Capítulo Cinco

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Deve ter sido duas semanas depois de estar confortavelmente instalado nos meus aposentos
cor-derosa, que recebi outra carta do meu pai. Era, em si mesma, uma carta fascinante, embora na
altura eu mal pudesse imaginar a influência que ela teria no meu relacionamento com Sofia e Nathan e
os vários acontecimentos que teriam lugar, naquele verão. Da mesma forma que a última das suas
cartas por mim citadas - a que falava de Maria Hunt - também esta tinha a ver com um óbito e, do
mesmo modo que a anterior, a respeito de Artiste, me dava notícias de que podia ser considerado
como uma herança, ou parte nela. Transcrevo aqui quase toda a carta:
"Filho, faz hoje dez dias que o meu querido amigo e antagonista político e filosófico, Frank
Hobbs, caiu morto no seu escritório, no estaleiro, vítima de uma trombose cerebral quase instantânea.
Tinha apenas 60 anos, idade que comecei desesperadamente a considerar como sendo virtualmente a
primavera da vida. A sua morte foi um grande choque para mim e sinto muito a falta dele. Seus pontos
de vista políticos eram, claro, deploráveis, colocando-o vinte quilômetros à direita de Mussolini, mas,
apesar disso, ele era o que nós, gente do campo, sempre chamamos "um bom rapaz" e vou sentir muita
falta da sua maciça e generosa - se bem que intolerante - presença, quando me dirigir para o
trabalho. Sob muitos aspectos, ele era um triste, um homem solitário, viúvo e inconsolável com a
perda do único filho, Frank Jr., o qual, talvez você se lembre, morreu afogado aos vinte e poucos anos,
não faz muito, quando pescava no Estreito de Albemarle. Frank Pai não deixou descendentes e esse
fato é a principal razão pela qual lhe estou escrevendo esta carta.
O advogado de Frank ligou para mim, faz alguns dias, a fim de me informar, para minha
enorme surpresa, de que sou o principal beneficiário da herança dele. Frank tinha pouco dinheiro no
banco, nenhum investimento, tendo sempre sido, como eu, apenas um bem pago assalariado, dentro -
ou, talvez eu deva dizer - montado na precária garupa desse monstruoso leviatã conhecido como o
mundo-dos-negócios americano. Por isso, lamento não poder lhe dar notícia da iminente recepção de
um polpudo cheque que lhe alivie as preocupações, enquanto você labuta no campo das letras.
Durante longos anos, porém, Frank foi o proprietário e arrendatário, embora ausente, de uma
pequena fazenda de amendoim, no condado de Southampton, fazenda essa que pertenceu à família
Hobbs desde a Guerra de Secessão. Foi essa propriedade que Frank me deixou, estipulando, no seu
testamento que, embora eu pudesse fazer com ela o que bem desejasse, esperava que eu continuasse
a cultivar a terra como ele fizera, não só pelos modestos lucros que 60 acres de amendoim
podem dar, mas principalmente pela encantadora e verdejante localização da fazenda, atravessada por
um belo riachinho, cheio de peixes. Ele devia saber quanto eu gostava do lugar, que por várias vezes
visitara.
Esse tocante e extraordinário gesto da parte de Frank colocou-me, no entanto, num dilema.
Embora eu gostasse de fazer o possível para respeitar o desejo de Frank e não vender a
fazenda, não sei se estaria agora em condições de ser fazendeiro (apesar de, quando rapaz, na Carolina
do Norte, ter aprendido a manejar a enxada e a foice), mesmo à distância, como era o caso de Frank.
De qualquer modo, sempre requer um bocado de trabalho e atenção e, enquanto Frank podia se dedicar
a isso, tenho o meu trabalho, que me absorve muito, aqui no estaleiro. Sob certos aspectos, claro, é
uma proposta muito atraente. Dois negros muito entendidos em lavoura arrendaram as terras e o equipamento agrícola está em condições razoáveis. A casa principal está em excelente estado e seria
ótima para passar os fins de semana, tendo em vista principalmente a proximidade do maravilhoso
riacho. O amendoim é agora uma fonte de renda, sobretudo desde que a última guerra abriu tantos
novos empregos para essa leguminosa. Eu me lembro que Frank vendia a maior parte da colheita para
a Planters, de Suffolk, a fim de ajudar a saciar o insaciável e recente desejo que os americanos têm de
manteiga de amendoim. Há também alguns porcos, que produzem os melhores presuntos da região. E
uns hectares de plantação de soja e algodão, ambos produtos que ainda dão lucro, de modo que, como
você pode ver, existem alguns aspectos totalmente mercenários da situação - além do aspecto
estético e recreativo - que me tentam a voltar a cultivar a terra, após mais de quarenta anos ausente
dos campos. Sem dúvida, isso não me faria ficar rico, embora eu desconfie de que, embora em
pequena escala, pudesse vir a aumentar um orçamento muito diminuído pelas necessidades das suas
tias, lá na Carolina do Norte. Mas, como já disse, estou com sérias dúvidas. E isso me leva, Stingo, a
apelar para você e para o papel que poderá vir a desempenhar neste até o momento não-resolvido
dilema.
O que lhe proponho é que vá morar na fazenda, como proprietário, na minha ausência. Já
estou vendo a sua reação ao ler isto e parece que o ouço dizer: "Mas não entendo nada de amendoins".
Sei muito bem que isto pode não lhe parecer nada compatível, principalmente depois de
você ter escolhido tentar a sorte como homem de letras entre os ianques. Mas peçolhe que considere a
minha proposta, não porque eu não dê valor à sua necessidade de independência, vivendo aí no (para
mim) bárbaro Norte, mas por uma sincera preocupação pelo descontentamento que você manifesta nas
últimas cartas, essa sensação que eu tenho de que você não está precisamente florescendo
espiritualmente ou (claro!) financeiramente. Por um lado, seus deveres seriam mínimos, de vez que
Hugo e Lewis, os dois negros que há anos vivem na fazenda com suas famílias, cuidam dos assuntos
práticos, e você funcionaria como uma espécie de fazendeiro só no nome, cujo principal trabalho,
tenho a certeza, seria escrever esse romance que você diz que começou. Mas você não pagaria aluguel
e estou certo de que eu poderia lhe pagar algo em troca das suas poucas responsabilidades.
Além do mais (e deixei isto para o fim), peço-lhe que considere a proximidade da fazenda
do antigo habitat do "profeta Nat", esse negro misterioso, que tanto susto causou à negreira Virgínia
daqueles tempos. Ninguém melhor do que eu sabe do seu fascínio pelo "velho profeta", pois não posso
esquecer de como você, ainda garoto de ginásio, colecionava mapas, documentos e tudo quanto era
informação que conseguia recolher, relativa a essa extraordinária figura. A fazenda dos Hobbs fica a
um salto apenas do local de onde o Profeta se lançou à sua terrível missão de morticínio, e eu acho
que, se você fosse morar lá, poderia beneficiar-se da atmosfera e dos elementos de que precisa para
esse livro que, estou certo, acabará escrevendo. Por favor, meu filho pense bem na proposta. Não vou
disfarçar o interesse pessoal que há por trás dessa oferta. Preciso muito de alguém que tome conta da
fazenda, se quiser conservá-la. Mas, embora isso seja verdade, não posso esconder, também, o prazer
que sinto ao pensar que você, decidido a ser o escritor que eu quis ser, mas não pude, teria uma
esplêndida oportunidade de viver na terra - vendo-a e sentindo-lhe o cheiro e a influência - onde
nasceu e que produziu esse negro prodigioso..."
De certa maneira, era uma grande tentação, não podia negar. Junto com a carta, meu pai
incluíra várias fotos Kodachrome da fazenda. Rodeada por grandes faias, que lhe davam sombra, a
velha casa de meados do século XIX parecia não precisar - além de uma pintura - de nada para ser a confortável moradia de quem pudesse enquadrarse facilmente na grande tradição sulista de escritores-fazendeiros. A doce tranquilidade do lugar (gansos espadejando através da grama
verdejante do verão, um alpendre sonolento, com uma rede, o velho Hugo ou o velho Lewis atirando
sorrisos cheios de dentes calcilicados e gengivas rosadas por cima do volante de um trator enlameado)
deu-me, de repente, uma pontada de saudade do Sul rural. A tentação era ao mesmo tempo forte e
pungente e demorou o tempo que eu tardei a reler a carta e contemplar mais uma vez a casa e o seu
gramado, tudo aparentemente suspenso em meio a uma neblina idílica, que podia ter sido causada por
uma superexposição do filme. Mas, embora a carta me falasse ao coração e, ao mesmo tempo, tivesse,
em termos práticos, um bocado de lógica, compreendi que tinha que recusar o convite de meu pai. Se a
carta houvesse chegado algumas semanas mais cedo, quando eu me sentia por baixo, após haver sido
demitido da McGraw-Hill, eu poderia ter aproveitado a chance. Mas as coisas agora estavam
radicalmente alteradas e eu já me acostumara ao lugar onde morava e ao tipo de vida que levava, de
modo que fui obrigado a responder a meu pai com um Não. E, quando agora olho para esses tempos
promissores, percebo que havia três fatores responsáveis pelo surpreendente e recente sentimento de
satisfação que me invadia. Sem ordem de importância, eram eles:

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