha dele. Mais tarde, ele a procurou no meio da equipe de jornalistas.

— Você sempre faz perguntas tão difíceis? — ele brincou, com aquele sorriso que fazia qualquer um esquecer como se respirava.

Ela ficou vermelha, segundo suas próprias palavras, mas respondeu com uma frase igualmente espirituosa. Assim começou uma relação que floresceu nos bastidores de um esporte que era, ao mesmo tempo, glamoroso e cruel.

Os encontros eram intensos, escondidos de tudo e todos. Rose dizia que cada momento com ele era como viver uma vida inteira. Ele a encantava com histórias, filosofias e aquele olhar que parecia enxergar além do óbvio. Mas, por mais que houvesse paixão, a realidade sempre se impunha.

— Não posso oferecer mais do que isso — Ayrton lhe disse uma vez. — Meu mundo é complicado demais.

Rose sabia que ele estava certo. Mas isso não impediu que ela se apaixonasse profundamente por ele.

Foi numa noite tranquila, durante uma conversa no apartamento dele, que Ayrton mencionou a ideia pela primeira vez. Eles haviam falado sobre o futuro, sobre os riscos que ele corria em cada corrida, quando ele disse, quase casualmente:

— E se algo me acontecer, Rose?

Ela riu, achando que era uma das muitas reflexões filosóficas dele, mas Ayrton estava sério.

— Estou falando de um legado verdadeiro, algo que continue além de mim. Pensei em congelar material genético. Se eu morrer, você poderia usá-lo.

Rose ficou chocada. Para ela, era algo absurdo, impensável.

— Isso é uma loucura, Ayrton.

Ele apenas deu de ombros, o sorriso nos lábios suavizando a seriedade do assunto.

— Loucura é não pensar no futuro.

A conversa terminou ali, ou pelo menos foi o que ela pensou. O assunto voltou alguns meses depois, com um tom mais sério. Ayrton havia tomado providências legais, assinado documentos e deixado instruções específicas com seu advogado. Ele parecia certo de que aquilo era o certo a se fazer, mesmo que fosse apenas uma precaução.

Rose aceitou relutantemente, sem acreditar que precisaria sequer considerar a possibilidade.

Quando Ayrton morreu, o mundo desmoronou para Rose. Não havia como escapar do luto público, da enxurrada de notícias e homenagens. Mas ela enfrentou tudo sozinha. Não era parte oficial da vida dele; não havia espaço para o amor que viveram nos bastidores.

Poucas semanas após o acidente, o advogado de Ayrton a procurou. Ele entregou um envelope com os documentos e falou sobre a decisão que Ayrton havia tomado.

— Ele confiava em você — o advogado disse, com um olhar quase solidário. — A escolha é sua.

Rose passou meses e meses presa naquela escolha. Tinha o poder de trazer ao mundo uma criança que seria herdeira legítima de Ayrton, mas isso também significava colocar essa criança no centro de uma história que seria sempre maior do que ela.

— Não foi uma decisão fácil, nunca foi — ela me disse anos depois, num raro momento de sinceridade. — Mas, no final, eu senti que devia isso a ele.

E assim, eu nasci.

Minha infância foi marcada pelo silêncio de minha mãe e pela rejeição do lado paterno. Rose sempre fez o possível para me proteger do peso do nome Senna, mas, ironicamente, isso só aumentava o vazio.

Ela nunca foi cruel comigo, mas havia algo em seus olhos que me fazia sentir que eu era uma lembrança viva de tudo o que ela perdeu. Ela evitava falar de Ayrton e as poucas vezes que o nome dele surgia, era como se houvesse uma dor imensa que ela escondia.

— Você é o melhor de mim e dele — ela dizia, mas eu não sentia que ela acreditava nessas palavras.

Com oito anos, minha mãe tentou me aproximar da família Senna. Ela achava que eles poderiam preencher o vazio que ela não conseguia. Mas minha avó paterna foi tudo menos acolhedora.

— Isso não é o que Ayrton teria desejado — ouvi-a dizer num tom frio e impassível.

Aquelas palavras se cravaram em mim como uma cicatriz. Eu era tratada como uma intrusa, uma mancha na perfeição de uma família que preferia me ignorar.

Depois disso, Rose parou de tentar. Talvez por proteção, talvez por cansaço. As visitas cessaram e eu fui crescendo com a sensação de que nunca pertenci a lugar algum.

Rose tomou sua decisão e por isso eu existia. Mas o preço dessa escolha era algo que eu ainda lutava para entender e aceitar.

Eu suspirei, encarando o protótipo na minha frente. Talvez, um dia, eu fosse capaz de lidar com o peso do legado que Ayrton deixou para trás. Por enquanto, porém, as sombras do passado continuavam a me envolver, e eu não sabia como sair delas.

***

Continua...

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