Capítulo Três

37 0 0
                                    

- Stingo! oh, Stingo!
Nessa mesma manhã, só que mais tarde - uma ensolarada manhã de junho - ouvi as vozes
deles do outro lado da minha porta, acordandome. A voz de Nathan, seguida da voz de Sofia.
- Stingo, acorde! Vamos, acorde, Stingo!
A porta, embora não trancada, estava com a corrente de segurança passada e, do lugar onde
eu estava, recostado no travesseiro, podia ver o rosto sorridente de Nathan espiando através da
abertura na porta.
- Pule da cama, vamos! - disse a voz. - Coragem, garoto. De pé! Vamos até Coney
Island!
E, atrás dele, Sofia, ecoando Nathan com sua voz fina. - Pule da cama, vamos! De pé!
A ordem foi seguida de uma risadinha cristalina. Nathan começou a sacudir a porta e a
corrente.
- Vamos, Otário! Pule da cama! Você não pode ficar dormindo o dia todo, como um velho
sulista preguiçoso!
Disse isso numa voz carregada do sotaque xaroposo, molenga, do interior dos estados do sul,
sotaque esse que, para os meus ouvidos sonolentos mas sensíveis, era o produto de extraordinária
capacidade de imitação.
- Sacuda a preguiça dos ossos, garoto! - continuou ele. - Vista logo sua roupa de banho.
Vamos mandar o velho Pompey atrelar o pangaré e fazer um piqueniquezinho na beira do mar!
Sem querer exagerar, eu estava muito pouco inclinado a me deixar levar por ele. O seu tom
insultuoso, na noite anterior, o seu modo de tratar Sofia, durante a noite inteira tinham invadido os
meus sonhos, sob as mais diversas máscaras e alusões. E agora, acordar e ver o mesmo rosto citadino
de meio de século, dizendo aquelas imagens líricas de antes da guerra, era algo simplesmente além das minhas forças. Pulei da cama e atirei-me contra a porta.
- Fora daqui! - berrei. - Me deixem em paz! - Procurei bater com a porta na cara de
Nathan, mas ele tinha um pé enfiado na fenda. - Fora daqui! - gritei de novo. - Você tem mesmo muita cara de pau, pra fazer isso! Tire o maldito pé da porta e me deixe em paz!
- Stingo, Stingo! - continuou a voz, já de volta ao sotaque do Brooklyn. - Calma, Stingo.
Não quis ofender. Vamos, garoto, abra essa porta. Vamos tomar um café juntos, fazer as pazes e ser bons amigos.
- Não quero ser eu amigo! - berrei. Tive um ataque de tosse. Meio sufocado pela nicotina e o alcatrão de três maços diários de
Camels, fiquei espantado de continuar sendo coerente. Enquanto recuava, estranhamente
envergonhado pelo ruído pigarreante que saía de mim, comecei a me conscientizar - com desgosto
- de que o atroz Nathan se materializara, como um gênio mau, ao lado de Sofia e parecia ter de novo
assumido a sua posse e comando. Durante pelo menos um minuto, talvez mais, estremeci e arquejei,
vítima de um espasmo pulmonar, enquanto suportava a humilhação de ver Nathan representar o papel
do doutor em medicina:
- Você está com o famoso catarro dos fumantes, Otário. Tem o rosto abatido dos
dependentes de nicotina. Olhe para mim, Otário, deixe-me fitá-lo bem nos olhos.
Olhei para ele com as pupilas contraídas de raiva e ódio.
- Não me chame... - comecei, mas as palavras foram abafadas por outro ataque de tosse.
- Você está mesmo abatido - continuou Nathan. - Uma pena, num cara tão simpático. O
ar abatido provém da falta gradual de oxigênio. Você devia parar de fumar, Otário. Causa câncer do
pulmão e doenças do coração.
Em 1947, convém lembrar, o efeito pernicioso do fumo quase não era objeto de estudo,
mesmo por parte dos médicos e, quando alguém falava dos seus malefícios potenciais, era objeto do
ceticismo divertido das pessoas sofisticadas. Punha-se na conta das superstições, como a que dizia que
masturbarse causava acne, verrugas ou loucura. Por conseguinte, embora a observação de Nathan
fosse, na altura, duplamente enfurecedora, acumulando, segundo eu pensava, imbecilidade e
impertinência, vejo agora quão estranhamente pré-científico ela era e quão típica daquele espírito
errante, atormentado, mas afiado e de uma inteligência fulgurante, que eu iria ficar conhecendo bem e
com o qual muitas vezes iria me haver. Quinze anos mais tarde, quando estava em meio a uma bem-
sucedida batalha contra a dependência dos cigarros, lembrei-me das advertências de Nathan -
principalmente daquela palavra, abatido - como se ouvisse uma voz vinda do túmulo. No momento,
porém, a vontade que tive foi de matá-lo.
- Pare de me chamar de Otário - gritei, recuperando a voz. - Sou formado pela
Universidade de Duke. Não tenho que engolir os seus estúpidos insultos. Trate de tirar o pé da porta e me deixar em paz!
- Procurei em vão tirar-lhe o pé da abertura. - E não preciso de conselhos baratos sobre os
cigarros que eu fume ou deixe de fumar - acrescentei, na minha voz tapada e encatarrada.
De uma hora para a outra, Nathan passou por uma notável transformação. De repente, sua
atitude tornou-se civilizada, quase contrita.
- Tá bom, Stingo, peço desculpas - disse ele. - Sinto muito, acredite. Não era minha
intenção ferir-lhe os sentimentos. Desculpe, sim? Não vou mais chamá-lo de Otário. Eu e Sofia só queríamos darlhe as boas-vindas neste belo dia de verão.
Era realmente fascinante a rápida mudança operada nele, e eu podia ter desconfiado de que
estava apenas recorrendo a outra forma de sarcasmo, se o meu instinto não me dissesse que ele estava sendo sincero. Na verdade, tive a sensação de que ele estava tendo uma reação dolorosa, dessas que muitas vezes as pessoas têm após mexerem com uma criança e perceberem que lhe causaram sofrimento. Mas eu não me deixei comover. - Suma - falei, firme e laconicamente. - Quero ficar
só.
- Sinto muito, meu chapa, sinceramente. Estava só brincando, com aquela história do
Otário. Não quis ofendê-lo.
- Não, Nathan não quis ofendê-lo - interveio Sofia.
Saíra de trás de Nathan e colocara-se num lugar onde eu a podia ver claramente. De repente,
algo nela fez com que meu coração sofresse novo aperto. Ao contrário do retrato de sofrimento que ela
apresentara na noite anterior, estava agora alegre e eufórica com a volta miraculosa de Nathan. A tal
ponto, que era possível sentir a força da sua felicidade: fluía do seu corpo em visíveis revérberos e
tremores - no brilho dos olhos, nos lábios cheios de animação e no rubor róseo e exultante que lhe
coloria as faces como se fosse ruge. Essa felicidade, juntamente com o ar de apelo do seu rosto
radiante, era algo que, mesmo no meu irritadiço estado matinal, me parecia muito sedutor - ou
melhor: irresistível.
- Por favor, Stingo - pediu ela. - Nathan não quis ofendê-lo, nem magoar seus
sentimentos. Nós só queríamos ser seus amigos e convidá-lo a aproveitar o belo dia de verão. Por
favor, venha com a gente!
Nathan reconsiderou - senti o pé dele afastar-se da porta - e eu reconsiderei, não sem um
choque de dor, ao vê-lo agarrar Sofia pela cintura e começar a beijar-lhe a face. Com o preguiçoso
apetite de um bezerro contemplando uma ração de sal, esfregou o avantajado nariz no rosto dela,
fazendo com que Sofia emitisse uma alegre risada, semelhante a um fragmento de canção natalina e,
quando ele lhe lambeu o lóbulo com a ponta rosada da língua; ela fez a mais fiel imitação do ronronar
elétrico de um gato que eu jamais vira ou ouvira. Não dava para entender. Algumas horas antes, ele
parecia querer degolá-la.
Sofia acabou vencendo. Fui derrotado por sua súplica e grunhi um relutante "Ok".
Mas, quando já ia desprender a corrente de segurança e deixá-los entrar, mudei de ideia.
- Fora! - falei para Nathan. - Você me deve desculpas.
- Eu já pedi desculpas - retrucou ele, em tom de deferência. - Já disse que nunca mais o chamaria de Otário.
- Não se trata só disso - repliquei. - Aquela história sobre linchamentos e tudo o mais que você falou sobre o Sul. Tudo um insulto. Imagine se eu lhe dissesse que uma pessoa com um nome como
Landau só podia ser um miserável e gordo dono de prego, vivendo de enganar e roubar
cristãos? Você ficaria possesso, não? Entende agora por que me deve desculpas?
Embora vendo que estava sendo chato, resolvi fincar pé.
- Ok, peço desculpas por isso, também - disse ele calorosamente. - Sei que fui grosso.
Vamos esquecer, tá? Peço que me perdoe, sinceramente. Estávamos falando sério, quando dissemos
que gostaríamos que viesse conosco hoje. Escute, por que não pensa no caso? Ainda é cedo. Que tal se
vestir com calma e depois subir até o quarto de Sofia? Poderíamos tomar uma cervejinha, ou um café,
antes de irmos até Coney Island. Almoçaríamos num ótimo restaurante, especializado em peixes e
mariscos e, depois, daríamos um pulo na praia. Tenho um amigo que ganha um dinheirinho extra aos
domingos, trabalhando como salva-vidas. Ele deixa a gente ficar numa parte especial da praia, onde
ninguém joga areia no seu rosto. Que tal?
Fazendo-me de rogado, respondi:
- Vou pensar.
- Ora, anime-se!
- Muito bem - concordei. - Eu vou.
E acrescentei um morno "Obrigado".
Enquanto fazia a barba e me arrumava, refleti, espantado, naquela estranha mudança. O que
teria provocado tal gesto de boa vontade? Teria Sofia insistido com Nathan para que me chamasse,
talvez para se redimir da grossura da noite anterior? Ou estaria ele simplesmente querendo obter
alguma coisa mais?
Eu já estava o suficientemente familiarizado com os costumes nova-iorquinos para imaginar
que Nathan fosse do tipo que está sempre buscando maneira de afanar dinheiro dos outros. (O que me
fez checar os poucos mais de quatrocentos dólares que eu tinha escondido nos fundos do armarinho do
banheiro, numa caixa de ataduras Johnson & Johnson. A quantia, em notas de dez e vinte dólares,
estava intacta, fazendo com que, como de hábito, eu murmurasse umas palavrinhas de agradecimento
ao meu espectral patrono Artiste, durante todos aqueles anos transformando-se em pó lá na Geórgia.)
Mas a suspeita parecia pouco provável, depois que Morris Fink comentara o bom estado das finanças
de Nathan. Não obstante, todas essas possibilidades me passaram pela cabeça, enquanto me preparava,
com certa apreensão, para acompanhar Sofia e Nathan. Na verdade, achava que devia ficar e tentar
trabalhar, procurar escrever algumas palavras naquela amarelada página de bloco, mesmo que fossem
apenas anotações ao acaso e sem sentido. Mas Sofia e Nathan tinham, por assim dizer, sitiado minha
imaginação. O que realmente a povoava era a estranha détente entre os dois, restabelecida poucas
horas depois da briga amorosa mais impressionante que eu já vira fora da ópera italiana. Considerei,
então, a possibilidade de ambos estarem loucos, ou condenados, como Paolo e Francesca, a um terrível
amor de perdição.
Como de costume, Morris Fink foi elucidador, embora não particularmente brilhante,
quando, ao sair do quarto, dei com ele no corredor. Enquanto trocávamos lugares-comuns, apercebi-me, pela primeira vez, de um sino de igreja repicando, ao longe, mas distintamente, para os lados da Flatbush Avenue. Ao mesmo tempo pungente e reminiscente dos domingos no Sul, fez com que eu ficasse confuso, pois tinha a firme impressão de que as sinagogas não possuíam campanários. Fechei
por um momento os olhos, pensando numa feia igreja de tijolos, no silêncio piedoso dos domingos, nas ovelhinhas cristãs, com pernas semelhantes a caules, dirigindo-se para o tabernáculo
presbiteriano, com seus livros de história hebraica e seus catecismos judaicos. Quando abri os olhos,
Morris estava explicando:
- Não, não é uma sinagoga. É a Igreja Reformada Holandesa, que fica na esquina de Church
Avenue com Flatbush. Só tocam o sino aos domingos. De vez em quando, vou até lá, quando há
serviço. Ou Escola Dominical. Se esgoelam todos cantando "Jesus Me Ama", coisas assim. As garotas
são um troço.
Muitas têm cara de quem precisa de uma transfusão de sangue... ou de uma injeção de carne.
- Deu uma risada lasciva. - Mas o cemitério é um bocado agradável. No verão, faz fresco, lá. Tem
muita garota judia que vai até lá de noite, pra trepar.
- Pelo que vejo, tem de tudo no Brooklyn, não? - perguntei.
- Pois é. De tudo quanto é religião. Judeus, irlandeses, italianos, Igreja Reformada
Holandesa, negros... de tudo. Desde que a guerra acabou, os negros estão invadindo. Principalmente
Williamsburg, Brownsville, Bedford-Stuyvesant. Macacos, é o que eles são. Rapaz, como odeio esses
negros!
Verdadeiros macacos!
Estremeceu e, mostrando os dentes, fez o que me pareceu ser uma careta simiesca. Ao
mesmo tempo, os acordes majestosos, comemorativos, da Festa Aquática de Händel, desceram a
escada, vindos do quarto de Sofia. E, igualmente vinda de cima, chegou aos meus ouvidos a risada de
Nathan. - Se não me engano, você ficou conhecendo Sofia e Nathan - disse Morris.
Confessei que sim, que, de certa maneira, os tinha conhecido.
- Que é que você achou do Nathan? Não é esquisito? - Uma luz brilhou nos seus olhos
mortiços, seu tom de voz tornou-se conspirador. - Sabe o que acho que ele é? Um golem. Uma
espécie de golem.
- E que diabo vem a ser um golem? - perguntei.
- Bem, não dá para explicar exatamente. É uma espécie de... de monstro judeu. Inventado,
como o Frankenstein, só que por um rabino. É feito de barro ou de coisa parecida, só que parece
humano. De qualquer maneira, não se pode controlá-lo. Às vezes, ele age normalmente, como um ser
humano normal.
Mas, no fundo, é um monstro, isto é, um golem. Nathan é assim. Age como se fosse um
maldito golem.
Com um vago sentimento de reconhecimento, pedi a Morris que explicasse melhor a sua
teoria.
- Bem, esta manhã, bem cedo, acho que quando você ainda estava dormindo, vi Sofia
entrar no quarto de Nathan. Meu quarto fica do outro lado do corredor, de modo que dá para ver tudo.
Deviam ser sete e meia ou oito horas. Tinha-os ouvido brigar, ontem à noite, de maneira que sabia que
Nathan fora embora.
Agora, imagine o que vi? Sofia chorando, baixinho, mas ainda chorando. Entrou no quarto
de Nathan, deixou a porta aberta e se deitou. Adivinhe onde ela se deitou? Na cama? Não! Que nada!
No chão!
Deitou-se no chão, de camisola, toda enroscada como um bebê. Fiquei olhando para ela uns
dez, quinze minutos, pensando: que loucura, ela estar deitada no chão do quarto de Nathan. E, de
repente, ouço um carro encostar, na rua, olho pela janela e vejo Nathan. Você escutou, quando ele
chegou? Fez o maior barulho, batendo com os pés, com as portas do carro e falando consigo mesmo!
- Não, eu estava ferrado no sono - respondi. - Os meus problemas de barulho, lá na
cratera, como você diz, são principalmente verticais. Bem em cima da minha cabeça. O resto da casa
eu não escuto, graças a Deus.
- Bem, Nathan subiu a escada e foi direto para o quarto. Entrou e encontrou Sofia, lá
dentro, toda enroscada no chão. Aproximou-se dela, que estava acordada, e disse: "Fora daqui, sua
puta!" Sofia não respondeu, continuou chorando, eu acho, e Nathan repetiu: "Fora daqui, sua puta.
Estou indo embora."
Sofia continuou calada e eu ouvi ela chorar cada vez mais e Nathan falar: "Vou contar até
três e, se você não se levantar e cair fora daqui, vou lhe dar um chute que vai fazer você voar longe".
Contou até três, ela não se mexeu e ele ajoelhou-se e começou a bater nela.
- Enquanto ela estava no chão? - interrompi.
Comecei a desejar que Morris não tivesse sentido necessidade de me contar aquela história.
Meu estômago contraía-se, enojado. Embora não fosse um homem violento, quase me deixei dominar pelo impulso de subir até o quarto de Nathan e, ao som da bourrée da Festa Aquática, exorcizar o golem, batendo-lhe nos miolos com uma cadeira.
- Você está me dizendo que ele bateu na moça, enquanto ela estava caída no chão?
- É. Bateu. E com força, bem no meio da cara.
- Por que é que você não interveio? - perguntei.
Ele hesitou, pigarreou e disse:
- Bem, se você quer mesmo saber, fisicamente eu sou um covarde. Tenho um metro e
sessenta e oito e esse Nathan é um baita filho-da-mãe. Mas vou-lhe dizer uma coisa: pensei em
chamar a polícia. Sofia estava começando a gemer, aqueles tapas na cara deviam doer pra caramba, de
modo que decidi descer e ligar para a polícia. Eu estava sem roupa, não uso roupa para dormir, de
maneira que entrei no banheiro, vesti um robe e calcei uns chinelos, procurando andar depressa,
achando que ele podia dar cabo dela.
Devo ter demorado pouco mais de um minuto, não conseguia encontrar os malditos chinelos.
Aí, quando voltei para junto da porta, imagine o que vi?
- Não posso imaginar.
- Dessa vez, era o contrário. Dessa vez, era Sofia quem estava sentada no chão, com as
pernas cruzadas, e Nathan agachado, com a cabeça enterrada entre as pernas dela. Chorando! Chorando como uma criança, com a cara mergulhada entre as pernas dela, enquanto Sofia lhe
acariciava os cabelos e murmurava: "Tá tudo bem, tá tudo bem". Ouvi Nathan dizer: "Meu Deus,
como foi que eu fiz isso? Como é que eu pude machucar você?" Coisas assim. "Eu amo você, Sofia, eu
a amo muito." E ela repetindo:
"Tá tudo bem" e ele com o nariz entre as pernas dela, chorando e dizendo sempre: "Oh,
Sofia, eu gosto tanto de você!" Ach, quase pus tudo para fora.
- E depois?
- Depois, não aguentei mais. Quando eles acabaram com aquilo e se levantaram do chão,
saí, comprei o jornal de domingo, fui até o parque e fiquei uma hora lendo. Não queria mais nada com
nenhum daqueles dois. Mas você entende o que quero dizer? - Fez uma pausa e os seus olhos
sondaramme, buscando uma interpretação para aquilo. Como eu não a desse, Morris declarou,
enfático: - Se você quer saber a minha opinião, ele é um golem. Um maldito golem.
Subi a escada envolto numa onda negra de desencontradas emoções. A mim mesmo dizia
que não podia me envolver com aquelas personalidades doentias. Apesar do impacto que Sofia causara
na minha imaginação e apesar da minha solidão, eu estava certo de que seria loucura procurar a
amizade daqueles dois. Sentia isso não só por ter medo de ser sugado por um relacionamento tão
volátil e destruidor, como por ter de enfrentar o duro fato de que eu, Stingo, tinha mais o que fazer.
Mudara-me para o Brooklyn ostensivamente "para pôr as minhas entranhas para fora, escrevendo",
conforme dissera o velho Farrell, e não para bancar o extra num melodrama de terceira classe. Resolvi dizer-lhes que não iria com eles a Coney Island. A seguir, daria um jeito de pô-los, polida mas decisivamente, para fora da minha vida, tornando bem claro que eu era uma alma solitária que não queria ser perturbada.
Bati à porta e entrei na hora em que o último disco estava terminando de tocar e a grande
barca, com suas trombetas jubilantes, desaparecia numa das curvas do Tâmisa. O quarto de Sofia encantou-me.
Embora eu seja capaz de reconhecer um monstrengo, tenho muito pouco sentido de "gosto" no que tange à decoração. Mesmo assim, percebi que Sofia tinha conseguido triunfar sobre o inexaurível rosa. Em vez de deixar a cor dominá-la, ela reagira, espalhando pelo quarto tons complementares de laranja, verde e vermelho - uma estante vermelho-cravo aqui, uma colcha cor de abricó ali - e assim vencera o tom onipresente e pueril. Senti vontade de dar uma risada, ao ver como ela imbuíra de alegria e calor aquela horrível tinta de camuflagem da Marinha. E havia flores, flores por todos os lados - narcisos, tulipas, palmas, brotando de pequenos jarros e de nichos nas paredes. O quarto estava cheio do perfume das flores e, embora elas fossem abundantes, não havia nada de
quarto-de-doente no ar. As flores davam-lhe um clima festivo, perfeitamente condizente com a alegria reinante no resto da decoração.
De repente, dei-me conta de que Sofia e Nathan não estavam visíveis. Tentava decifrar o
mistério, quando ouvi um riso abafado e vi um biombo japonês, numa das extremidades do quarto, estremecer de leve. Logo depois, Sofia e Nathan saíam de trás do biombo, as mãos dadas, atirando sorrisos uniformes de artistas de revista, dançando e usando as roupas mais fascinantes que eu jamais
vira. Mais parecendo fantasias, eram decididamente fora de moda: ele vestia um terno de flanela cinzenta, listrado de branco, do tipo lançado pelo Príncipe de Gales há mais de quinze anos antes; ela, uma saia de cetim plissada e cor de ameixa, da mesma época, um casaquinho branco e uma boina da
cor da saia, inclinada para a testa.
Não obstante, não havia nenhum ar de coisa dada naquelas relíquias; via-se que eram roupas
caras e que caíam demasiado bem para não terem sido feitas sob medida. Senti-me horrível, na minha
camisa Arrow branca, de mangas arregaçadas, e com a calça sem vinco.
- Não se preocupe - disse Nathan, enquanto tirava uma garrafa de cerveja da geladeira e
Sofia colocava queijo e bolachinhas na mesa. - Não ligue para a sua roupa. Só pelo fato de nos
vestirmos assim, não precisa sentir-se deslocado. É uma mania que a gente tem.
Eu me instalara prazerosamente numa poltrona, completamente esquecido de que tinha
resolvido pôr um ponto final nas nossas breves relações. O que provocara aquela reviravolta é quase
impossível de explicar. Acho que uma combinação de coisas: aquele quarto encantador, o inesperado
das roupas, a cerveja, o calor demonstrado por Nathan e a sua ansiedade por fazer as pazes comigo, o
efeito calamitoso que Sofia tinha sobre o meu coração - tudo aquilo deitara por água abaixo a minha
força de vontade. Uma vez mais eu estava nas mãos deles.
- É apenas um hobby nosso - continuou ele, por cima, ou melhor, através de um límpido
Vivaldi, enquanto Sofia se movimentava na kitchenette. - Hoje, estamos usando roupa dos anos
trinta, mas temos trajes da década de vinte, do período da Primeira Guerra, do fim do século e até
mesmo de antes.
Naturalmente, só nos vestimos desse jeito aos domingos ou feriados, quando saímos juntos.
- E as pessoas, não olham? - perguntei. - E não sai muito caro?
- Claro que olham - respondeu ele. - Se não olhassem, não teria muita graça. Às vezes,
como acontece com a nossa roupa do fim de século, quase paramos o trânsito. Quanto a ser caro, não
sai muito mais caro do que uma roupa normal. Tenho um alfaiate, na Rua Fulton, que faz tudo que lhe
peço, desde que eu lhe dê o modelo.
Assenti com a cabeça. Embora um pouco exibicionista, parecia-me uma diversão inofensiva.
Decerto, sendo ambos de boa aparência e, ainda por cima, com o contraste entre o tom e as feições
levantinas dele e a lourice dela, Sofia e Nathan formavam um par capaz de chamar a atenção,
independentemente do que estavam usando.
- Foi ideia de Sofia - explicou Nathan - e ela tem razão. As pessoas andam pelas ruas
parecendo todas iguais, de uniforme. Roupas como estas têm individualidade, classe. Por isso nos
divertimos quando as pessoas olham para nós. - Fez uma pausa para encher o meu copo de cerveja.
- A roupa é importante. Faz parte do ser humano. Pode ser uma coisa bela, que nos dá prazer e que dá
prazer aos outros, embora isso seja secundário.
Bem, é ver para crer, conforme aprendera de pequeno. Roupa. Beleza. Ser humano. Tudo
isso vindo de um homem que, pouco antes, tinha berrado palavras furiosas e, se era possível acreditar
em Morris, infligira um tratamento horrível àquela gentil criatura, que agora arrumava pratos,
cinzeiros e queijo, vestida como Ginger Rogers num velho filme. Agora, ele não podia ser mais
agradável e amável, a tal ponto, que me recostei na poltrona, sentindo-me inteiramente a gosto e, com a cerveja começando a fazer o seu efervescente efeito nos meus membros, admiti para mim mesmo
que o que ele dizia tinha seus méritos. Após a odiosa uniformidade no trajar do pós-guerra,
principalmente numa ratoeira humana como a McGraw-Hill, que mais podia alegrar a vista do que um
pouco de excentricidade, de originalidade?
Uma vez mais (e falo agora com a certeza de quem olha para trás) Nathan augurava um
mundo por vir.
- Olhe só para ela - disse ele. - Não está uma graça? Você já viu boneca igual? Ei,
boneca, venha até aqui!
- Estou ocupada, não está vendo? - retrucou Sofia, andando de um lado para o outro. -
Preparando le fromage.
- Ei! - chamou ele, com um assobio de romper os tímpanos. - Venha cá! - Piscou o
olho para mim. - Não consigo ficar longe dela. Sofia obedeceu e sentou-se no colo dele.
- Me dê um beijo - intimou Nathan.
- Só um - replicou ela, beijando-o de leve no canto da boca: - Pronto! Um beijo é tudo o
que você merece.
Enquanto ela se remexia no colo dele, Nathan mordiscava-lhe a orelha e apertava-lhe a
cintura, fazendo com que o rosto dela se iluminasse, como se ele tivesse apertado um botão.
- Não posso tirar as mãos de você-ê-ê - cantarolou ele.
Como a maioria das pessoas, fico sem graça quando assisto a demonstrações públicas de
afeto - ou de hostilidade - principalmente se sou o único espectador. Tomei um grande gole de
cerveja e, ao desviar os olhos, eles pousaram na grande cama, com sua coberta cor de pêssego, onde
meus novos amigos tinham transado a maior parte daquelas reviravoltas e que fora a monstruosa
causadora de muito do meu recente desconforto. Talvez o meu novo ataque de tosse me tivesse traído,
ou Sofia houvesse reparado no meu constrangimento. De qualquer maneira, ela pulou para fora do
colo de Nathan, dizendo:
- Chega, Nathan Landau. Chega de beijos.
- Chega nada - queixou-se ele. - Só mais um beijinho. - Nem mais um - retrucou ela,
com voz doce, mas firme. - Vamos tomar nossa cerveja com um pouco de fromage e depois pegar o
metrô e almoçar em Coney Island.
- Você é mesmo sem-vergonha - disse ele, em tom brincalhão. - Uma provocadora,
muito pior do que qualquer venta que já saiu do Brooklyn. - Voltou-se e encarou-me com fingida
gravidade. - Que é que você acha disso, Stingo? Cá estou eu, beirando os trinta e perdidamente
apaixonado por uma shiksa polonesa, que tranca o seu tesouro a sete chaves, igualzinho à pequena
Shirley Mirmelstein, que namorei durante cinco longos anos. Que é que acha disso?
E piscou-me de novo o olho.

A Escolha De SofiaOnde histórias criam vida. Descubra agora