Minha cabeça doía enquanto abria meus olhos,minha visão estava embaçada,e a luz artificial me incomodava. Tentei me levantar mas minhas mãos e meus pés estavam presos a uma maca. Olhei ao redor e parecia estar em uma enfermaria. Tudo estava branco,o chão,o teto,os leitos,tudo. Minha cabeça pinicava e eu me sentia diferente,quase como se tivesse acabado de nascer. Usava uma roupa bizarra,um macacão marrom. Forcei meus braços mas estavam bem presos,assim como meus pés.
De supetão a porta se abriu,uma mulher não muito nova entrou,não parecia ansiosa por me ver,ela não falou comigo,outras duas mulheres,bem mais jovens entraram logo em seguida,elas se posicionaram ao meu lado,não disseram uma palavra.
A mulher mais velha mexia em papéis e fichas enquanto as enfermeiras me observavam. Não senti segurança em nenhuma delas. Na verdade,me senti mais ameaçada.
- Quem são vocês ? - Disse com a voz firme.
Não houve resposta,o silêncio me irritou,a falta de sentimentos fazia com que meu peito espumasse de raiva,a forma com que a mulher mexia nos papéis totalmente apática,o fato de duas jovens estarem paradas esperando instruções de como me tratar me enchia de um sentimento ruim. E tudo o que eu queria era destruir.
Me debati na cama,forçava meus braços na esperança supérflua de me libertar. As garotas que se vestiam como enfermeiras se entreolharam esperando ordens,a mulher não se incomodou,batia minha cabeça repetidamente no travesseiro e gritava,meu corpo se mexia de uma forma doentia. Não havia chances para mim. E todas nós sabíamos disso,mas por um descuido da lógica um dos meus braços se soltou,aquele um segundo de incredulidade preencheu nossos olhos,até que mais rápido do que nunca livrei meu outro braço,as duas jovens se jogaram contra o meu corpo,eu gritei enquanto socava uma delas,continuava me debatendo,a mulher pela primeira vez pareceu estar ciente da minha presença,seus olhos se encheram de insatisfação,mas ela não mexeu um músculo,uma das garotas tentou prender minha mão e por um descuido se aproximou do meu rosto,e em um ato de fúria mordi sua bochecha,ela gritou,havia dor em cada centímetro dela,minha boca tinha o gosto do sangue de outra pessoa.
- Já chega - A mulher disse.
Senti algo perfurar minha cocha e arqueei as costas por causa da dor súbita.
- O que é isso ?
- É o que garotas rebeldes recebem quando fazem esse tipo de coisa.
- Mas eu ... Eu acabei de chegar..
- Exatamente. Você acabou de chegar. E vai aprender a viver aqui.
Meus olhos estavam pesados e eu me lembro de não enxerga-la como um ser-humano,parecia mais com uma estátua viva,podia se mexer,comer,respirar,mas sempre teria aquele olhar paralisado,o rosto petrificado como se estivesse morta.
- Esse comportamento é inaceitável,e quanto mais você resistir mais vai ficar aqui.
Me lembrei da minha mãe,e cogitei a ideia de uma amizade entre as duas. Eram totalmente indiferentes aos sentimentos.
Havia perdido os sentidos.
Acordei novamente,mas estava em outro lugar,mais escuro,menor e se parecia mais com uma cela do que com um quarto,só tinha uma janela com barras de ferro grossas de alto a baixo,a porta estava trancada. Olhei a minha volta e me senti como um animal enjaulado. Finalmente entendi porque meu pai não gostava de ter animais de estimação,ele costumava dizer que eram felizes demais para serem trancados por nós.
A lembrança de um dia ensolarado me aqueceu naquele momento,nós dois estávamos andando na beirada de uma avenida movimentada,ele segurava em minha mão enquanto me testava com os verbos em espanhol,ele dizia uma palavra e eu a conjugava no tempo que ele me dissesse,se era no passado,no futuro,ou no presente. Eu me sentia a pessoa mais inteligente do mundo quando ele sorria com aprovação. Não era o fato de eu acertar que me fazia sentir inteligente,era a aprovação dele com seu sorriso peculiar,eram as dobras de seus olhos que faziam pequenos caminhos quando ele alargava os lábios,era só isso. Ou isso tudo.
Andávamos distraídos,quando vimos um caminhão enorme,estava parado,dentro dele parecia haver uma algazarra,um barulho inquietante de asas,pios,e cantos. O sorriso de meu pai morreu. " O que aconteceu papai ?" ele apertou minha mão e disse " Nada,só fiquei triste". Perguntei o motivo e ele me explicou que não conseguia ficar feliz quando sabia que haviam pássaros presos em jaulas,destinados ao silêncio das gaiolas.
" Como podemos resolver isso papai ?"
"Não existe um jeito para resolver. Infelizmente esse é o mundo dos adultos,um lugar que só se pode indignar-se"Demos alguns passos,olhei mais uma vez para o grande caminhão,notei que não havia motorista,não tinha ninguém,quase como se estivesse abandonado.
" Papai. Está abandonado"
Ele olhou com os olhos mais pensativos que já havia visto. Pensou por um instante,olhou para os lados,segurou forte a minha mão e me puxou para atravessarmos a rua. Quando chegamos ao outro lado ele me olhou sério.
"Esqueça o que eu falei sobre o mundo dos adultos. Se quiser viver,terá que ser você. Não seja um adulto,seja você "Ele tateou o caminhão por algum tempo,procurando alguma coisa,vi o prazer em seus olhos quando ele achou a válvula. Ele me mandou sair da frente,fui para a lateral do caminhão,ele puxou a válvula,uma confusão de pássaros de todos os tipos e cores saiu em um furor de grasnadas e bater de asas. O frenetismo deles nos contagiou. Meu pai se encontrava no meio da rebelião dos pássaros,ele abriu os braços e gargalhou,gritava como se ele mesmo estivesse voando em busca da liberdade,não havia sobrado um pássaro se quer. E naquela tarde eu havia aprendido alguma coisa importante. Não é algo que se coloca em uma frase bem feita,subentendesse a lição nas entrelinhas da história. Mas com meu pai se aprendia mais nas entrelinhas do que nas linhas.
Me sentia como um desses pássaros presos em um caminhão gigante. Só esperava que em algum momento minha prisão tirasse a felicidade do rosto de alguém,e que a incomodasse tanto que ela teria que abrir esse caminhão,e nesse dia eu voaria mais rápido que todos.
Ainda estava claro lá fora,olhei a posição do sol tanto quanto possível,já que a janela não era tão grande,me vi grata por ter obedecido meu pai e entrado no grupo de escoteiros,eu era a única menina entre dez meninos,não gostei da ideia no começo mas meu pai disse que alguns paradigmas precisavam ser quebrados naquele grupo,naquele momento não estava interessada nos paradigmas que ajudei a desconstruir,só agradecia por ter aprendido a olhar as horas pela posição do sol,segurei minhas mãos na barra na ponta dos pés e puxei meu corpo para cima,olhei rapidamente para o céu,o sol estava baixo e eu tive quase certeza de que eram cinco horas da tarde. Deixei que meu corpo caísse no chão,pela primeira vez tive vontade de chorar,me via naquele momento em um beco fechado,sem nenhuma alternativa boa o suficiente para considerar.
Passei a mão em minha cabeça e senti o couro áspero,meu coração parou,senti que todo o meu corpo queimava,não havia mais um fio de cabelo. Minha cabeça era agora,ornada por um campo áspero e nada angelical,senti que era dominada pela raiva,jogava meu corpo contra a porta,gritava descontroladamente. Tudo que eu pensava era "destruir,destruir,destruir". Olhei ao meu redor e era como se eu fosse um animal,as paredes pareciam menores e nada servia de consolo.
Pensei milhões de vezes que seria melhor a morte que a prisão. Mas então,morreria e continuaria presa.
Peguei o colchão fino e fedorento que estava sobre a cama de molas enferrujadas,o rasguei com minhas unhas,espumas de péssima qualidade se espalhavam pelo chão enquanto meu ódio se fazia literal em meu ser. Eu era a personificação da dor,e o exemplo perfeito de que se mal cuidada a dor poderia facilmente ser transformada em puro ódio mortal.
Acabei dormindo no chão,e a única coisa que me consolava era a imagem dos pássaros voando em liberdade enquanto meu pai sentia a emoção de braços abertos.
Pensei que se ele se comovia com os pássaros,então é claro que não descansaria até conseguir me ter livre de novo.
Perdoa a demora e não desiste de mim. Beijo na testa.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Quem Sou,Maria Flor
RomanceDesde que nasci sabia que existiam possibilidades,números jogados na loteria,sonhos,ilusões,sanidade,loucura,amor. Poesia e arte.Medo. Mas acreditava na pluralidade,na sucessão de fatos que determinavam milhões de coisas. E foi só quando toquei o cé...