Capítulo 4

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Uma gravidez complicada. Isso resume bem, o que Katniss e eu estamos passando. Nos primeiros meses foram apenas os enjoos. Depois, veio a indisposição. Katniss não levanta da cama para nada. A padaria está praticamente abandonada, pois eu não consigo deixar Katniss sozinha. A relutância dela em ser mãe parece refletir em sua gravidez, e o médico extremamente pesaroso, já nos avisou que talvez a criança acabe sendo expulsa do corpo de Katniss. Acabe sendo rejeitada, abortada. Então, minha luta não é só para manter a casa, as despesas, e coisas triviais como essas. Minha luta é muito maior. É para manter essa criança viva. Já amanheceu faz um bom tempo, mas Katniss continua dormindo. Estou com meus braços ao redor de seu corpo, e apesar de um dos meus braços estar até dormente, eu não ouso me mexer. Foi uma noite longa, cheia de pesadelos, onde eu inutilmente tentei acalmar Katniss. Mas os pesadelos nunca desaparecem. E agora triplicaram, pois desde a notícia da gravidez que Katniss não dorme uma noite inteira. E vê-la tão debilitada, desperta coisas em mim. Coisas das quais eu tenho medo. Coisas que o veneno de Snow fez se intricar ao meu DNA. Katniss, que antes dormia calmamente, começa a tremer, e eu sei que mais um pesadelo está vindo. Eu a abraço mais forte, enquanto murmuro em seu ouvido.

- Katniss, meu amor, está tudo bem. Está tudo bem, eu estou aqui – eu murmuro, sem parar.

Mas seus tremores vão aumentando, e abruptamente ela se senta na cama, gritando, tapando os ouvidos. Atordoado, por não conseguir fazer muita coisa para diminuir o seu desespero, eu apenas a tomo em meus braços, e afago seus cabelos.

- Eu vi, Peeta – ela sussurra, entre lágrimas. – Eu vi, tão real, como se eu estivesse lá de novo. Prim, morrendo, bem diante dos meus olhos. E eu não pude salvá-la.

Eu fico sem palavras. Não posso dizer que foi apenas um pesadelo. Pois isso realmente aconteceu. Estou procurando as palavras certas, quando percebo nosso lençol azul claro como um céu em dias ensolarados, sendo tomado por um líquido escarlate. Sangue. E isso está saindo de Katniss. O que eu mais temia, está de fato, acontecendo. Katniss segue o meu olhar, e então percebe o sangue se esvaindo por entre suas pernas. Seus olhos se arregalam quando ela por fim percebe, que ela está perdendo nosso bebê. Eu penso que sua reação será gritar, ou chorar mais ainda. Mas ela permanece com os olhos focados no sangue, inexpressiva.

- Katniss, você tem apenas que se acalmar. Eu vou chamar o médico. Fique apenas calma, Katniss. Eu te prometi que nada ia acontecer. E não vai, mesmo – eu digo, e ando ás cegas a procura do telefone. Quando o acho, disco os números e dou uma explicação aos gritos, sobre o que está acontecendo. O médico diz estar a caminho com uma ambulância, mas explica que sangramentos em estágios avançados de gravidez, tendem a ser fatais.

Mas eu me nego a aceitar. Eu não posso aceitar que esse ser, que eu nunca vi, mas que já amo intensamente, nem chegue a conhecer o mundo. Um grito gutural de Katniss, me tira do meu estupor, e eu corro de volta até ela. Sua expressão denota a mais pura dor.

- Eu não vou aguentar – ela grita, enquanto cruza os braços sobre sua enorme barriga.

O sangue parece ter cessado, e uma ânsia toma conta de mim. Meu lado ruim quer vir à tona. Minha cabeça começa a doer, de uma forma insuportável, e apesar de me manter em pé, ser um enorme sacrifício, eu me firmo, pois tenho que ajudar Katniss. Eu seguro sua mão e forço seu olhar a focar em mim.

- Você se lembra daquela vez em que você deixou que eu fosse caçar com você? Um pouco depois que nós começamos a dividir a mesma casa na Vila dos vitoriosos....

- O que? – ela grita, e aperta minha mão, soltando mais um grito de dor. Estremeço, mas decido continuar tentando distrair ela.

- Lembra que eu quase morri de medo, quando nos deparamos com aquele bicho... Como era mesmo o nome dele? – continuo.

- Aquele, era um cervo – ela diz, e o suor escorre por todo o seu rosto.

- Isso. E a cada passo que eu dava, era possível escutar os bichos correndo para longe.

Uma risada fraca e rouca escapa de sua boca.

- Não entendo como você consegue andar tão silenciosamente no meio de um monte de folhas secas – eu digo, e ela ri mais uma vez.

- Não ter uma perna de ferro ajuda bastante – ela diz, fracamente, e quando eu penso ter conseguido controlar a situação, Katniss solta mais um grito, ainda mais sofrível que os anteriores.

- Eu estou morrendo, Peeta – ela diz, sua voz ficando cada vez mais fraca. –Eu não aguento mais essa dor.

- Você não vai morrer – eu digo, e percebo que a mão de Katniss que não está segurando a minha, está bem abaixo de sua barriga. Percebo que seus gritos de dor, tem um certo espaçamento entre eles. E tudo vai se juntando num quebra-cabeças que pode ser ao mesmo tempo lindo, e fatal. Katniss pode estar em trabalho de parto. Apesar de ter estado ao lado de Annie quando ela teve Posy, o que senti ali, não se compara ao que sinto agora. Um misto de sentimentos, uma explosão que quase me derruba. Onde está o médico? O que eu fizer daqui pra frente, pode determinar se essa criança, e até Katniss, irão permanecer vivas.

Respiro fundo. Aguento mais um grito de Katniss que parte meu coração, e me forço a agir. Acomodo Katniss na cama e retiro a parte de baixo de seu pijama.

- Katniss, você tem que fazer o que eu disser. Eu acho que você está em trabalho de parto – eu digo, no tom mais calmo que consigo usar. Katniss se agita ainda mais com a notícia, mas apesar do seu espanto, e de mais gritos, ela permanece deitada, com os pés apoiados na cama, como eu a ajeitei.

- Isso vai doer, mais do que já está... Mas você precisa fazer força. Muita força – eu digo, e sinto meus olhos marejando. Katniss tem que aguentar.

Seus gritos são ensurdecedores, enquanto ela soa, e chora ao fazer o máximo de força. Sua mão ainda aperta a minha, o que também dói, mas eu sei não chegar nem perto da dor que ela está sentindo. Katniss respira fundo, e faz força por diversas vezes. Mas nada acontece. Quando eu estou quase desistindo, incapaz de continuar assistindo ao seu sofrimento, tenho um vislumbre do bebê. Eu estava certo. Nosso bebê não quis mais esperar para nos conhecer, e decidiu sair antes do tempo.

- Continue fazendo força, Katniss – eu grito, enquanto empurro sua barriga para baixo, não forte demais, nem muito fraco. – Está saindo, Katniss. Aguente firme, por favor. Está saindo.

O que acontece a seguir é como um borrão. Só consigo escutar os gritos de Katniss e assistir ao seu sangue verter. E de repente, eu estou com uma criança minúscula em minhas mãos. Uma criança coberta de sangue, e que não chora, e nem se mexe. Não percebo quando a equipe médica chega. Assisto, paralisado, a criança sendo tirada de meus braços e enrolada em um pano, enquanto aparelhos são ligados a ela. Ainda silencio. Olho para o lado, e vejo Katniss, de olhos fechados, sendo carregada em uma maca. O médico fala comigo, num tom de voz urgente, mas eu não consigo sequer escuta-lo. Pois tudo que eu consigo pensar é que talvez, eu tenha perdido um filho, e Katniss, de uma só vez. O baque é tão grande, que me falta o ar. Respirando com dificuldades, eu tento focalizar o médico, e corro atrás dele. Assim que entro na ambulância onde Katniss está, fica impossível segurar as lágrimas. Seu sangue não para de verter. E o monitor na qual ela está conectada, deveria estar fazendo um bip, um barulhinho, do qual eu fiquei bem acostumado no tempo em que estive internado tanto na capital, tanto no distrito 13. Mas o monitor de Katniss, faz um barulho diferente. Faz um barulho estridente, e contínuo. E ninguém precisa me dizer, que isso é um indício da ausência dos batimentos do seu coração. Aos solavancos, a ambulância parte para o hospital. Em meio as minhas lágrimas, assisto aos médicos tentando reanima-la. Penso na pequena criança que acabei de presenciar o nascimento, que provavelmente está sem vida... Olho para o rosto pálido de Katniss, e o som do monitor ainda indicando que seu coração está parado...

O que eu vou fazer?

- Por favor Katniss... Fique comigo – sussurro, sem parar. – Por favor... Não me deixe.



Depois da esperança - Peeta MellarkOnde histórias criam vida. Descubra agora