Antes.

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Só existem dois dias marcantes em nossas vidas : o dia em que nascemos,onde a vida começa a correr,e o dia em que descobrimos porquê a gente nasceu,o momento que a vida para de correr,te dá a mão,e fica sua amiga.

Existem dois tipos de almas neste mundo,almas feitas de água,tidas por pessoas livres,a liberdade é o que as move,elas correm como rios,se agitam como tempestade,chovem gelo e amam como garoa. Possuem aquele mar,aquele sorriso molhado,as mãos frias e escorregadias,olhar que oscila bondade e sabedoria,moram em qualquer coração,mas sua alma é um deserto,vivem na ironia,são mar mas vivem com sede. Falta selvageria.

Existem almas feitas de fogo,se consomem,queimam qualquer um que chegue perto,marcam qualquer um que as toque,são inconstantes,incontroláveis,devastam,devoram,se alastram,são fortes,são quentes,são duras,dançam uma dança perigosa,andam devagar porque sabem que têm todo o tempo do mundo,se rendem aos vícios. Nunca têm sede,nunca são ávidos,lambem a vida com suas labaredas. Falta calma.

Eu tinha aquele fogo em minha alma. Me consumia até os ossos,minha alma borbulhava,era eu,vivendo uma vida solo,esperando morrer,esperando meu fogo me levar.

Abri meus olhos com a selvageria me consumindo,meus pulmões queimavam com meus gritos. Não era só eu. Eu tinha alguém,tinha um amigo,sentia que algo dentro de mim sangrava,alguma coisa se descolava em meu perto,mas nada me importava.

- O que fizeram com ele ?! - Eu gritava.

As enfermeiras tinham medo,ninguém ousava se aproximar. Algo queimava em meus olhos,algo selvagem escorria pela minha boca,um ódio que eu só conhecia dos livros se apoderou de mim.

- Me diga ! - Eu me debatia - O que fizeram com ele ?!

Eu era fogo naquele momento,a minha vida toda havia esperado por aquele momento,e enfim havia descoberto porque estava ali.

Eu fui feita para incendiar.

Meu corpo se sacudia,me livrei de uma das amarras e a última enfermeira que havia restado correu pela porta. Uma mulher grande me prendeu de volta na cama,forçou meu pescoço e o amarrou também,usei minha língua para colocar a lâmina que escondia em minha boca entre meus lábios,rasguei seu pescoço e o seu sangue me lavou. Houveram gritos,seu corpo caiu como uma árvore que acaba de ser cortada. Eu continuava presa,colada à mesa dos pés à cabeça. O nível de adrenalina que se acumulava em meu corpo me deixou cega,sentia o suor encharcar minhas roupas enquanto a mulher era socorrida.

Me sedaram como se eu fosse um cavalo.

"Alex." Era tudo o que eu pensava "Alex"

Deve estar preso,desacordado.

Meus olhos estavam abertos mas meu corpo não se mexia,mas apesar disso eu me sentia bem. Via tudo atravessado,as cores se misturavam e eu não tinha certeza de quem eu era.

" Deixem ela sedada" Alguém disse.

" Verifiquem se ela não esconde mais nada no corpo ".Mãos me apalpando.

" Limpem o sangue dela" Senti a água gelada agredir minha pele.

Sabia que já faziam alguns dias que estava imóvel,o líquido que descia pelo tubos e passava pela agulha espetada em meu braço me paralisava do pescoço para baixo. As sombras que mudavam de posição de acordo com a posição do sol não me deixavam esquecer que eu ainda estava viva. Queimando.

Minha mente nem sempre tão lúcida me fazia ter sonhos horríveis,e coexistir em uma realidade que oscilava entre o abstrato e o real. Já faziam dias que estava trancada em um quarto,amarrada em uma cama,sem beber ou comer nada,apenas consumindo o líquido de cor amarela que entrava pelas minhas veias. Perdi as forças e tudo que me sobrava era a vontade de ir embora,no sentido definitivo da coisa.

A claridade estava pela metade na parede,era fim de tarde,a porta se abriu em um rangido assustador,meu corpo entrou em sinal de alerta,sedento por algum contato,físico,visual,um aceno qualquer de cabeça,apenas a visão de algum outro ser-humano menos miserável que eu,para me convencer que a vida era boa para algumas pessoas.

Ouvi algo se arrastando,como uma cadeira,alguém se sentou,não vi quem era,mas o cheiro o denunciou,era doce,cheiro de rosas. Tentei falar mas me engasguei,ele me pediu silêncio,me pediu calma,mas me recusei a dá-lo qualquer coisa.

- Shh - Alex sussurrou - Vou ler para você.

- Aonde você estava ? - Eu perguntei sentindo uma falta de ar repentina - O que aconteceu ?

Alex ignorou minhas perguntas,se concentrou em abrir o livro,com uma mão o equilibrava e com a outra acariciava os nós dos meus dedos. Sua voz saiu macia,combinou com o que estava sendo narrado,a vida de uma garota que estava desesperada por algo concreto em sua vida,mas que morria de medo de achar essa tal certeza absoluta e a perder.

" Lóri sempre se espantava de como Ulisses a conhecia. Mas apesar de ele poder compreender,receava sua censura ou de que ele desanimasse e a abandonasse,nunca lhe dissera que o "mal" muitas vezes voltava: o ar dentro dela tinha então cheiro de poeira molhada. Vai recomeçar,meu Deus ? Perguntava-se então. E reunia toda a sua força para parar a dor. Que dor era ? A de existir ? A de pertencer a alguma coisa desconhecida ? A de ter nascido ? "

Ele parou,sua voz cessou abruptamente,meus olhos estavam fechados,imaginando que privilégio Lóri tinha de poder se questionar,e que sorte aquela mulher havia ganhado de simplesmente,em um momento de epifania se descobrir. E eu me perguntava,que dor era aquela ?

Um dia ia descobrir. Se Deus existisse e fizesse justiça eu descobriria de onde ela vinha e para onde ela iria.

Descobriria meu caminho entre as pedras.

- Por que parou ?

- Porque era só isso que precisava ouvir.

Alex se levantou,guardou a cadeira,e se foi.

Acho que sua alma era feita de água,porque ele estava sempre evaporando,virando fumaça,sumindo como se não pertencesse a ninguém.

Quem Sou,Maria FlorOnde histórias criam vida. Descubra agora