Os Olhos Com Necrose III

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Era tudo perdidamente sem luz onde eu estava. Podia apenas orientar-me com os meus sentidos restantes. Sentia o pequeno sopro do balanço do vento. Um ar inteiramente podre como de
carniça tomou meu paladar. Um tilintar de correntes se arrastou atrás de mim. Havia um corte ardido no meu braço esquerdo, provavelmente era dos dentes do serrote que aquele monstro
maneava. Acendi a pálida luz do relógio de pulso que eu carregava, e notei que as horas haviam mudado. Não eram mais horas iguais, eram 18:45.
Eu podia sentir o sangue ainda escorrendo do corte.
Aquela pele sobre outra... já rodeada de larvas... o que seria aquilo?!... Horror profundo me invadia a cada "tac" de algum relógio no escuro. 18:45 da noite? Era impossível! Mas o que naquele instante era mais entendível? Quando o medo te agarra de verdade você não pensa mais em lógica alguma. Tudo que era sano perde seu controle. Um cheiro insuportável inundava aquele ambiente.
Aos poucos ouvia o tilintar de correntes ficar mais próximo. Olhava fixamente para o lugar por onde eu entrara e tombei. Tateei nas paredes procurando uma saída, mas parecia não existir. Vez ou outra tropeçava em algo gosmento e escorregadio. Acima de mim, uma luz fraca que aparentava estar queimando. Ali havia energia, mas não claridade imediata. Ao encostar na parede senti um cubículo de metal bem acima do ombro que se assemelhava a uma caixa condutora. Abria-a, mesmo
sem enxergá-la bem, e desci a alavanca mais próxima de minhas mãos. Aos poucos, algumas das luzes acima de mim foram piscando, queimando e jorrando faíscas rápidas até acenderem depois de um demorado e arrastado rangido de ferro.
Todas as luzes da casa foram acesas.
Meus olhos foram tomados pelos raios fortes, ocasionando-me uma forte dor de cabeça.
Aquele maldito fedor de carniça apenas aumentou. Quando abri os olhos... vi que não deveria ter perturbado o escuro. Havia centenas de corpos dependurados pelo calcanhar, alguns ainda se debatendo, calados, pois tinham a boca costurada e não possuíam dedos. Larvas de diversos tamanhos comiam os corpos caídos no chão e sobre as mesas. O peso deles suspensos apenas por círculos rasos nos pés haviam feito uma parte do corpo despencar, deixando os seus pés e pernas
nos ganchos. Ver tudo aquilo e sentir aquele cheiro putrefato jorraram um forte vômito de minha garganta, que caiu sobre o rosto de um homem à minha frente e não notara. Sentiu o vomito e se debateu querendo tombar, mas não tinha braços para se jogar. Ainda vomitando, caminhei para trás e outros corpos balançaram suas cabeças pedindo-me ajuda. Caí de joelhos com o maior peso que havia sentido em meu coração. Aquelas pessoas vivas e agonizantes em meio a outras centenas de
pessoas mortas, moradas de larvas e outros besouros cadavéricos. Meu rosto fez a mais terrível expressão de angústia que olho algum já vira. Comecei a chorar e soluçar cuspindo meu resto de vômito no chão, incontrolavelmente.
- É... exatamente... dessa expressão que ele gosta...
À minha frente, um homem sem rosto, dependurado num gancho coberto de larvas, apontou sua mão de poucos dedos para o que havia atrás de mim, e teve seu braço cravado por um serrote
sangrento. Agonizou e me disse: "Malditas horas iguais"!
A última coisa que senti em meu corpo depois disso, foi a criatura de antes cravar o seu gancho em meu calcanhar e me arrastar até uma mesa, onde retirou meu rosto lentamente com um
bisturi enferrujado. Não posso descrever a dor que senti, nem se tivesse um milhão de linhas ao meu dispor. Após retirá-lo, derramou perfume sobre minha carne viva e deliciou-se aos meus gritos e desmaios. É tudo que eu lembro antes de acordar sem meu rosto e estar sendo tomado por larvas.
Ao menos escapei daquela casa e daqueles olhos com necrose. Fugi após ter forças o suficiente para apunhalá-lo com minha chave inglesa que estava na mesa ao meu lado, junto de
incontáveis fiapos de pele.
Foi tolice minha não ter morrido naquele instante. Ter agonizado só mais um pouco e ter sido pendurado apenas por mais alguns dias. Pois ainda estou nessa cidade, e agora sei que ele está
perto... muito perto...
Meu relógio acabou de indicar: são horas iguais.
16:16 horas.
Ele está bem atrás de mim, eu posso sentir... e desta vez... eu não tenho uma chave inglesa.

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