Yorkshire; Velha Inglaterra, Século XIII; Idade Média.
O que vou contar pode abalar o emocional de quem ouve, ou lê, mas é a mais pura verdade. Se você não tem uma mente preparada para encarar o diferente e o desconhecido, e não é capaz de lidar com ele, sugiro que pare aqui mesmo. Mas se avançar com a leitura; você não vai poder parar, pois eu sei como ninguém do que a curiosidade humana é capaz.
Tudo começou, em 1324. Quase no fim daquela era de escuridão e ignorância. Eu havia completado dezenove anos a duas semanas. Digamos que eu era um plebeu infiltrado entre reis. E quer saber? Eu não dava a mínima importância para prestígio e status; mas em respeito a meu pai, sempre concordei em continuar com o teatro.
Já sentiu como se você não pertencesse a lugar nenhum, e ao mesmo tempo sentisse que há algo preparado especialmente para você? Era assim que eu sempre me sentia, e mais tarde eu soube que estive certo o tempo todo. Éramos praticamente obrigados a frequentar as missas, participar da vida política da sociedade, ser um típico homem da elite... Se casar.
Como eu lhes disse antes, eu não tinha "sangue real", apenas fui afortunado pelo motivo de meu pai ser influente; afinal de contas, era o único barbeiro da cidade; e num lugar onde os homens da elite dão total valor a aparência, certamente era um negócio lucrativo. Eu não era como os outros rapazes; aliás, até então não havia ninguém parecido comigo naquelas redondezas. Fui criado e ensinado para ser igual, para seguir o padrão, mas não consegui; e não podia dizer a meu pai como eu realmente me sentia ou o que eu queria pra mim. Eu não tinha ninguém além dele, e desapontá-lo partiria mais meu coração que o dele.
Quando se vive na defensiva, em uma sociedade em que a liberdade de expressão é um pecado mortal; se você não concorda com algo, simplesmente assente com a cabeça e as pessoas pensam que você compartilha do mesmo ideal. Você deve me achar um covarde a essa altura do texto não é? Pois se você tivesse vivido naquela época me daria razão. Pensando bem, pode até ter vivido; só não se lembra. Mas essa não é a questão.
Eu protegia mais meu pai do que ele me protegia; se as pessoas soubessem meu segredo, nós dois estaríamos mortos. Naquele tempo, se um homem se tornava um criminoso, ou fosse considerado fora dos padrões dos "bons costumes", não só esse homem era morto, mas também seu pai e mãe eram castigados por não terem o educado decentemente. Agora acho que me entendem... Eu vivia em um mundo só meu, onde a única coisa maior que meus sonhos era o meu medo; que eu carregava como uma cruz onde quer que eu fosse.
Já havia completado meus dezenove anos, ou seja, era considerado um homem adulto e estava apto as responsabilidades como me casar, formar uma família, e ser mais uma carta no castelo da elite, um marionete nas mãos do sistema. Para meu pai, isso significaria que a missão dele fora bem sucedida. Criar um filho, dar a ele estudo, temor às leis de Deus, e um casamento arranjado. Basicamente minha obrigação maior era dar a ele netos. Esse era o modelo tradicional de construção da família, mas não era o meu modelo. Nem de longe era o que eu queria. "Se minha mãe estivesse aqui, talvez as coisas pudessem ser diferentes...", eu pensava. Ou talvez ela apenas reforçasse a sentença de que eu seria mais um fantoche na mão da sociedade.
A idade limite ideal dos rapazes para o casamento era de vinte anos, enquanto moças eram casadas até mesmo aos quatorze anos; se assim fosse conveniente aos pais. Conveniência, interesse, perpetuação do sangue; esses eram os reais motivos para casamentos tão rápidos e superficiais. E bom, o meu estava próximo.
Naquela época onde os costumes vendavam as pessoas; um homem que não se casava era motivo de desonra para a família, enquanto uma moça que não se casasse, ou fosse "devolvida" à família pelo marido, era vendida ao bordel para evitar que a desonra fosse maior. Pois é, acreditem se quiserem; mas os pais na idade das trevas preferiam ter suas filhas como meretrizes do que devolvidas ao seio da família.
A única coisa que eu pensava ao ver casos como esse acontecerem perto de mim era que eu havia nascido na época errada. Aquela vida não era pra mim! Como alguém poderia ser plenamente feliz sendo manipulado por um sistema político como aquele? Casar-se com quem você não amava e não poder falar aquilo que você pensava, ir a todas as missas que sempre repetiam a mesma coisa; "Ame a Deus e você será salvo, desobedeça e será condenado ao inferno." Na minha opinião, eu já estava condenado ao inferno, todos estávamos.
Eu nunca tive a intenção de criticar a fé de nenhum cidadão. O livre arbítrio não é isso? Poder escolher o que você quer ser e qual caminho tomar? As vezes o que é bom pro outro não é bom pra você. Mas ninguém entendia isso, e se entendiam... Bem; aí uma fogueira era montada em praça pública, onde o suposto influenciado por Satanás era queimado vivo diante de todos, para que servisse de exemplo. Todos eram obrigados a presenciar tal show de horrores, e no meu caso; era obrigado a engolir meu choro por aquelas pobres almas.
Quem possui luz em si, incomoda quem está no escuro. A essa altura eu já era um jovem questionador, que logo foi salvo pelas ideias revolucionárias do movimento iluminista que foi surgir muito depois, mas não vem ao caso no momento. O fato é que eu me recusava completamente, e em segredo; a aceitar aquela sina.
Mas como? Como me salvar de uma vida que eu não queria ter, sem decepcionar meu pai, e sem ir contra todos os costumes? Eu poderia fugir, pensei. Mas pra onde iria? Como me sustentaria? Poderia ir viver entre os camponeses, que apesar do fanatismo religioso; não obrigavam seus filhos a se casarem com quem não queriam. A ideia de abandonar minha casa e principalmente causar um desgosto desse nível ao meu pai era pra mim como um soco no estômago. Ou pior.
Eu chorava por mim e por ele, e na solidão devastadora do meu quarto, entre soluços e lamentos eu pedi para qualquer ser que pudesse me ouvir; que fosse um anjo, ou Deus, ou o demônio; pelo menos era o que eu desejava naquele momento. Um milagre. "Eu preciso de ajuda. Não é possível que eu tenha de aceitar esse fardo em silêncio! Não suporto me sentir tão impotente, colocando as necessidades dos outros na frente das minhas!" E então, bem baixinho eu contei meu segredo, seja pra quem estivesse me ouvindo, ou pra ninguém. Já estava com os olhos inchados, não poderia deixar que me vissem nesse estado. Não fazia parte do "padrão masculino", um homem ser pego chorando daquele jeito. Nem em velórios, quanto mais um homem chorando pelos meus motivos. Sequei as lágrimas com a ponta do lençol e logo depois adormeci.
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Atração Infernal
General FictionEstou apaixonado por um demônio, e por isso estou condenado ao inferno. Receberei o castigo por nutrir um sentimento tão puro por alguém que joga no lado negro do tabuleiro. Então antes que eu seja levado, vou lhes contar como aquele anjo obscuro en...