Capítulo 3

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Malu

Dois dias se passaram desde o ataque, dias tranquilos e ao mesmo tempo extremamente corridos. Há anos uma visita tão importante não ia ao palácio, normalmente a família Burton é que se deslocava até o outro continente.
Aquilo tudo me tirava da minha zona de conforto, sempre fui brincalhona com tudo e todos, tinha um humor ácido e muito sarcástico. Não me importava com as consequências do dia seguinte, por isso saia as escondidas com meu fiel amigo e o mais improvável também, Rony... Okay, talvez não tão improvável.
O fato é que eu odiava nosso visitante antes mesmo de sua chegada, sentia falta da pessoa que sempre fui e que, por causa do estresse, agora era séria e muito irritadiça. Havia pouco tempo que me sentia assim, mas já me fazia falta aquela Malu verdadeira. Todos estavam assim, ninguém escapava. Cheguei a acreditar que fosse alguma coisa na água que causasse esse efeito colateral.

Aquele dia tinha começado da pior forma possível. Alice acordou verde como um abacate, passando mal do estômago. Tratei de cumprir meu dever como dama de companhia e amiga, mas a ingrata decidiu que desperdiçaria todo seu café da manhã, preparado com tanto amor, em minhas roupas. Raramente usava vestidos no dia-a-dia, e justamente naquele dia resolvi ser uma "dama". Essa já era uma prova viva do universo me dizendo que fico melhor de calças mesmo. Vestidos não combinam nada comigo, eles são para a realeza e eu não faço parte dela.
Após a cena do vômito, chamei uma das minhas colegas de trabalho para permanecer com a princesa enquanto eu levava os utensílios sujos da limpeza para a cozinha e trocava de roupa. Mais uma vez a lei de Murphy apareceu. Enquanto descia um dos lances de escada me distrai e pisei em falso. Rolei os últimos degraus da escada que faltavam, o balde com toda a sujeira saiu voando de minha mão e acabou com todo o brilho do piso branco e das paredes. Meu vestido sujo, combinado com o chão imundo e um belo tombo. A cereja do bolo foi perceber que, além dos guardas, Rony estava lá com alguns amigos que olhavam intrigados, ponderando se era seguro rir ou se seria necessário chamar direto o serviço funerário. Tive vontade de pedir a segunda opção, mas eles infelizmente escolheram a primeira ao perceberem que eu ainda me encontrava viva. Devido a muita intimidade que existia entre nós todos, já que frequentavamos os mesmos bares, shows e tudo o mais.

Percebendo meu semblante sério e meu olhar mortal, logo cessaram as gargalhadas. Prevendo diversos pedidos de desculpas dos "nobres cavalheiros" e sabendo que eu não tinha a menor paciência para isso naquele momento, apenas me levantei e segui meu caminho até a cozinha, deixando toda a bagunça como estava. Foda-se se eles queriam subir por aquela escada. O palácio é enorme, podem arranjar algo mais produtivo. Obviamente, avisei uma das empregadas que estava na cozinha o que havia acontecido e pedi para que ela fosse fazer a limpeza do local. Afinal, aquele nem era meu trabalho, fora apenas um pretexto para sair de perto da Maquina-de-vomito-Princesa-Alice-chatice-Burton-ambulante. E até o final do dia conseguiria permanecer longe.

Pode dizer que foi maldade, diga que sou uma vagabunda que não fez o mínimo de seu trabalho e ainda vai receber por isso. A questão é que foi o melhor a ser feito, se ficássemos juntas hoje, acabariamos nos matando e, modéstia parte, não quero ser presa por assassinar a Princesa.

Sentei-me ao pé de uma das árvores que enfeitavam o jardim Sul, que era o menos visitado. Apreciando a vegetação e pensando na situação em que se encontra a minha vida. Estagnada.
Nunca criei expectativas muito altas, pois sei que não há chances para grandes expedições e tudo mais, não para uma garota pobre. O palácio era incrível, nele consegui os melhores amigos que alguém poderia ter, praticamente uma família. Mas nunca me senti pertencente aquele lugar, eu queria mais. Não ouro ou riqueza alguma. O desejo por algo que nem mesmo eu conhecia me consumia por dentro, como a brasa que se transforma em chama e tão logo consome uma floresta inteira. Aquela chama estava dentro de mim, vinha do meu coração e se espalhava por todo o corpo. Uma sensação estranha, agonizante e aconchegante. Cada um dos meus sentidos estava em alerta para a chegada desse novo. Uma voz sussurrou ao meu ouvido:
'Em breve, talvez seja essa a visita que espera.'
Eu podia estar ficando louca de vez, mas o que soube foi que a minha visita não seria exatamente uma pessoa, um membro do parlamento europeu, e sim uma novidade. Aquela novidade que esperei por tanto tempo. Aquela que eu não fazia a menor ideia de qual era, mas em breve ela estaria comigo e eu saberia. Me agarrava a isso tanto quanto uma criança se agarra ao doce que a mãe tenta tirar de suas mãos.

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Estava tão inerte em meus pensamentos e tão exausta que acabei por dormir no chão mesmo. Acordei em posição fetal, completamente contorcida por culpa da enorme raiz que se encontrava em baixo da minha barriga.

Ouvi vários passos contra os cascalhos da trilha que dava para a pequena floresta particular em que me encontrava e logo pude ouvir também as vozes de Ronald e seus queridos amigos, que para mim já haviam morrido a tempos. Ainda sonolenta pude notar que falavam sobre mim e não demorou mais de meio segundo para saber que me procuravam.
Subi o mais rápido que pude a árvore que antes fora minha 'cama'. O prazer em frustra-los já tomava conta de todo o meu ser, eles realmente sabiam onde me encontrar.

-Ela sempre vem aqui.- ouvi a voz melodiosamente mais fina de Will.

-Últimamente todos tem andado irritados por aqui, não me admira a reação dela. Ter que passar 24 horas por dia com a minha irmã também tira qualquer um dos eixos.- pude ver os cabelos negros de Ronald passarem através dos vãos que os galhos formavam. Eles me veriam se continuasse ali, por isso subi mais alguns galhos silenciosamente.

-Diga que me ofereço a passar os dias com sua irmã, não seria sacrifício algum. Nunca vi uma mulher tão maravilhosa!- identifiquei Ian assim que se pôs a falar com sua voz grave e sacana. Se ele soubesse o quanto a pequena princesa Alice fica abalada quando ele está por perto...

Algo me tirou a atenção da conversa que se seguia entre os rapazes. Um comboio de carros vinha na direção do palácio pela grande pista de pouso que contornava a montanha. Todos com bandeiras da família real original, a do Reino Unido. A maldita visita chegou.

01/09/2015

O Futuro da NaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora