Quem diria

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     O homem não se detém, avança na nossa direção cada vez mais rápido. Atrás dele, uma linda carruagem com tons dourados e brancos. Mesmo na escuridão, vejo a expressão carrancuda do velho se transformar em um enorme  sorriso.
       Joe e eu nos entreolhamos, desconfiados. Ao parar em nossa frente, o homem faz um reverência. Mas o que?
     "Muito prazer em conhecê-la senhorita. Viemos aguardando-a a muito tempo!"
      "Quem é você?", pergunto, sem entender nada do que está acontecendo.
      "Meu nome é Harold, senhorita. Agora faça o favor de entrar na carruagem, e tudo será explicado."
       "Nós não vamos a lugar nenhum, nem conhecemos você.", diz Joe, em um tom autoritário.
       "Não me lembro de ter dirigido a palavra ao senhor. A única que me interessa aqui é Brenda."
       Outch. Quem esse cara pensa que é?!
      "Ei, ele é meu... Amigo. Não fale assim com ele.", instrui, indignada.
      "Desculpe se a ofendi, senhorita, não foi minha intenção. Não irá se repetir. Agora, a senhorita poderia entrar na carruagem, por favor?"
      "Como eu vou saber se você não é um assassino ou um estuprador?"
      "Fico exasperado que pense algo tão horrendo de mim!", ele baixa a cabeça, olhando por seus trajes. "Sei que não sou o mais apresentável dos cavalheiros, mas não creio representar algo tão ruim..."
       "Eu não quis dizer você em específico. É que isso existe tanto por aí  que é difícil confiar em alguém."
        Ele arregala os olhos: "existem muitos? Mas que horror! Não imagino um mundo em que tenhamos de conviver com assassinos em montes! Isso é inaceitável! Mas não se preocupe, senhorita. Agora está em casa."
        "Que papo é esse?", Joe se pronuncia de novo.
       "Se o senhor e a senhorita concordarem em entrarem na carruagem -como já instrui antes-, poderemos esclarecer todas as suas dúvidas."
        Joe olha para mim, buscando uma resposta. Olho em seus olhos verdes confusos e assinto com a cabeça. Harold nos guia para dentro da carruagem exageradamente luxuosa e abre a porta. Entramos, e o interior é tão luxuoso quanto o exterior. Os assentos são de couro alvo, as paredes são acolchoadas também, e há uma pequena mesa com um bule e xícaras de chá que parecem peças de um castelo. Harold entra atrás de nós e se senta à nossa frente.
       "Já pode começar a explicar.", são as palavras de Joe.
       "O senhor é extremamente inconveniente!", acusa Harold. Não consigo me  conter e solto uma risadinha abafada. Joe olha para mim e mostra a língua.
       "Tudo bem. Vou começar agora uma história que todos os cidadãos desta cidade ouvem desde que são crianças."
      *Há 300 anos atrás, quando esta cidade foi fundada, tiveram que ser feitos... Sacrifícios para Deus antigos, para que eles fornecessem-nos boas colheitas que garantiriam nosso sustento. Todo mês, uma mulher era morta e oferecida aos Deuses. As coisas estavam dando certo, a cidade crescia cada vez mais rápido. Mas os nossos ancestrais cometeram um erro grave. Ao décimo mês de sacrifício, levaram uma outra mulher, mas eles não sabiam que ela era uma bruxa. Antes de ser sacrificada, a bruxa nos jogou uma maldição. Quando houvessem três eclipses lunares no mesmo ano, nosso mundo iria desmoronar. Ele cairia em pragas, morreria pouco a pouco, e por fim, seria dominado por um de seus descendentes. Os criadores fingiram não acreditar na mulher, mas no fundo, ficaram preocupados. Procuraram os filhos dela, ou parentes mais próximos, mas não encontraram nada. A partir de então, as colheitas começaram a progredir por si próprias, então eles acabaram com os sacrifícios. Todo ano, ficavam alertas a eclipses lunares, mas em 20 anos, nada aconteceu. 21 anos após o ocorrido, dois eclipses aconteceram, e os criadores resolveram procurar uma bruxa boa para desfazer a maldição. A bruxa lhes disse que a maldição não podia ser desfeita, apenas atrasada e modificada. Então ela a atrasou para o ano de 2015, e disse que somente uma coisa ia poder impedir o descendente da bruxa de tomar o controle geral: uma garota chamada Brenda. Foi a profecia da bruxa. Fomos vivendo em paz, mas temerosos por esse dia. Segundo a profecia, a garota chegaria no mês de setembro, para se preparar antes das pragas começarem. Somente ela seria a esperança do nosso povo. Somente ela poderia nos salvar de um terrível fim.*
       Fiquei boquiaberta e após quase um minuto de silêncio comecei a rir. Uma risada mesmo, chegaram a sair lágrimas de tanto rir.
      "Meu Deus, essa é a melhor pegadinha de todos os tempos!". Harold me encarava, assustado. Até que percebi que ele não estava brincando. "Você não está falando sério, está?"
       "Mais sério do que já falei em toda a minha vida, senhorita."
      "E como vocês sabem que eu sou a Brenda certa? Existem milhares de pessoas com o mesmo nome pelo mundo!"
      "Observamos todas as pessoas com este nome, senhorita. E você é a que mais indicou sinais. Era para você ter vindo por acidente para cá há 2 meses. Mas isso não aconteceu, então precisamos ir buscá-la nós mesmos. Ainda assim, não tínhamos certeza de que você era a certa. Por que acha que lhe enviamos aquele bilhete e a Fera para lutar? Tínhamos que te testar, senhorita. Agora, temos certeza de que é você mesma."
      "Como?", pergunto.
      "Pela espada, senhorita. Somente a salvadora poderia pegá-la. Você não sentiu algo diferente quando a tocou?"
      Lembro-me da estranha sensação de invencibilidade.
      "Talvez", respondo, hesitante.
      "Eu sabia. Agora cabe a você nos salvar."
     "Salvar de que?"
     "Olhe ao seu redor, senhorita. Nosso mundo está consumido por desgraças!"
      Olho pela janela e vejo o mesmo cenário acabado de antes. Isso é incrivelmente triste.
      "Ah", é tudo que consigo dizer.
      "O descendente da bruxa está próximo, posso sentir. Só você pode nos salvar. Você é nossa única esperança, Brenda!"
      Eu não sei o que dizer a ele. Quero dizer que sim, que vou ajudar, que vou lutar até o fim, mas não faço ideia de como fazer isso! Eu não sou uma lutadora, sou apenas escritora e quero viver minha vida como uma pessoa normal. E pelo que conheço de mim, sei que não tenho capacidade de lutar com alguém, de defender um povo.
      Ficamos em silêncio por vários minutos, olhando para o chão acarpetado da carruagem. Joe está com a cabeça encostada em meu ombro, quase dormindo, quando finalmente chegamos ao nosso destino.
       Desço da carruagem e me deparo com um enorme castelo. É estranho, o castelo é luxuoso e lindo, mas não combina com o cenário desastroso que o cerca. Acordo Joe e seguimos atrás de Harold até o castelo.
      O interior é magnífico! Tem lustres imensos, mesas para banquetes de até 100 pessoas, tapetes incrivelmente bonitos, quadros esbeltos, lareiras, acessórios de ouro e prata. É imenso é mais luxuoso do que a carruagem. É luxo demais para o meu gosto.
      "Vocês devem estar cansados, o quarto de vocês já está preparado. Imagino que queiram tomar um banho, ter uma boa refeição e descansar. Amanhã conversaremos sobre tudo.", declara Harold.
       "Sim, é claro. Espera ai, 'o quarto'?"
        "Bem, sim, imaginamos que fossem um casal. Mas se não quiserem, podemos preparar outro quarto..."
       "Não! O mesmo quarto está ótimo.", Joe o interrompe, com um sorriso.

       Uma hora depois, estamos de banho tomado e alimentados. A comida foi uma das melhores que já comi, e os sais da banheira fizeram maravilhas na minha pele. Estou me preparando para dormir, pondo uma camisola branca, de alças, com comprimento até o joelho, que me deram. Quando saio do banheiro e vou até a cama, Joe está esparramado lá , apenas de bermuda. Ele foi tratado e está com um curativo nas costas, onde a Fera o arranhou.
      Ao me ver ele arregala os olhos e tosse. Quando se recompõe, diz: "você está linda."
     "A, cala a boca", rimos.
     "Bem, eu sou acostumado a dormir de cuecas, mas não quero ser desrespeitoso com você, e acabar fazendo-a pensar que quero algo a mais, então...", ele abre um sorriso de canto.
      Reviro os olhos e me deito.
      "Isso é loucura!", digo.
      "É exatamente o que eu estava pensando. E coisa demais pra sua cabeça, pra nossa. Eu nem deveria estar aqui, só tive o azar de estar com você na hora.", ele se vira para mim e sorri. Não consigo parar de olhar para os seus olhos verdes.
       "É, acho que sim. Você não queria estar aqui?"
       "Eu só quero estar onde você estiver.", ele diz. Eu sorrio e me viro para o outro lado.
        "Boa noite, Joe."
        "Boa noite, princesa! Literalmente.", rimos e apago a luz do abajur. Em poucos minutos entro em um sono profundo e me deixo levar por sonhos calmos.

Joe's POV

    Observá-la dormindo é relaxante pra caralho. Sua respiração, seu cheiro doce, seus cabelos escuros se espalhando pelo travesseiro... Ela é tão linda. Eu não tenho coragem de dizer a ela tudo que sinto. Tudo que senti desde o momento em que ela começou a morar na minha casa. Aquela garota chata e mandona foi me conquistando sem intenção a cada dia mais. Eu quero dizer a ela, quero dizer tudo que sinto, dizer que quero passar o resto da minha vida ao lado dela, que nunca senti algo tão forte por ninguém antes. Mas não posso, não consigo. Aproveitando que ela está em um sono profundo, ponho meus braços ao redor da cintura dela, e aproximo meu rosto de seus cabelos. Adormeço sentindo seu cheiro doce e a calma que ela me traz.

Meu lugar no mundoOnde histórias criam vida. Descubra agora