A solidão é um luxo. Cada dia ao cair da noite ele dormia comigo,porém nenhuma dessas noites ele estava junto á mim. Costumava estar dentro do meu coração,esquentando meus sonhos ruins. Era solitário aonde eu estava. Mas me sentia incrivelmente segura. Gostaria de saber se mais alguém já se sentiu assim,como se o medo que você sentisse fosse aquilo que te protegesse de todo o mal que te cerca. Eu queria ser salva. Levada para longe em uma cena dramática,mas tinha medo de chorar,de repente me veio a mente que havia me tornado frágil demais para sair,me desfiz em terror ao pensar que poderia trincar no mundo lá fora. Porque o nirvana foi feito para quem não tem medo de guerras,se são internas,contra você mesmo,ou externas contra o mundo,eu não sei,mas quem conquista o paraíso são sempre os guerreiros.
Me lembrei de meu pai em um dia ensolarado,o chão era tão quente como o ar,estávamos na varanda enquanto eu chorava baixinho porque os meninos escoteiros disseram que eu era um garoto,e que nunca gostariam de mim. Meu pai ouviu a história e esperou paciente enquanto eu me esvaziava,chorei por um ou dois minutos,senti meu peito soluçar,não sabia porque estava tão triste,eu não gostava de nenhum deles,na verdade eu preferia não ser amiga de ninguém. Mas é diferente,a sensação de rejeitar e ser rejeitado,quando o sentimento é inverso não tem como não se doer.
" Não vai dizer nada papai ? " - Estava ansiosa pelo seu conforto.
" Estou esperando o seu tempo."
Eu me recompus e parei de chorar,meu pai sorriu satisfeito,se levantou e já ia saindo.
" Espera" - Eu o chamei confusa - "Não vai me dizer nada ?"
" Algumas vezes não precisamos de palavras Florzinha,precisamos de tempo".
"Mas eu gosto de ouvir você falar "
Ele gargalhou,uma risada fresca e com gosto de satisfação. Senti suas mãos desarrumarem meus cabelos enquanto ele dizia pensativo.
" Algum dia,em algum lugar. Guarde o que estou lhe dizendo. Alguém vai ser muito grato por te conhecer "
Enquanto estava estirada no chão pensava sobre o quanto de verdades e mentiras ele havia me dito. Meu pai nunca viria me buscar. E se ele não teve compaixão,quem dirá outra pessoa qualquer.
Ouvi batidas discretas na porta. Ignorei. Se me quisessem que entrassem e me arrastassem. Mais batidas,algum sussurro vago,levantei a cabeça para prestar mais atenção,vi sombras por debaixo da porta,senti medo porque não sabia se aquilo vinha da minha cabeça ou se procedia da realidade.
- Ei,garota ! - Uma voz ríspida e impaciente me chamava do outro lado.
"Deixa ela,a garota é perturbada "
"Mas só ela sabe o caminho "
" Essa menina é doida... Quase matou uma enfermeira "
Um jogo de vozes e sombras. Tremia enquanto tentava me levantar,manquei até a porta para conseguir ouvir melhor.
" Cale a boca,se ela estiver ouvindo não vamos ter chance !"
"Se ela estiver ouvindo provavelmente vai nos matar "
" Cale a boca !"
Um silêncio sepulcral se instalou nos dois hemisférios da porta. Eu nem respirava,não me mexia com um medo imaginário da minha loucura ou da minha própria lucidez. Quem quer que fosse também se mantinha em silêncio. Até que ouvi uma voz novamente.
"Acho que ela não está aqui."
"Graças a Deus ! "
"Pare de dizer besteiras,você sabe que ela é nossa única salvação ! "
Eu não sabia de quem eram as vozes ou as sombras,não sabia o significado dos seus sussurros e muito menos o que queriam comigo. Tentei me afastar devagar mas tropecei em meu pés e caí no chão,senti minha costas doerem e minha cabeça latejar,a dor não me incomodava tanto. Na verdade,eu já havia parado de notar qualquer coisa a muito tempo.
'- Garota ?'
Tampei minha boca com as minha duas mãos para não emitir nenhum som.
'- Não sei se está aí. Mas se estiver quero que pense na pergunta que vou fazer. Você gosta deste lugar ? - Vi que ela havia se abaixado e me olhava pela fresta da porta - Se não gosta. Nós podemos te ajudar.'
Passos distantes indicando que já estavam indo embora. Eu não disse nada. Se quer respirei. Eu era poeira em uma ventania de paranoias. Me encontrava em um ânimo caótico,onde meus momentos de paz eram quando estava submersa em uma fina camada de drogas leves e morfina.
Eu era drama,ácido,cansaço e histeria. Não via ninguém que me tratasse bem e tão pouco eu era gentil com qualquer um que se aproximasse. Até nas consultas com minha psicóloga eu me esforçava para ser tão ruim quanto possível. É isso que sobra quando te sugam até o talo. Uma raspa úmida e imunda que se mistura com sua alma e te faz ser prazerosamente uma miserável.
As consultas funcionavam em um quarto fechado,sem muita luz,não muito aconchegante,eu sempre estava presa dos pés a cabeça,a doutora com nome de planeta sempre a uma distância segura,com seu sorriso bonito,me fazendo perguntas que todos já sabiam a resposta.
- Maria,sabia que seus pais estão considerando seu retorno ? Não acha isso ótimo ?
- Não acho que seja verdade.
- Não quer que seja ?
Fiquei imóvel,parei de respirar e olhava fixamente para o teto,desejei que fosse mentira,rezei para que fosse verdade. Explodi em confusão.
- Maria ? Não sente saudades ?
- Está me perguntando se eu sinto ?
Júpiter sorriu e me olhou com sentimento novo,não era pena. Era só ... Vontade de me ver melhor.
- Sinto saudade de quem eu era antes daqui. E sei que as pessoas que eu amei se foram. Elas se foram no momento que me enterraram aqui. Eles me mataram naquele dia.
Ela espremeu seus lábios e me olhou profundamente.
- Por que se importa tanto em me salvar ? - Perguntei já me alterando - Por que isso agora ?
- Não estou tentando te salvar. Estou te ajudando a se salvar.
Ri com escárnio. A doutora Júpiter não conseguia entender que eu não me interessava em ser salva,e muito menos em me salvar. Pelo menos não naquele instante.
- Maria,ninguém pode te salvar de si mesma.
- Então me deixe morrer doutora. Me deixe definhar.
A porta se abriu indicando que o nosso tempo havia acabado. Ela tentou se despedir mas as enfermeiras foram mais rápidas. Simplesmente me tiraram da cadeira e me levaram para o meu quarto. Me deram dois comprimidos azuis e um rosa.
E dormi com aquelas palavras em minha mente.
"Ninguém vai te salvar de si mesma".
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Quem Sou,Maria Flor
RomanceDesde que nasci sabia que existiam possibilidades,números jogados na loteria,sonhos,ilusões,sanidade,loucura,amor. Poesia e arte.Medo. Mas acreditava na pluralidade,na sucessão de fatos que determinavam milhões de coisas. E foi só quando toquei o cé...