Capítulo 4- Aproveite, pequena.

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Volto para casa, foi bom ter passado um tempo naquele lugar, ouvir aquela história e aprender a não comparar o meu sofrimento com o sofrimento alheio, a não romantizar meu romance com histórias já vividas.

Em meu quarto novamente, pego meu livro e saio, a casa é grande e o jardim também. Pensamentos eufóricos me inundam, meus olhos se encontram às várias crianças adotadas pelo enorme coração da Tia Dê, brincam como se não houvesse amanhã. Ah, infância... momento da vida em que tudo é encantado e mágico, e que tristezas são apenas pelos brinquedos quebrados. Deveria ser assim, e na maioria das vezes não é. De encanto são apenas os sonhos.
Em um momento de distração escuto uma voz estridente bem de perto.

- Oi? Oieee?

- An, sim? - digo, um pouco confuso.

- Porque não me responde? Estou te chamado há um tempão! - vejo uma menina bem irritada à minha frente rodando uma bola com uma das mãos.

A olhei sem entender por quanto tempo ela estaria ali.

- Estava distraído, pode falar.

- Você quer brincar comigo? Meu nome é Raphaela. - Se apresentou - A minha amiga agora tem um namoradinho e disse que já está muito grande para brincar dessas coisas e que era para mim arrumar outra pessoa para brincar comigo, mas ela não está grande não, somos quase da mesma idade.

- E você, tem quantos anos?

- Nove!

- E sua amiga?

- Doze.

- Ela deveria brincar com você...

- Também acho - disse deixando a bola no chão e se sentando ao meu lado - olhaaaa, você gosta de ler? Eu não gosto não, é tão chato, mas a minha professora disse que ler é bom, que aprende mais. Eu prefiro brincar, é mais legal, apesar que ler não machuca, né? Olha só meu joelho - falou dando risada e em seguida soltando um "Ai".

Ri também. Ela falava engraçado, menina esperta. Negra, com cabelos longos e cacheados, olhos cor de jabuticabas, atentos.

- Não está doendo? - pergunto com uma certa preocupação.

- Não, tenho outro aqui, olha - virou mostrando um ralado em seus ombros.

- Eu também já fui assim, tive tantos machucados...

- E você chorava? Doía muito?

- Só quando ia tomar banho e passar remédio, ardia muito. Doía, mas você cresce e percebe que um joelho ralado não é a pior dor que existe.

- Como assim? - me olhou curiosa.

- Um dia você vai entender. São apenas fases da vida.

- E eu vou chorar nessas fases? Porque meu irmãozinho chora muito quando ele machuca, por isso não gosto de brincar com ele.

- Os machucados dele devem doer mais que os seus, ele não é mais novo?

- Aham. Eu tenho mais força e corro mais rápido que ele - disse dando gargalhadas - Agora vamos brincar, corre! - se levantou e saiu correndo.

Demorei um pouco para alcança-lá, a menina era rápida mesmo. Brincamos até o sol se pôr, cansados e já sem energias, deitamos na grama olhando para o céu um pouco avermelhado.

- Amanhã a gente lê o livro que você quiser, ta bom? Minha amiga deveria ter brincado também, você é tão legal, podemos ser amigos? O ruim é que você não vai para a escola mais né? Mas não tem problema, podemos brincar quando eu chegar, não podemos? - disse se sentando e mexendo no cabelo bagunçado.

Nunca conheci uma pessoa que fazia tantas perguntas em uma só frase.

- Claro que podemos ser amigos. Você não disse que não gosta de ler?

- Eu não gosto de ficar parada.

- Leia andando.

- Não faz sentido.

- Claro que faz, as coisas só fazem sentido se você entender o real contexto delas.

- Você fala difícil, credo.

- E você faz muitas perguntas, credo.

Ela concordou com a cabeça, sorrindo. Nessa idade, perguntar é essencial, cresce a vontade de descobrir o mundo e saber cada vez mais, e por meio de perguntas se obtêm a resposta esperada, ou a resposta para mais perguntas.

- Olha tem terra até no meu cabelo, meu rosto tá sujo de lama, OLHA A MINHA ROUPA!!! - exclamou em um misto de espanto e felicidade por ser se divertido tanto.

- Isso se chama infância. Aproveite a melhor fase da sua vida, pequena.

Escrevi, apenas.Onde histórias criam vida. Descubra agora