Os Olhos Com Necrose I

414 21 0
                                    

Assim como você, eu era um homem comum. Horas iguais eram só pedantice, filmes de horror eram só ficção, no fundo os monstros eram as próprias pessoas, e tudo é fruto da imaginação. Mas agora vejo que horas iguais representam presságios, filmes de horror são psicopatias bem criativas, existem sim outros monstros além das pessoas, e nem tudo que vemos, ouvimos ou tememos é fruto de uma mente inventiva... Sou a prova viva de que isso é real. Mas por que acreditariam em mim? Sou até então apenas um louco escrevendo uma história. Acontece, porém, que eu não sou louco... e nem toda história é simplesmente inventada...
Tudo começou quando fui para Vertentes. Pelas placas empoeiradas e fétidas que encontrei no caminho, eu me encontrava próximo ao povoado de Serra Seca, após ter sofrido um leve acidente de carro. Era um lugar desconhecido até então para mim, que mal sabia sequer das estradas que haviam próximas dela. Seus postos de gasolina, mecânica e outros estabelecimentos similares estavam totalmente abandonados, como se uma praga terrível assolasse o lugar. Os únicos objetos
que tinha em mãos para sobreviver no momento eram uma chave inglesa fosfatada GEDORE-191G150 e um relógio de pulso que na maioria das vezes... falhava.
Caminhei de porta em porta procurando ajuda, mas a rua era deserta. Não encontrava ninguém por aquela cidade por mais que andasse. Aquilo me desesperava. Não era noite, mas o tempo corria e me amedrontava. Às 16:16 o meu relógio parou. Creio que foi exatamente aqui que tudo teve início (tratando-se de verdadeiros horrores). Pois, no momento, isso apenas arrancou-me um suspiro de raiva, por estar agora - de todas as maneiras possíveis - completamente perdido. Mas no mesmo instante um ruído se fez do meu lado. Uma lata de lixo tombou por algum motivo. Imaginei que pudesse ser alguém correndo da fina chuva que derretia agora do céu, e corri até um beco estreito onde pensei ter visto um vulto. Mas, nada havia lá, apenas alguns papéis jogados no chão, embaixo de algumas salinas de parede que entregavam a ação cruel do tempo em meio àquele inexplicável abandono. "Talvez algum gato desajeitado e corpulento", pensei, embora não tivesse visto nenhum desde que chegara lá. Conforme as horas passavam, mais desprotegido me sentia, e essa é uma das piores sensações que se deve sentir quando se está perdido em um lugar deserto e sombrio.
A chuva caía devagar, aumentando seu barulho aos poucos e obrigando-me a encontrar um abrigo. Os rebocos das casas eram notavelmente velhos, e alguns eram até inacabados. Quatro ou cinco ruas resumiam o lugar, e eram ruas tão estreitas que chegariam a sufocar qualquer pessoa nervosa. Janelas embaçadas que mal deixavam ver o interior dos lares, baldes de lixos virados nos cantos, e nenhuma folha de árvore - embora houvesse troncos enfileirados e enfeitados de galhos secos - era tudo o que formava aquele lugar. Com todas aquelas casas vazias e abandonadas, não pensei uma única vez antes de adentrá-las uma por uma e procurar por luz e cobertas. A chuva
tornou-se cada vez mais forte, de maneira que entrava pelas brechas das janelas quebradas e quase as inundava. Parecia querer desabar com o barulho da chuva nas telhas que não economizavam buracos, e aos poucos impedia-me de sair de dentro delas, me deixando sem opções de onde ficar.
Barulhos se faziam nos cômodos escuros de uma muito peculiar, a qual entrei. Gelaram meu coração com aquilo tudo. Escondi minha chave inglesa nas costas enquanto caminhava procurando
presenças, e vez ou outra um barulho se fazia mais perto... aumentando a curiosidade... levando-me cada vez mais à dentro... até chegar numa espécie de cozinha, repleta de utensílios pendurados em pregos e presos nas portas de armário que estavam abertas. Bati com a chave inglesa na mesa, cheia de sacolas pretas.
- Tem alguém aí?
Somente o eco respondeu.
Nenhum barulho se fez em diante.
Os vidros da casa eram arranhados e quebrados. Alguns com marcas de dedos ensanguentados e outros cuspidos. Camadas de poeira cobriam seus móveis. Uma lata aqui ou ali sobre a mesa. Retratos tenebrosos de familiares ainda em seus caixões abertos e rodeados de flores enfeitavam as paredes. Concluí então que não poderia haver ninguém morando ali, pois seria impossível! Os poucos minutos que passara dentro dela quase me adoeceram pela umidade e poeira. Também as goteiras. Não esqueçamos delas! São justamente elas que atormentam o silêncio... e acordam os demônios...

(CONTINUA)

Contos Para Não dormirOnde histórias criam vida. Descubra agora