Capítulo Doze

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         Às primeiras horas da manhã, após o seu longo solilóquio, tive que pôr Sofia na cama. Eu estava espantado de que, após ter bebido tanto, ela continuasse falando coerentemente mas, às quatro horas da manhã, quando o bar fechou, vi que estava completamente bêbada. Tomamos um táxi de volta ao Palácio Cor-de-Rosa — pouco mais de quilômetro e meio de trajeto — e, a caminho, ela dormiu contra o meu ombro. Consegui fazêla subir a escada, empurrando-lhe a cintura por detrás, mas as pernas dela cambaleavam perigosamente. Soltou um pequeno suspiro quando a ajudei a se deitar, toda vestida, e a vi mergulhar imediatamente numa espécie de coma. Eu também estava bêbado e exausto. Joguei a manta em cima dela e desci para o meu quarto, onde, depois de me despir, caí na cama e dormi como um cretino. Acordei com o sol do fim da manhã no meu rosto e, nos ouvidos, o pipilar dos passarinhos nos áceres e plátanos e o ruído distante de vozes adolescentes — tudo refletido através de um crânio dolorido e consciente da pior ressaca que tinha experimentado nos últimos dois anos. Não é preciso dizer que a cerveja também pode minar o corpo e a alma, se tomada em quantidade suficiente. Sucumbi a uma abrupta e terrível ampliação de todas as sensações: o lençol, sob as minhas costas nuas, parecia feito de barba de milho, o chilrear de um pardal soou como o guincho de um pterodáctilo, a roda de um caminhão, batendo num bueiro, na rua, deu-me a impressão de que eram as portas do inferno se fechando. Todos os meus gânglios tremiam. Uma outra coisa: eu estava louco de desejo, tomado de uma concuspicência induzida pelo álcool. Normalmente vítima de uma luxúria nunca satisfeita — como a esta altura o leitor já deve estar sabendo — eu ficava, durante aquelas felizmente raras crises de pós-alcoolismo, totalmente escravo do impulso sexual, capaz de deflorar uma criança de cinco anos, independentemente do sexo, pronto a copular com quase qualquer vertebrado possuidor de sangue quente. Nem o onanismo podia acalmar aquele imperioso, febril, desejo. Era por demais forte, provinha de fontes demasiado procriadoras para poder ser autossatisfeito. Não acho exagerado descrever esse desvario (pois era um desvario) como primordial: "Eu teria trepado com lama" era a descrição do Corpo de Fuzileiros Navais para um tal estado. De repente, com uma resolução máscula, que me agradou, pulei para fora da cama, pensando na praia e em Sofia, no andar de cima. Pus a cabeça para fora do quarto e chamei o nome dela. Ouvi os débeis acordes de uma peça de Bach. A resposta de Sofia, atrás da porta, embora indistinta, pareceu-me bastante animadora. Recuei e fui cuidar das minhas abluções matinais. Era sábado. Na noite anterior, numa aparente efusão (talvez provocada pelo álcool) de afeto, Sofia me prometera passar todo o fim de semana na pensão, antes de se mudar para o seu novo apartamento, perto de Fort Greene Park. Também concordara, entusiasticamente, em ir comigo à praia. Eu nunca estivera em Jones Beach, mas sabia que era uma praia bem menos cheia do que Coney Island. Enquanto me ensaboava, debaixo do chuveiro tépido, no caixão rosado e vertical que me servia de boxe, comecei a pensar a sério em Sofia e no futuro imediato. Estava mais do que nunca consciente da natureza tragicômica da minha paixão por ela. Por um lado, tinha bastante senso de humor para me dar conta do ridículo que a mera existência de Sofia me obrigava a fazer. Tinha lido literatura romântica suficiente para saber que meus delírios frustrados exemplificavam às mil maravilhas, no seu desespero, o termo "mal-amado". No entanto, tratava-se apenas de uma meia-piada, porque a ansiedade e o sofrimento que

aquele amor unilateral me causava eram tão cruéis quanto se eu tivesse descoberto que estava com alguma doença fatal. A única cura para essa doença era o amor dela — e um amor genuíno parecia tão remoto quanto uma cura para o câncer. Às vezes (e essa era uma delas) eu era capaz de amaldiçoá-la em voz alta, pois quase teria preferido o desprezo e o ódio de Sofia àquele sentimento, que podia ser descrito como afeto ou amizade, mas nunca como amor. Na minha mente ainda soava o seu relato da noite anterior, com a horrível visão de Nathan, da sua brutalidade, da sua desesperada ternura, do seu perverso erotismo e do seu odor de morte. — O diabo a carregue, Sofia! — exclamei, pronunciando lentamente as palavras, enquanto ensaboava o púbis. — Nathan agora está fora da sua vida, de uma vez por todas! Essa força letal acabou, terminou, kaput! Por isso, agora, trate de me amar, Sofia. Me eme! Ame a vida! Enquanto me enxugava, eu considerava, da maneira mais objetiva possível, as objeções práticas que Sofia poderia ter contra mim como pretendente, partindo do princípio de que eu fosse capaz de romper as barreiras emocionais e conquistar o amor dela. Eram muito problemáticas, essas possíveis objeções. Em primeiro lugar, eu era vários anos mais jovem (e uma espinha pós-adolescente, próxima do meu nariz, e vislumbrada no espelho naquele exata momento, sublinhava esse fato), mas isso era o de menos, conforme indicavam vários precedentes históricos. Em segundo lugar, eu não era nem de longe tão abonado, financeiramente, quanto Nathan. Embora não pudesse ser considerada interesseira, Sofia gostava da vida farta à maneira americana. O autossacrifício não estava entre as suas qualidades mais evidentes e perguntei a mim mesmo, com um gemido baixo, mas audível, como diabo eu iria poder pagar as despesas de ambos. Nesse momento, como que em resposta a esse pensamento, estendi o braço e tirei a caixa de Johnson & Johnson, onde guardava o meu dinheiro, do seu esconderijo, no armário do banheiro. E, para meu horror, vi que todos os meus dólares haviam desaparecido da caixinha. Alguém me roubara! Dentre o tumulto de emoções que me varre, após um roubo — tristeza, desespero, raiva, ódio da raça humana — a que geralmente vem por último é uma terrível suspeita. Não pude deixar de acusar intimamente Morris Fink, que andava por toda a casa e tinha acesso ao meu quarto, e os escrúpulos que senti diante daquela suspeita sem prova baseavamse no fato de eu ter começado a sentir uma certa simpatia por ele. Fink tinha-me feito um ou dois pequenos favores, o que só vinha complicar a desconfiança que agora sentia por ele. E, naturalmente, não podia revelar essa suspeita nem mesmo a Sofia, que recebeu a notícia do roubo com mostras de solidariedade. — Oh, Stingo, não! Pobre Stingo! — Pulou da cama, onde, apoiada nos travesseiros, lia uma tradução francesa de The Sun Also Rises. — Stingo! Quem pode ter feito uma coisa dessas com você? — Vestindo um robe de seda florida, atirou-se impulsivamente em cima de mim. Meu sofrimento era tão intenso, que não reagi sequer à deleitosa pressão dos seus seios. — Stingo, roubaram você? Que horror! Senti os lábios tremerem. Estava desprezivelmente à beira das lágrimas. — Foi-se tudo embora! Trezentos e não sei quantos dólares, tudo o que eu tinha! Como é que eu vou poder escrever meu livro, agora? Todo o dinheiro que eu tinha, excetuando... — abri a carteira. — quarenta dólares. Quarenta dólares que tive a sorte de carregar comigo quando saímos, ontem à noite.

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