Faziam exatamente 237 dias que eu não saía do grande prédio,a luz que eu recebia costumava ser das luzes fluorescentes ou da luz do sol que atravessava as cortinas encardidas da janela do meu quarto. Havia me acostumado com o cheiro de mofo,tomei a penumbra como luz natural. Era assustador ter que me lembrar de como era o mundo lá fora,e mais assustador era saber que não importava como ele estava,eu continuaria presa,exatamente como sempre.
Sentia minhas pernas tremerem enquanto atravessava o corredor,a porta que dava para o pátio cada vez mais perto,conseguia sentir o calor que o sol emanava,era uma energia diferente,completamente pura.
Alex andava ao meu lado,acompanhava meus passos lentos,não falava e também não tentava me ajudar,via que ele se mantinha atento a qualquer movimento que não fosse o nosso. Minha mão pesou na maçaneta e os primeiros raios de sol me atingiram,resfoleguei como se estivesse submersa e dei dois passos desesperados para trás.
Alex já estava do lado de fora,ele abriu os braços e respirou fundo,sorriu para mim enquanto agachava e passava suas mãos na grama verde. Me encolhi no limite da porta o observando,ele parecia livre,não satisfeito,mas livre,como eu queria estar.
- Não tem perigo. - Alex estendeu sua mão - Pode confiar.
Não me movi,meu peito doía pela respiração acelerada,sentia meus músculos enrijecerem,se preparando para correr dali,minhas unhas se cravaram no chão,era duro e machucou até a carne,sentia que não haveria alívio,eu estava sufocada em minha prisão,mas o ar puro havia se tornado nocivo,eu era prisioneira de mim mesma. Sentia fios quentes descerem por meu rosto,sentia o calor do sol,a luz agredia minhas vistas enquanto meu estômago se agitava,se eu saísse,se eu respirasse,se eu vivesse. Não teria volta,sentia que se saísse,seria mais doloroso voltar.
Conseguia ver a decepção em seus olhos enquanto ele se levantava, Alex vinha em minha direção,não sabia o que ele iria fazer,seus olhos estavam vazios,sua boca uma linha tênue de ... Raiva.
- Vem - Ele disse autoritário.
Eu disse "não".Porque não queria sair,não queria ser livre,e não queria obedecer. Queria estar encolhida,digna de pena,com medo do sol e de tudo o que o mundo era. E principalmente, eu não queria o obedecer.
Vi seus olhos se desfigurarem. Suas mãos fortes me puxando para fora,queria ter gritado mas o medo de ser pega pelas enfermeiras era maior que o medo da grama que afagava minhas pernas,era maior que o calor do sol em meu rosto,era maior que o silêncio. De uma maneira irônica,o medo naquela situação havia me salvado.
- Olhe para cima Maria - Alex me segurava em seu colo enquanto eu me debatia. - Olhe para o céu. Olhe !
Ele forçou meus olhos a se abrirem,eu só enxergava o azul,o branco que fazia meus olhos doerem,a luz.
Vivo.
Tudo estava vivo do lado de fora. Não conseguia respirar,parecia um erro muito grande eu deixar qualquer parte tóxica que fosse minha naquele lugar.
Minha boca estava aberta,atônita,sentia as pontas de seus dedos limparem minhas lágrimas, Alex era paciente,me segurou em seus braços enquanto eu não conseguia me mover direito. Estava em choque.
- Está vendo o céu ? - Ele dizia baixo em meu ouvido - Tem a cor dos seus olhos. Maria,olhe para o céu.
- Estou olhando. Eu ... Estou olhando. - Minha voz saía fraca.
Ele guiou minhas mãos pela grama,sentia a textura,o frescor,as cores,uma overdose de sentidos. A melhor overdose que já tive.
- Consegue sentir ? - Alex dizia devagar - Vê,não tem o que temer.
- Eu sei. - Não sabia,mas queria que ele se orgulhasse.
- Tenho uma coisa para mostrar. - Nos levantamos - Fiz para você na verdade.
Não disse nada, estava atônita,o calor esquentava meu corpo me fazendo transpirar,sentia o topo da minha cabeça já coberto com fios pequenos queimar com o sol,precisei apertar os olhos para me acostumar com a luz,eu me sentia em um outro mundo,parecia que só havia luz,só havia cor,eu só enxergava a claridade,meu corpo absorvia toda a luminosidade e eu me sentia cada vez melhor,diferente,me sentia como uma flor,tirando minha energia da luz,fazendo trocas com o ambiente,todo o ar corrosivo de dentro de mim dava espaço a pureza que o próprio espaço preenchia. Senti o vento quente esbarrar em minha pele,fechei os olhos e respirei fundo,seguia Alex,íamos por um caminho estranho,o lugar ficava cada vez mais escondido,até que paramos.
Eram duas árvores enormes,as folhas caíam e formavam uma espécie de cortina entre elas,Alex empurrou o emaranhado de folhas e raízes com cuidado e me deu passagem,seus olhos pareciam em êxtase,como se aquele fosse seu único segredo,o único que finalmente fosse compartilhar. Sentia as raízes e as folhas roçarem em minha pele,o chão era úmido,o lugar era mais parecido com uma tenda,uma caverna feita de árvores,o céu estava encoberto pelas copas das diversas árvores que se agruparam,perdi o ar quando olhei à frente,eram flores,rosas de todas as cores,perfeitamente divididas e encantadoras,era lindo.
- Você fez isso ? - Perguntei sem desviar meus olhos do pequeno jardim.
- Não fique tão impressionada. - Ele disse andando pelas flores - Não é como se eu tivesse muitas coisas para fazer por aqui.
E lá estava,uma brecha,Alex não gostava de falar sobre seu passado,muito menos o motivo de estar ali. E quando surgiam oportunidades de fazer perguntas,eu sempre aproveitava.
- O que você faz aqui ?
- Lá vem você com mais perguntas.
Revirei os olhos impaciente.
- Se te irrita tanto por que não responde de uma vez ? Se responder,prometo que paro de perguntar.
Ele se aproximou o bastante para que eu sentisse seu cheiro,era doce,me fez querer sorrir,e acho que foi o que eu fiz.
- Quer saber por que eu estou aqui ?
Balancei minha cabeça devagar,não me atrevi a falar,tinha medo que minha voz ansiosa o fizesse mudar de ideia. Alex abriu seu sorriso perverso,mas por algum motivo eu soube que aquele era o sinal de que ele não mentiria. O sol não nos alcançava,mas o calor ainda era intenso,o cheiro das rosas me inundava,e eu me sentia em um mundo secreto no meio dos troncos,pisando em raízes,sentindo a umidade que as folhagens passavam.
- Maria,a única razão para eu estar aqui é você.
Aquele sorriso maldoso se alastrando,tomando conta do lugar,ganhando vida,os olhos mais escuros que já havia visto,mais brilhantes,aquela parecia ser a constelação de Marte dentro dos olhos dele,jurava que se o universo fosse tão vazio quanto diziam,seria como os olhos de Alex,e se medissem a profundidade da escuridão,seria a mesma medida dos olhos dele,e se estivessem interessados nos segredos desconhecidos do infinito,já seria o bastante olhar fundo em seu sorriso,era lá que se escondiam as verdades. Não era nos olhos,era na boca,no canto dos lábios.
E francamente,eu não me lembro de ter me apaixonado por ele. Eu só me lembro de segurar as mãos dele muito forte,e perceber o quanto doeria quando eu tivesse que me afastar.
- Mas,por quê ? - Eu insisti.
- Por você. Para te libertar. Quero te fazer livre.
Alex sorria enquanto falava,o garoto de lugar nenhum sorria enquanto me contava seu desejo mais bonito,e o mais impossível.
Eu me sentia um grande cometa em rota de colisão,via o Alex como uma vítima,talvez um planeta que se colocou em meu caminho,e que só esperava o impacto que eu lhe causaria.
Ouvimos um barulho,ele me mandou esperar,sumiu por alguns minutos,senti como se a colisão estivesse prestes a acontecer,minha mente se agitou,e para me distrair contei quantas rosas haviam no pequeno jardim.
Contei cinquenta,eram rosas,vermelhas e azuis,notei que crescia uma rosa branca entre as vermelhas,me agachei,passei meus dedos em suas pétalas,ainda não havia desabrochado,mas já era tão bonita,me lembro de estar absorta,minha mente gravando cada traço daquele lugar,uma mão forte agarrou meu braço,braços em volta do meu pescoço,uma dor absurda em meu pescoço,meus músculos se contraindo,meu corpo se debatendo,até que as forças se esgotaram,meus olhos pesaram,e meu último pensamento foi :
"Alex"
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Quem Sou,Maria Flor
RomansaDesde que nasci sabia que existiam possibilidades,números jogados na loteria,sonhos,ilusões,sanidade,loucura,amor. Poesia e arte.Medo. Mas acreditava na pluralidade,na sucessão de fatos que determinavam milhões de coisas. E foi só quando toquei o cé...