III

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               Os dois garotos caminham pela estrada de areia. O clima quente e muito iluminado impede que eles abram os olhos completamente ou que usem uma camisa fechada. As camisetas que os dois estão vestindo nasceram brancas e evoluíram para um amarelo escuro com pequenos furos. Os chinelos mal impedem que os pés pequenos dos garotos toquem o chão quente. Nada além do normal.

                - Quer que eu te explique quantas vezes? – perguntou Adam, impacientemente.

                - Até tu resolver tirar essa mandioca da boca e me contar direito essa história – respondeu Alípio, dando um tapa na cabeça de Adam.

                - Macho, ó a violência! – Adam afastou-se rapidamente – É o seguinte: eu tava andando ali na rua da igreja quando um bichim veio falar comigo. Já achei esquisito porque ele tava vestido todo de preto, parecia uma alma penada invertida.

                Alípio lembrou-se do que viu quando estava na varanda e disse que tinha visto essa pessoa, ou demônio, ou alma penada invertida.

                - Pois é! – continuou Adam – Aí ele me disse que lá no terreno da Maria do Geraldo tinha um bicho medonho e que ninguém tinha coragem de matar. Aí ele disse que precisava de dois homens fortes e corajosos pra pôr fim no bicho, e para quem matasse o bicho, ele daria muitos dinheiros.

                Refletindo bem sobre a história em que acabou de ouvir, Alípio pergunta:

                - E que bicho é esse? Olha, se for um jumento... Eu já disse que não gosto de judiar de animal do bem.

                - Macho, e se eu disser que é um calango? Como é que ele não achou ninguém que pudesse matar um calango? – disse Adam, espreguiçando-se.

                Alípio para de andar, enquanto Adam ainda dá uns três passos até notar a parada brusca do colega.

                - Um calango? Que mentira é essa, Adam? Pra quê uma recompensa dessa por um calango? – perguntou o garoto, completamente desconfiado – Ele realmente disse "calango"?

                - É verdade! – disse Adam, levantando os braços – Ele falou o nome do bicho, mas eu esqueci. Aí eu perguntei como era o animal, e ele falou que era um lagarto verde-escuro... e eu nem deixei ele terminar. Tu sabe que eu sei das coisas.

                Alípio encarou Adam por alguns segundos e sorriu.

                - Pois amostra o caminho aí, sabe-tudo-dos-inferno.

                - Me respeite, mói de chifre. – disse Adam, rindo – Bora só passar ali na minha casa pra pegar as baladeiras e umas cocadas.

                - Afinal, saco seco não fica em pé. E calango é bicho ruim – disse Alípio, começando a correr em direção à casa do amigo.

                E os dois correram juntos. Os chinelos levantavam a areia quente, enquanto os dois se acotovelavam até a casa do Adam. Os pais do garoto não estavam em casa, e Adam se aproveitou da situação para pegar umas cocadas extras. Colocaram os estilingues e a comida em duas sacolas de plástico e saíram da casa.

                - Como é que chega lá? – perguntou Alípio, coçando a cabeça.

                Os dois caminham juntos enquanto Adam confere o conteúdo de sua sacola. Ele ajeita sua camisa e carrega a sacola de plástico apoiada nas costas.

                - Macho, é bem ali – respondeu Adam sem olhar para o amigo.

                - É sério, me explica aí. Da última vez que tu disse isso a gente se perdeu.

                - Tá falando da vez que a gente foi bater na casa da dona Zefa e vimos a filha dela tomando banho no quintal? A culpa foi tua! Tu que disse "ai, bora por aqui, tu não sabe onde a gente tá" – disse Adam com voz de deboche.

                - A gente tava há meia hora andando em círculo! Deixa de viçagem e diz logo o caminho, carai – disse Alípio, batendo o pé na areia.

                - Tá – Adam ajeita sua bermuda – Ó, seguinte: a gente pega a estrada do rio, segue reto, passa a casa do Seu Manduca, passa o bar do Carlinho, depois a gente vira à direita onde tem o buraco da Vicensa, aí a gente passa pelos mato do terreno do Wellington da Mazé, aí vai, e vai, e vai mais. Depois a gente chega na estrada velha, segue mais e quando chegar na capela da santinha, a gente vira à esquerda e é lá.

                Alípio precisou de alguns segundos para processar todas as informações.

                - Égua, macho, tu falou que era fácil. Eu achei que fosse a Maria do Geraldo lá da igreja.

                - É não, doido, é a do Seu Geraldo que tem aquela bodega lá – disse Adam, apontando para o centro da cidadezinha.

                - Eu lá sei – disse Alípio, olhando para frente.

                Os dois viraram à esquina e seguiram em frente. A estrada do rio não era muito distante dali. As pessoas do interior transitavam calmamente, com os olhos meio cerrados por culpa da claridade. O calor extremo tremia a visão do que estava mais longe e castigava aquele interior cearense que nunca lhe fizera mal. Mesmo assim, havia um ar feliz naquela cidadezinha. As pessoas transitavam sorrindo, enquanto mães e avós saíam de suas casas para irem conversar com as vizinhas. Homens, montados em jumentos, passavam tangendo dois ou três bois que mugiam incessantemente. Crianças corriam pelas calçadas de cimento, enquanto outras brincavam de "bila" na areia ou de carrinhos puxados por corda.

                O Sol não era, não é e nunca será forte o suficiente para entristecer essas pessoas.

                - Acelera esse passo de moça aí, macho – disse Adam, andando mais rápido.

                Alípio olha ao seu redor, enquanto segue Adam. Ele tenta, mas não consegue se imaginar vivendo em outro lugar. Sua casa seria, para sempre, esse interiorzinho.

                - Pois um bora – disse, acelerando mais que seu colega.

                Adam viu seu colega o ultrapassando e acelerou para acompanhá-lo.

                - Só queria dizer que naquela vez da dona Zefa eu sabia o que eu tava fazendo.

                - Sabia sim. Sabia que tava cansando a gente até a gente morrer de cansaço – disse Alípio com raiva.

                Mal sabiam o que encontrariam.


A Lenda do Calango VoadorOnde histórias criam vida. Descubra agora