Antes.

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Olhava o reflexo do espelho com os olhos vidrados,era meu aniversário de treze anos,sufoquei as lágrimas de medo que se juntavam em meu peito.Já fazia um bom tempo que não chorava pelos olhos,só pela alma,pelo peito,pelo coração. Meus olhos azuis estavam foscos,sem brilho nenhum. Tudo a minha volta era mórbido,todo o meu quarto parecia uma cena de filme de terror,a janela ainda estava despedaçada,o meu rosto ainda estava machucado,e eu ainda me lembrava do sorriso amedrontador que cintilava maldade.

Colocava o uniforme com vagareza proposital,a escola não era melhor,era apenas um campo de batalha maior do que meu quarto,eu não tinha amigos,desde que minha fama de louca se espalhou ninguém falava comigo.

Ergui minha mão em direção ao espelho e toquei o vidro,era frio e liso,exatamente como a ponta de uma faca.Meus pensamentos vagavam pelo meu reflexo.

- Anastásia - Minha mãe me chamou do lado de fora do quarto.

Já fazia um tempo que ela não entrava no meu quarto,acho que minha mãe tinha medo do que poderia encontrar.

- Pode entrar mãe.

Ela abriu a porta com cuidado,percorreu toda a extensão do quarto,seus olhos pararam assustados na janela quebrada,ela levou a mão até a boca em um ato fracassado de esconder o assombro que a atingiu.

- Está tudo bem mãe,foi só o vento.

Ela forçou um sorriso,seus olhos estavam molhados,e sua boca parecia engessada em uma curva medonha. Me deu calafrios.

- Anastásia precisamos ir.

Ela não olhou para mim,nossas conversas eram monossilábicas,eu gostaria de conversar com ela,mas minha mãe morria de medo de mim,ou do que eu poderia fazer comigo mesma. Segundo ela, eu era uma bomba relógio,e quando explodisse ia destroçar tudo a minha volta.

- Tchau Anastásia. - Ela disse sem olhar para mim.

Segui em frente.

O sinal tocou,o barulho entrou pelos meus tímpanos causando uma acesso de horror em meus nervos,olhei em volta e tudo parecia oscilar,me apoiei na parede,contei até dez,minha visão voltou ao normal e eu continuei andando até a minha sala.

Haviam vinte alunos,quatorze meninos e seis meninas,os garotos nessa idade podiam ser muito maus,e as garotas só conseguiam se enturmar se fizessem parte do grupo de pessoas que não conversavam comigo. Eu fui taxada de maluca desde o dia que uma das meninas me viu tomando pílulas calmantes. Remédios tarja preta são para pessoas mentalmente desequilibradas. Para mim tudo bem,o desequilíbrio faz parte da vida.

Me sentei na cadeira sem nem ao menos olhar para o lado. A aula começou e eu me afundei em palavras,números e regras.

Estava resolvendo uma das inúmeras equações que o professor de matemática havia passado,a classe estava em silêncio,e tudo que eu ouvia era um assobio de longe,levantei minha cabeça e não havia ninguém,o som aumentava a medida que eu procurava,olhei de um lado para o outro,uma garota sentada ao meu lado perguntou se estava tudo bem, eu disse "claro",segurei meu lápis com força enquanto o assobio se aproximava,inundava meus ouvidos,chegava mais perto,me cercava por todos os lados,me encolhia na cadeira e tentava contar até dez.

O sinal tocou e dissipou o som melódico e mórbido que me seguia. Saí da sala praticamente correndo. Corria cegamente pelos corredores,ia em direção a porta como se aquilo me salvasse,trombei com a monitora,ela me deu um olhar reprovador.

- Senhorita Linsco,sua mãe disse que não poderá te buscar.

- Tudo bem.

Segui o caminho sozinha,andava perto da linha férrea,chutando os cascalhos,um vento frio passou e levantou meus cabelos,levantei minha mão e senti a brisa gélida se esgueirar por entre meus dedos. Avistei um homem entre os trilhos,seu rosto estava escuro,não enxergava suas feições,parei de andar quando vi o vislumbre de um sorriso.

O pânico se apoderou do meu corpo,pensei em correr mas,eu estava cansada,estava exausta de me sentir perseguida,de me sentir observada,por não saber quem ele era,ou o quê.

- Quem é você ?! - Gritei com todas as minhas forças.

Ele não respondeu.

Fui em sua direção,corria e gritava,mas quanto mais o perseguia mais ele se distanciava,tropecei em um dos sobressaltos do trilho. Senti meus joelhos arranharem,minhas mãos sangravam,me levantei cambaleando.

- Não fuja ! Não se atreva ! - Eu gritava - Quem é você ?!

A sua figura era obscura,seu sorriso era doentio,seu corpo era longo e estreito,eu andava mancando em sua direção,seu rosto começava a brilhar,uma luz cegante que me impedia de enxergar tudo à minha frente. E então,quando estava prestes a toca-lo um som ensurdecedor encheu todo o espaço,pensei ser um grito mas não havia ninguém ao redor,o grito feria meus ouvidos e a luz se intensificava,o chão parecia tremer,os cascalhos chacoalhavam,parei por um instante vendo a luz se aproximar rapidamente,como se estivesse prestes a me engolir,o homem não estava em lugar nenhum.

Tudo se misturava,a fumaça se fundia com a buzina ensurdecedora,a luz me cegava,e por um instante eu achei que aquele seria o fim,a minha loucura finalmente havia se tornado minha ruína,meu corpo se curvou,desistindo,a canção de ninar me encantou em meus últimos segundos,e quando não havia nenhuma outra esperança,eu fui atingida por um corpo estranho,um homem,que não era ilusão,estava em cima de mim e me protegia do trem que passava acelerado ao nosso lado. Ele não se moveu até o trem todo passar,ele protegia meu corpo com o seu,seus olhos eram pura adrenalina,seu corpo estava rígido,e eu sentia o chão abaixo de mim tremer com o trem,sentia a areia seca se misturar com meu cabelo,as feridas ficavam mais encardidas,eu sentia que o céu ria da minha condição,o sol queimando as nossas cabeças como se fossemos bonecos.

O trem passou,o homem se moveu,me examinou em silêncio,se levantou tão rápido que me assustou.

- O que você estava pensando ?!

Ele gritou.

Eu assistia aquela cena alheia a tudo à minha volta.

- Menina ! Olhe para mim ! Você não pode andar nos trilhos ! O trem estava apitando para você ! O que você queria ?! Você queria morrer ?

Ele chutou o chão de terra,com raiva de mim,com raiva do trem,com raiva do sol quente em nossas cabeças,com raiva dele mesmo por ter escolhido aquele maldito caminho aquela tarde.

- Vem. Vamos. - Ele se virou e começou a andar em direção à rua.

Eu estava estática,eu não sentia meu corpo,e parecia que de alguma forma minha alma havia se descolado de mim,eu não estava ali.

- Ei ! Levanta garota !

Ele veio em minha direção e me pegou pelo braço,me levou até o carro e me pôs sentada no banco. Nossas roupas estavam esfarrapadas e sujas. E no caminho de casa tudo que eu ouvia eram palavrões e maldições que ele gritava.

E tudo o que eu consegui dizer foi :

- Eu não estava tentando me matar

Ele se calou e esperou que eu prosseguisse. Respirei fundo e continuei.

- Tinha um ... Uma coisa nos trilhos. Eu ... Eu juro que eu vi. Era uma espécie de homem,eu não sei,eu só sei que ele está em todo lugar. E eu não vi o trem. Eu juro que não.

Sem que eu percebesse as lágrimas estavam descendo pelo meu rosto,eu podia sentir a dor dos arranhões. Eu não tinha visto o trem.

- Você não viu o trem ? Aquele trem ? O trem gigante que faz um barulho ensurdecedor ? Você simplesmente não o viu ?

Não me atrevi a responder. Ele me olhava perplexo,sua voz se elevava e suas mãos apertavam o volante,eu me encolhi no banco do carona desejando estar em casa.

Seria melhor ter desejado outra coisa.

Quem Sou,Maria FlorOnde histórias criam vida. Descubra agora