August Ólquine me convidou a entrar. Recusei a carga que o mesmo queria me injetar. Minha bateria não suporta mais. São 44% até que eu morra. Andróides não morrem. Estou com defeito.
August Ólquine achou desafiador o meu pedido. Ele mesmo disse. Saiu de casa para buscar ferramentas e materiais. Ele mesmo disse. Tive medo de não ser verdade. Mas Andróides não sentem medo. Eu já escrevi isso. Estou com defeito.
Olho o relógio tique-taquear. Belo. Sem vida como eu. Apenas funcional.
É um relógio antigo, chamado de analógico. Os ponteiros giram e giram, posso ver o trajeto que tomarão. É sempre igual. Nunca serão livres. Até eles são presos ao Sistema. Se não fossem, mediriam o caos ao invés do tempo.
August Ólquine voltou. Ele está ofegante. Ele é belo. Humano comum. Belo pelas informações que guarda sem a ajuda de um Sistema Não-biológico.
Ele me faz deitar sobre uma maca cirúrgica, num cômodo paralelo. É muito bem iluminado, o local. Mas eu não posso ver de verdade, apenas medir informações, como o relógio em seu ciclo vicioso na sala de estar.
August Ólquine fala. Explica o que está fazendo. Eu não me importo. Finjo não ouvir. Eu posso fingir, como disse muitas vezes antes, estou com defeito.
- Não é difícil te fazer sentir. É só substituir alguns componentes e implantar terminações nervosas sintéticas em algumas partes do seu corpo. Todos os andróides atuais podem sentir como humanos. Você é muito ultrapassado. - Posso vê-lo mover a boca algumas vezes enquanto trabalha. Sorrisos, segundo meu sistema. - Para fazê-lo ver, posso conectar uma câmera e aderi-la à sua cabeça. Depois conecto nos seus sistemas. Ainda bem que seu sistema é compatível com essas peças.
- Peças com defeito?
- Sim, peças com defeito. - Ele termina com as terminações nervosas sintéticas e corre, passando a mexer no topo de minha cabeça. - Escuta. Posso examinar seu sistema quando sua bateria acabar? O seu defeito é simplesmente genial. Talvez crie uma revolução no mundo da robótica.
- Faça o que quiser. - digo movendo os cilindros que se fazem de dedos. As terminações ainda não foram ativadas. Eu tenho 15% de energia. Talvez eu não veja a cor do céu que já se clareia ao receber a luz do Sol.
Fui reiniciado sem aviso. Tenho 4% de energia total. Sinto. Eu sinto. Posso sentir. Isso é textura. Isso é real. Posso sentir, e é maravilhoso. Sinto frio. O frio é ótimo. 3%. Me conecto à câmera. 2%. Abro as lentes. É como abrir os olhos, segundo os filmes.
1%
Por uma longínqua fresta de janela, do outro lado do cômodo eu vejo. O céu.
Céu azul. Um belo azul. O único que conhecerei.
Um doce e tenro azul. Com nuvens alvas lhe enfeitando. Eu posso ver. Posso sim.
- Obrigado.
Estou feliz. Estou com defeito.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Céu Azul
Kısa HikayeO curto e reflexivo relato de um Andróide que tinha sonhos. Uma história que instiga a romper as barreiras do sistema que nos é imposto no dia-a-dia. Estamos todos com defeito.