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               O cachimbo já está pronto e em cima da cabeceira. O velho o havia preparado antes de tomar banho e agora penteia, com um pente de mão desgastado, seus fiapos de cabelo branco. Ao olhar o espelho, percebe que sua barba continua com as mesmas falhas de sua juventude, deixando partes de seu rosto sem pelo e outras partes com pequenos pelos brancos.

               Isso já se tornou normal para ele há muito tempo.

               O velho termina de pentear seu cabelo e sai do banheiro abotoando sua camisa xadrez, esboçando um sorriso ao se lembrar de que, quando criança, sua mãe vivia dizendo que camisa xadrez era coisa de velho. Pega o cachimbo da cabeceira, o isqueiro e caminha, sossegadamente, até a sua eterna companheira que se encontra na varanda. Ao chegar, encontra-a balançando lentamente por culpa do vento doce e incessante que sopra ali. Seu balanço cadenciado em harmonia com um rangido irritante desperta no velho uma sensação de paz, tranquilidade e pertencimento.

               Sua cadeira de balanço é a sua casa.

               Ele levanta suas calças, acende o cachimbo e senta na cadeira, avistando um grupo de crianças se aproximando. "Só estavam esperando eu sentar", ele pensa, sorrindo e assoprando a fumaça do fumo. Já consegue reconhecer de longe vários rostos que vêm, todas as noites, ouvir suas histórias. Contudo, não se lembra do nome de nenhum.

               As crianças chegam e começam a sentar, empurrando umas às outras, perto do velho, enquanto as mais velhas se ajeitam no parapeito da varanda de entrada.

               - Pera aí, macho, esse lugar é meu.

               - Deixe de mentira! Tem nem teu nome aqui.

               - E é pra escrever, é? - exclamou a criança, ameaçando bater no colega.

               - Bate em mim! Quero ver se tu é homi!

               - Armaria, deixa de viçagem aí vocês dois. Se aquietem aí - brigou um terceiro, coçando a barriga freneticamente.

               - Ai vai o coça-coça! Tu num tem moral aqui não, zé doidim!

               - Diz aí quem é que tem, então!

               O velho, visivelmente irritado - e internamente dando gargalhadas -, bate o pé com força no chão, fazendo que todos fiquem em silêncio. Ele suga seu cachimbo e assopra a fumaça para outro lado, a fim de não jogar nas crianças. Essa é a hora que muitos deles aguardam o dia todo. A hora em que o velho conta uma de suas histórias.

               - Se for história repetida de novo, eu pego o beco - disse um deles, abraçando os joelhos.

               - Verdade, Seu Alípio! Já tá bom de história repetida - disse uma das meninas.

               - Eu já sei a história do macaco gigante toda decorada.

               Alípio pensou, decidindo se conta ou não sua maior história. A ânsia de ouvir uma história incrível transparece no rosto de cada uma desses pequenos. Ele pega seu cachimbo e dá uma última baforada.

               - Tem uma que eu nunca contei para ninguém. Querem ouvir? - disse o velho, olhando para a plantação do lado de sua casa.

               - Sim! - exclamaram quase todos.

               - Ora, preciso nem responder - disse um dos meninos, indignado.

               - Deixa de ignorância, Abraão Lincoln! - brigou um de seus colegas.

               O velho coça a cabeça, ajeita-se na cadeira e respira profundamente. Ele mentira. Já havia contado centenas de vezes essa história, de inúmeras maneiras diferentes. O problema é que nunca acreditavam. Passaram-se tantos anos que ele mesmo se questiona, às vezes, se tudo aquilo foi real.

               - Certo. Por onde começo? Acho que eu tinha 12 ou 13 anos...


A Lenda do Calango VoadorOnde histórias criam vida. Descubra agora