Capítulo Quinze

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Na manhã seguinte, o trem da Pennsylvania em que eu e Sofia viajávamos para Washington, D.C., a caminho da Virgínia, sofreu uma pane elétrica e parou no viaduto, em frente à fábrica Wheatena, em Rahway, New Jersey. Durante essa interrupção na nossa viagem — uma parada que durou apenas quinze minutos, aproxidamente — mergulhei numa calma extraordinária e dei comigo fazendo planos otimistas para o futuro. Até hoje me surpreende o fato de eu ser capaz de manter aquela calma, aquela displicência quase elegante, depois da nossa fuga desabalada de Nathan e da terrível noite sem dormir que eu e Sofia passamos no interior da estação. Os meus olhos estavam ardidos de fadiga e parte da minha mente continuava pensando na catástrofe que por um triz conseguíramos evitar. À medida que o tempo fora decorrendo, nessa noite, afigurara-se-nos cada vez mais provável, a Sofia e a mim, que Nathan não estivesse nas vizinhanças quando dera aquele telefonema; não obstante, a ameaça nos fizera correr como loucos do Palácio Cor-de-Rosa, carregando apenas uma mala cada um, com destino à fazenda no Condado de Southampton. Concordamos em que nos preocuparíamos com o resto dos nossos pertences mais tarde. A partir desse momento, tínhamos sido possuídos — e, num certo sentido, unidos — por um terrível impulso de fugir de Nathan e procurar refúgio o mais longe que pudéssemos. Mesmo assim, a calma que finalmente se apossara de mim no trem mal teria sido possível se não fosse o primeiro dos dois telefonemas que conseguira fazer da estação. Ligara para Larry, que compreendeu imediatamente a natureza desesperada da crise do irmão e me disse que sairia de Toronto sem demora, a fim de cuidar, o melhor que pudesse, do irmão. Desejamo-nos boa sorte e prometemos ficar em contato um com o outro. Pelo menos, eu achava que tinha descarregado a responsabilidade final nos ombros de Larry, não abandonando Nathan inteiramente, na minha ânsia de fugir. Afinal, eu fugira para salvar a vida. O outro telefonema fora para o meu pai que, naturalmente, ficou muito satisfeito com a notícia de que eu e Sofia estávamos a caminho do Sul. — Vocês tomaram uma ótima decisão — ouvi-o gritar, a quilômetros de distância, com evidente emoção — deixando esse lugar horrível! E assim, sentado no alto do viaduto, no vagão superlotado, com Sofia cochilando ao meu lado, enquanto eu comia um mofado pão doce que comprara na estação, junto com uma embalagem de leite morno, pensei nos anos que viriam com equanimidade e esperança. Agora, que deixara Nathan e o Brooklyn para trás, estava prestes a iniciar um novo capítulo da minha vida. Por um lado, calculava que o meu livro, que prometia ser longo, estava quase com um terço pronto. Por acaso, os capítulos que eu escrevera em casa de Jack Brown tinham-me levado a um ponto na narrativa que me parecia fácil de retomar, assim que estivesse instalado com Sofia na fazenda. Após uma semana, mais ou menos, de ajuste ao ambiente rural — depois de ficar conhecendo os criados negros, de encher a despensa, de conhecer os vizinhos, de aprender a dirigir o velho caminhão e o não menos velho trator que, meu pai me dissera, eu havia herdado com a fazenda — estaria preparado para reiniciar o romance e, trabalhando bem, podia ter a sorte de acabar o livro e começar a procurar um editor lá para os fins de 1948. Olhei para Sofia, embalado por esses risonhos pensamentos. Ela estava ferrada no sono, o louro cabelo encostado no meu ombro, rodeei-a suavemente com o braço, tocando-lhe de leve o cabelo

com os lábios. Uma dolorosa recordação me assaltou, mas apressei-me a pô-la de lado: claro que eu não podia ser um homossexual, se sentia por aquela criatura um desejo tão intenso — podia? Naturalmente, íamos ter que nos casar, uma vez estabelecidos na Virgínia: a ética do lugar e da época não permitiria uma coabitação informal. Mas, apesar de todos os problemas, que incluíam erradicar a memória de Nathan e a diferença entre as nossas idades, eu tinha a impressão de que Sofia ia aquiescer, e resolvi sondá-la assim que ela acordasse. Mexeu-se e murmurou algo, tão bonita, apesar da sua exaustão, que senti vontade de chorar. Meu Deus, pensei, esta mulher talvez não demore a ser minha esposa! O trem estremeceu, avançou um pouco, hesitou, voltou a parar, e um gemido baixo perpassou o vagão. Um marinheiro, de pé ao meu lado, no corredor, deu um gole numa lata de cerveja. Um bebê começou a chorar desesperadamente, atrás de mim, levando-me a pensar que, nos transportes públicos, o destino inevitavelmente colocava uma criança gritando no assento mais próximo do meu. Estreitei suavemente Sofia e pensei no meu livro. Um arrepio de orgulho e contentamento perpassoume, ao pensar no trabalho honesto que até ali pusera no papel, fazendo com que a histósria avançasse com elegância e beleza na direção do terrível desenlace que ainda não escrevera, mas que já havia imaginado mil e uma vezes: a atormentada, alienada jovem rumando para a morte solitária nas ruas quentes e indiferentes da grande cidade que eu acabava de deixar para trás. Tive um momento de desânimo. Seria capaz de transmitir toda a paixão, de retratar a jovem suicida? Poderia fazer com que tudo parecesse real? Preocupava-me seriamente imaginar a tortura da moça. Não obstante, sentia-me tão seguro da integridade do meu romance, que já pensara até num título apropriadamente melancólico: Herança da Noite, tirado do Requiescat de Matthew Arnold, uma elegia ao espírito de uma mulher, cujo último verso dizia: "Esta noite ele herdará o desolado palácio da Morte". Como poderia um livro como aquele deixar de prender o interesse de milhares de leitores? Olhando para a fachada encardida da fábrica Wheatena — enorme, feia, com suas industriais janelas azuis refletindo a luz da manhã — estremeci de felicidade e de orgulho diante da qualidade do que escrevera no meu livro, graças a muito trabalho solitário e a muito suor, para não falar de sofrimento ocasional e, pensando mais uma vez do clímax ainda por escrever, dei comigo imaginando um trecho do artigo de um deslumbrado crítico, em 1949 ou 1950: "O mais poderoso monólogo interior de uma mulher, desde Molly Bloom". Que loucura!, pensei. Que convencimento! Sofia continuava dormindo. Enternecido, imaginei quantos dias e quantas noites ela dormiria ao meu lado, nos anos vindouros. Pensei em como seria a nossa cama matrimonial, na fazenda, no seu tamanho e na sua forma, se o colchão seria bastante amplo e resistente para fazer frente às nossas atividades conjugais. Imaginei nossos filhos, as cabecinhas louras correndo pela fazenda como alegres florezinhas polonesas, e as minhas recomendações paternais: "Hora de ordenhar a vaca, Jerzy!" — "Wanda, vá dar de comer às galinhas!" — "Tadeuz! Stefania! Fechem as portas do celeiro!" Pensei na fazenda, que só conhecia das fotos que o meu pai me mostrara, procurei visualizála como a residência de um famoso escritor. Da mesma forma que "Rowan Oak", a casa de Faulkner no Mississippi, teria um nome, possivelmente adequado ao cultivo do amendoim, que era a razão de existir da fazenda. Comecei a procurar nomes apropriados: "Cinco Olmeiros", talvez (eu esperava que a fazenda tivesse cinco olmeiros, ou, pelo menos, um), ou "Rosewood" ou "Sofia", em homenagem à minha bem-amada. Na minha mente, os anos, qual colinas azuladas, rolavam pacificamente até se perderem no horizonte do futuro distante. Herança da Noite seria um tremendo sucesso, conquistando prêmios raramente dados à obra de um escritor tão jovem. Ao romance se seguiria uma novela curta,

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