Fora através do irmão mais velho, Larry Landau, que Nathan pudera dar a Sofia uma
dentadura tão soberba. E, embora tivesse sido o acurado — se bem que não-profissional —
diagnóstico do próprio Nathan que tão acertadamente descobrira a natureza da doença de Sofia, logo
após terem se conhecido na biblioteca do Brooklyn College, seu irmão também ajudara a encontrar
uma cura para esse problema.
Larry, que eu ficaria conhecendo mais tarde, em circunstâncias difíceis, era um urologista
com grande e próspera clientela em Forest Hills. Homem de trinta e poucos anos, o irmão de Nathan já
possuía um brilhante currículo na sua especialidade, tendo participado — como professor assistente da
Faculdade de Medicina e Cirurgia da Universidade de Colúmbia — de pesquisas originais e altamente
compensadoras sobre a função renal, que lhe haviam conquistado a atenção dos círculos médicos
quando ele era ainda muito jovem. Nathan contou-me isso num tom de intensa admiração, numa
evidente demonstração de orgulho fraternal. Larry também participara do esforço de guerra com
distinção. Como tenente do corpo médico da Marinha, realizara notáveis intervenções cirúrgicas, sob
o fogo de ataques kamikaze, a bordo de um porta-aviões ao largo das Filipinas, o que lhe merecera a
Cruz da Marinha, condecoração raramente dada a um oficial-médico (principalmente judeu, numa
Marinha antissemita), coisa que, em 1947, com suas recordações recentes da guerra e da glória, era
algo para fazer com que Nathan se orgulhasse ainda mais do irmão.
Sofia contou-me que só ficara sabendo o nome de Nathan muitas horas depois de ele a ter
socorrido, na biblioteca. Do que mais se lembrava, com relação a esse primeiro dia e aos dias que se
seguiram, era da enorme ternura dele. No início — talvez apenas por se lembrar dele inclinado sobre
ela, murmurando:
"Deixe o doutor aqui tomar conta de tudo" — Sofia não percebera que essas palavras tinham
sido ditas de brincadeira, e pensara que ele era médico, mesmo depois, quando ele a amparara com o
seu braço, murmurando palavras de conforto e encorajamento, enquanto se dirigiam para a pensão de
Yetta num táxi.
— Vamos ter que dar um jeito em você — lembrava-se de o ter ouvido dizer, num tom meio
brincalhão, que lhe pusera nos lábios o primeiro vestígio de um sorriso, desde que desmaiara. — Você
não pode continuar perdendo os sentidos nas bibliotecas e assustando as pessoas.
Havia algo de tão reconfortante, amigo e bom na voz dele, e tudo na sua presença inspirava
uma confiança tão imediata que, quando voltaram ao quarto dela (quente e abafado, ao sol oblíquo da
tarde, onde Sofia de novo se sentira desmaiar e se apoiara nele), ela não sentira o menor embaraço ao
vê-lo desabotoar e tirar-lhe o vestido sujo e, com firme delicadeza, ajudá-la a se deitar na cama, onde
Sofia ficara estendida só de combinação. Sentia-se muito melhor, a náusea desaparecera. Mas, ali
deitada, tentando responder ao sorriso triste e interrogativo do desconhecido, continuava a sentir a
mesma sonolência e lassidão que haviam tomado conta dela.
— Por que será que estou tão cansada? — ouviu-se a si mesma perguntar, numa voz fraca.
— Que será que está havendo comigo?
Continuava pensando que Nathan era médico e encarava o olhar silencioso e vagamente triste dele como meramente profissional até que, de repente, percebera que os olhos de Nathan
estavam fixos no número gravado no seu braço. Abruptamente (o que era estranho, pois havia muito
perdera a preocupação com a marca) fizera um movimento com a mão, como que a tentar cobri-lo,
mas, antes que pudesse fazer isso, ele já lhe agarrara o pulso para tomá-lo, como fizera antes, na
biblioteca. Por um momento, nada lhe dissera e Sofia sentira-se perfeitamente segura e à vontade,
adormecendo com as palavras dele nos ouvidos, calmas, tranquilizadoras, e com aquele bendito toque
de bom humor:
— O médico aqui acha que você vai precisar de uns bons comprimidos para pôr um pouco
de cor nessa linda pele branca.
De novo o médico! Sofia deixara-se arrastar pela sonolência e mergulhara num sono
profundo, mas quando, momentos depois, despertara e abrira os olhos, o médico tinha ido embora.
— Oh, Stingo! Lembro-me tão bem, foi há tanto tempo que eu sentir esse terrível pânico! E
tudo tão estranho! Eu nem sequer conheço ele, nem sequer sei o nome dele! Tinha estado com ele uma
hora, talvez até menos, e agora ele tinha ido embora e eu sentia esse pânico, esse medo horrível de que
talvez ele nunca mais voltasse, que tivesse sumido para sempre. Era como perder uma pessoa muito
chegada a você.
Um impulso romântico fez com que eu não resistisse e lhe perguntasse se ela não se teria
apaixonado instantaneamente. Não teria sido um exemplo perfeito, perguntei, desse maravilhoso mito
conhecido como amor à primeira vista?
— Não, não foi bem assim — respondeu Sofia. — Acho que ainda não era amor. Mas talvez
algo parecido. — Fez uma pausa. — Não sei dizer. De certa maneira, que bobagem acontecer uma
coisa dessas. Como é possível conhecer um homem durante quarenta e cinco minutos e sentir esse
vazio quando ele vai embora? Absolument fou! Você não acha? Mas eu estava louca para que ele
voltasse.
Nossos piqueniques eram refeições móveis, que tinham lugar em qualquer canto ensolarado
e sombreado de Prospect Park. Não me lembro mais de quantos desses piqueniques eu fiz com Sofia
— uma meia-dúzia, talvez mais. Nem me recordo bem da maioria dos lugares onde nos estendíamos
sobre a relva — dos recantos rochosos e escondidos para onde carregávamos os sacos de papel
engordurado e as embalagens de meio litro de leite gelado, mais a antologia de Oscar Williams da
poesia americana, muito manuseada e cheia de manchas de gordura, através da qual eu procurava
continuar a interessar Sofia na poesia que o gordo Sr. Youngstein lhe apresentara, alguns meses antes.
Lembro-me, porém, vividamente de um desses lugares — uma península relvada, a essa hora
geralmente vazia de gente, nos dias de semana, penetrando no lago, onde um sexteto de grandes cisnes
com ar feroz, irrompia, como um bando de gângsters, por entre a folhagem, interrompendo a natação o
suficiente para subir à grama e competir, com assobios agressivos, pelas côdeas dos nossos pãezinhos
e outros restos. Um dos cisnes, um macho menor e bem menos ágil do que os outros, fora ferido perto
do olho — sem dúvida em algum encontro com um selvagem bípede do Brooklyn — e ficara com um
ar estrábico, que fazia Sofia se lembrar do seu primo Tadeusz, de Lodz, que morrera aos treze anos, de
leucemia.
Eu era incapaz de fazer a ligação antropomórfica e por isso não entendia a relação que podia
haver entre um cisne e um ser humano, mas Sofia jurava que eram parecidíssimos. Começou a chamá- lo de Tadeusz e a lhe murmurar coisas em polonês, enquanto lhe deitava as sobras do seu saco. Poucas
vezes vi Sofia zangada, mas o comportamento dos outros cisnes, mandões e egocêntricos, gordos e
comilões, enfurecia-a e ela gritava-lhes insultos em polonês e dava a Tadeusz mais do que lhe cabia. A
sua veemência surpreendia-me. Na época, eu não podia relacionar aquele enérgico protecionismo do
pobre-diabo (ou pobre-cisne) com alguma coisa que tivesse acontecido no seu passado, mas a proteção
que ela dava a Tadeusz era divertida e comovente. Não obstante, tenho outro motivo, mais pessoal,
para me lembrar de Sofia no meio dos cisnes. Recordo agora, após muito puxar pela memória, que foi
nesse pequeno promontório, no fim do verão, durante uma longa tarde, que demorou até o sol começar
a afundar muito atrás de nós, sobre Bay Ridge e Bensonhurst, que Sofia me contou, numa voz ora
desesperada, ora esperançosa, mas principalmente desesperada, parte desse último e convulsivo ano
com Nathan, que ela adorava, mas que, já então (quando ela me falou) considerava não só seu
salvador, como também seu destruidor...
Quando, para seu imenso alívio, ele voltara ao quarto dela, nesse mesmo dia, meia hora mais
tarde, Nathan aproximara-se da cama e fitara-a uma vez mais com seus olhos bondosos, dizendo:
— Vou levar você para ver o meu irmão, ok? Dei alguns telefonemas. Ela ficara perplexa.
Nathan sentara-se a seu lado.
— Por que é que o senhor vai me levar para ver o seu irmão?
— Meu irmão é médico — explicou ele — um dos melhores médicos que há. Vai poder
ajudá-la.
— Mas o senhor... — disse ela. — Pensei que...
— Você pensou que eu era médico — completou ele. — Não, eu sou biólogo. Como você se
sente agora?
— Melhor — respondeu ela. — Muito melhor.
E era verdade. Sentia-se melhor, em parte graças à presença dele.
Nathan trouxera uma sacola de supermercado e abrira-a, espalhando rapidamente o seu
conteúdo sobre a grande tábua, junto dos pés da cama dela, que fazia as vezes de mesa de cozinha.
— Que mishegoss! — exclamara.
E Sofia riu, pois Nathan resolvera bancar o comediante, adotando um sotaque profunda e
rasgadamente iídiche, enquanto arrumava as garrafas, as latas e as embalagens que tirava da sacola, o
rosto franzido, numa réplica perfeita de um velho dono de loja, avarento e nervoso, das imediações de
Flatbush. Lembrava-lhe Danny Kaye (tantas vezes vira os filmes dele, era uma das suas poucas manias
cinematográficas), com aquele inventário absurdo e maravilhosamente rítmico, e ainda se sacudia
toda, de riso silencioso, quando ele parou, se virou para ela e lhe mostrou uma lata com um rótulo
branco, enfeitado de gotículas de gelo.
— Consommé à madrilenha — disse, na sua voz normal. — Descobri um supermercado
onde as sopas ficam no gelo. Quero que você coma isto. Depois, vai poder nadar dez quilômetros, como a Esther Williams.
Sofia apercebeu-se de que o apetite lhe voltara e sentiu um espasmo no estômago vazio.
Quando ele lhe serviu o consommé numa das suas baratas tigelas de plástico, ela apoiou-se num
cotovelo e comeu com prazer, saboreando a sopa, fria e gelatinosa, com um gostinho picante.
— Muito obrigada — disse, quando acabou. — Estou me sentindo muito melhor.
Sentira de novo tal intensidade no olhar dele, sentado ao seu lado, sem falar nada, que,
apesar da confiança que ele lhe inspirava começou a ficar um pouco nervosa, até que ele disse:
— Aposto cem dólares como você está com uma forma séria de anemia. Possivelmente
deficiência de vitamina B-12 e ácido fólico. Mas o mais provável é que seja falta de ferro. Menina,
você tem comido bem ultimamente?
Ela respondeu que, exceto durante um curto período, algumas semanas antes, em que sofrera
de uma até certo ponto voluntária rejeição de comida, nos últimos seis meses comera mais
saudavelmente do que em qualquer outra altura da sua vida.
— Tenho uns problemas — explicou. — Não posso comer muita gordura de animais. Mas o
resto está ok.
— Então, só pode ser uma deficiência de ferro — decretou Nathan. — Pelo que você diz que
andou comendo, consumiu bastante ácido fólico e vitamina B-12. A gente só precisa de um pouco de
ambos. Já o ferro é bem mais complicado. Você pode ter ficado deficiente e nunca mais ter
descontado a falta de ferro.
Fez uma pausa, talvez por ver apreensão no rosto dela (pois o que ele lhe dissera intrigava-a
e preocupava-a) e lançou-lhe um sorriso tranquilizador.
— É das coisas mais fáceis de curar, desde que se ataque logo.
— Ataque?
— É, desde que a pessoa saiba do que se trata, é uma coisa muito fácil de curar.
Sem que ela soubesse por que, tinha vergonha de lhe perguntar o nome, embora estivesse
ansiosa por saber. Enquanto ele estava ali, sentado ao lado dela, Sofia lançou-lhe uma olhadela e
achou que ele era extremamente simpático fisicamente — inconfundivelmente judeu, com seus traços
finos e simétricos, no meio dos quais o nariz, forte e proeminente, era como um adorno, bem como os
olhos, luminosamente inteligentes, que podiam passar da compaixão ao humor de maneira tão rápida,
fácil e natural. De novo a sua presença fez com que ela se sentisse melhor. Uma grande fadiga a
invadia, mas a náusea e o mal-estar tinham desaparecido. De repente, ali deitada, veio-lhe uma
inspiração ao mesmo tempo preguiçosa e brilhante. De manhã, após olhar para a programação de rádio
do Times, Sofia ficara muito desapontada de saber que, devido à aula de inglês, não iria poder ouvir a
Sinfonia Pastoral, de Beethoven, no concerto da tarde, transmitido pela WQXR. Era um pouco como a
sua redescoberta da Sinfonia Concertante, só que com uma diferença. Ela se lembrava claramente da
sinfonia de Beethoven — dos concertos em Cracóvia — mas ali, no Brooklyn, por não ter vitrola e parecer estar sempre no lugar errado na hora errada, a Pastoral dava a impressão de lhe estar sempre
escapando, anunciando-se mas não sendo ouvida, como uma ave muito bela, mas muda, que fugisse e
esvoaçasse, com ela perseguindo-a por entre a folhagem de uma floresta escura.
De repente, ela se lembrara de que, graças ao que lhe acontecera, ia poder, finalmente, ouvir
a música.
Naquele momento, isso lhe parecia muito mais crucial para a sua existência do que qualquer
conversa relativa à saúde, por mais encorajadora que fosse, de modo que perguntou:
— Se importa se eu ligar o rádio?
Mal tinha acabado de falar, já ele esticava o braço e apertava o botão, bem na hora em que a
Orquestra de Filadélfia, com suas cordas murmurantes, a princípio hesitante e, depois, jubilantemente,
dava início ao inebriante salmo em honra a um mundo em florescência. Ela experimentara uma tal
sensação de beleza, que era como se estivesse morrendo. Fechara os olhos e mantivera-os assim até o
fim da sinfonia, quando voltara a abri-los, encabulada com as lágrimas que lhe escorriam pelas faces,
mas incapaz de as conter, ou de dizer algo sensato ou coerente ao Bom Samaritano, que continuava a
olhar para ela com ar grave e paciente. Nathan tocara-lhe de leve as costas da mão com as pontas dos
dedos.
— Está chorando por causa da beleza da música? — perguntou. — Mesmo ouvida nesse
radinho vagabundo?
— Não sei por que estou chorando — respondeu ela, após longa pausa, durante a qual
procurara se controlar. — Talvez eu esteja chorando por fazer um erro.
— Que é que você quer dizer com isso? — perguntou ele.
De novo ela demorou muito tempo a explicar:
— Um erro a respeito de ouvir essa música. Pensei que a última vez que ouvi essa sinfonia
foi em Cracóvia, quando eu era muito jovem, mas agora, quando escutei, vi que ouvi uma vez depois
disso, em Varsóvia. A gente era proibida de ter rádios, mas uma noite ouvi a sinfonia numa rádio
proibida, de Londres. Agora eu lembrar que foi a última música que ouvi antes de ir... — Estacou, de
repente. Que diabo estava contando para aquele desconhecido? Que interesse podia ter para ele? Tirou
um lenço de papel da gaveta da mesinha de cabeceira e enxugou os olhos. — Essa não é uma boa
resposta.
— Você disse "antes de ir..." — insistiu ele. — Antes de ir para onde? Está se referindo ao
lugar onde lhe fizeram isso?
E olhou significativamente para a tatuagem.
— Não posso falar sobre isso — disse ela, de repente, arrependendo-se da maneira brusca
com que as palavras lhe saíram, fazendo com que ele se voltasse e murmurasse, numa voz aflita:
— Desculpe. Sinto muito! Sou mesmo um abelhudo... Às vezes, sou pior que um burro!
— Por favor, não diga isso — interveio Sofia, envergonhada por tê-lo feito ficar sem graça.
— Eu não sabia que... — parou, achando a palavra certa em francês, polonês, alemão e russo, mas não
conseguindo encontrá-la em inglês. Limitou-se a dizer: — Desculpe.
— Tenho a mania de meter o meu grande schnoz onde não sou chamado — disse ele e Sofia
viu o rubor deixar-lhe aos poucos o rosto. — De repente, ele disse: — Escute, preciso ir andando.
Tenho um compromisso. Mas... será que eu posso voltar esta noite? Não responda! Eu volto à noite.
Ela não conseguira responder, apenas assentiu com a cabeça e com um sorriso que continuou
a lhe pairar nos lábios, quando o ouviu descer a escada. Depois disso, o tempo custara a passar. Sofia
ainda se espantava com a excitação com que esperava ouvir o som dos sapatos dele quando, por volta
das sete, Nathan voltara, carregando outra sacola cheia de mantimentos e duas dúzias das mais belas
rosas amarelas que ela já vira. Sofia estava agora de pé, sentindo-se quase perfeitamente bem, mas ele
mandara-a descansar, dizendo:
— Por favor, deixe o Nathan aqui cuidar de tudo!
Fora nesse momento que ela pela primeira vez ouvira o nome dele. Nathan. Nathan!
Nanthan, Nathan!
Nunca, mas nunca, assegurou-me ela, poderia esquecer aquela primeira refeição que tinham
feito juntos, o jantar carinhoso que ele fizera à base de... imaginem! — fígado de vitela e alhos.
— Cheio de ferro — proclamara, o suor emergindo-lhe da testa, enquanto se inclinava sobre
a travessa fumegante. — Não há nada melhor do que fígado. E alhos — cheios de ferro! Também vão
melhorar o timbre da sua voz. Sabia que o Imperador Nero mandava que lhe servissem alhos todos os
dias, a fim de aumentar a ressonância da sua voz? Para poder cantar, enquanto Sêneca era
esquartejado. Sente-se, pare de andar de um lado para o outro! Me deixe fazer as coisas. O que você
precisa é de ferro! Por isso vamos comer também creme de espinafre e uma bela saladinha. — Sofia
ficara cativada pelo modo como Nathan, embora atento ao que preparava, continuava intercalando as
suas observações sobre gastronomia com detalhes científicos. — Fígado com cebolas é um prato
comum, mas com alhos, amorzinho, fica especial. É difícil encontrar alhos destes, comprei-os num
supermercado de italianos. Está na sua linda cara que você precisa de doses maciças de ferro. Daí o
espinafre. Fizeram-se pesquisas, não faz muito, em que se descobriu que o ácido oxálico contido no
espinafre tende a neutralizar o cálcio, de que provavelmente você também precisa. Uma pena, mas
também tem tanto ferro, que, de qualquer maneira, você vai lucrar comendo-o. Além disso, a alface...
Mas se o jantar, embora excelente, fora principalmente restaurador, o vinho tinha sido
divino. Na sua casa, em Cracóvia, Sofia fora acostumada desde menina a beber vinho. Seu pai tinha
uma faceta hedonística, que o fazia insistir (num país que não cultivava uvas) em que os pratos
copiosos e muitas vezes elegantes da cozinha vienense, que sua mãe preparava fossem regularmente
acompanhados dos bons vinhos da Áustria e das planícies húngaras. Mas a guerra, que tanta coisa lhe
tirara da vida, acabara também com o prazer simples do beber vinho e, desde então, ela não se tinha
dado ao trabalho de provar qualquer marca, embora se sentisse tentada, nas vizinhanças de Flatbush.
Não fazia ideia de que na América pudesse existir aquilo — aquele néctar dos deuses! A garrafa que
Nathan comprara era de tal qualidade, que levara Sofia a redefinir a natureza do gosto: ignorando a
mística do vinho francês, não precisou que Nathan lhe dissesse tratar-se de um Château Margaux, ou
que era de 1937 — a última das grandes safras de antes da guerra — ou que tinha custado a espantosa quantia de quatorze dólares (mais ou menos metade do que ela ganhava por semana, pensou,
incrédula, ao reparar no preço grudado na garrafa), ou que poderia ter ganho um buquê se tivessem
esperado um pouco. Nathan parecia entender de todos esses detalhes, mas Sofia só sabia que o sabor
lhe dava uma sensação inigualável de prazer, um calor imenso, descuidoso, que parecia sair do fundo
do coração e lhe descia para as pontas dos pés, tornando válidas todas as velhas máximas sobre as
propriedades curativas do vinho. A cabeça nas nuvens, como se as preocupações lhe tivessem
desaparecido como por encanto, ouviu a si mesma dizer, quando terminavam de jantar:
— Sabe, quando a pessoa leva uma boa vida e morre santamente, deve ser isto o que dão a
ela para beber, no paraíso.
Ao que Nathan não respondera diretamente, parecendo também agradavelmente alto,
olhando para ela com ar grave e pensativo, através da borra do seu copo.
— Não é "dão a ela"e sim "lhe dão" — corrigiu suavemente. — Mas logo acrescentou: —
Desculpe.
Sou um mestre-escola frustrado.
Depois de terminado o jantar e de lavarem a louça a dois, tinham-se sentado um diante do
outro, nas duas desconfortáveis poltronas de costas altas que, naquele tempo, compunham a mobília
do quarto de Sofia. De repente, a atenção de Nathan fora atraída pelo punhado de livros arrumados
numa prateleira, em cima da cama de Sofia — as traduções polonesas de Hemingway, Wolfe, Dreiser
e Farrell.
Levantarase e examinara, curioso, os livros, fazendo comentários que demonstravam
conhecer bem esses escritores. Falou com especial entusiasmo de Dreiser, dizendo a Sofia que, na
universidade, lera toda a imensidão de Uma Tragédia Americana de uma só vez, "quase estragando a
vista" e, no meio de uma descrição rapsódica de Irmã Carrie, que ela ainda não tinha lido, mas que ele
insistia para que lesse o mais depressa possível (garantindo tratar-se da obra-prima de Dreiser), parara
subitamente e olhara para ela com uma expressão tão aparvalhada, os olhos tão arregalados, fazendo-a
rir, ao mesmo tempo em que dizia:
— Sabe que eu não tenho a menor ideia de quem você é? Que é que você faz na vida,
amoreco polonês?
Ela demorara um bocado de tempo a responder:
— Trabalho com um médico, como recepcionista.
— Com um médico? — repetira ele, com grande interesse.
— Que espécie de médico?
Sofia hesitara, mas acabara dizendo:
— Ele é um... um quiroprático.
Reparou no espasmo que percorrera o corpo dele, ao ouvir o que ela tinha dito.
— Um quiroprático! Não admira que você tenha problema! Ela procurara desculpar-se.
— É um homem muito bom... — dissera, bobamente. — É o que se chama, em iídiche, um
mensh. O nome dele é Dr. Blackstock.
— Mensh, shmensh — retrucara ele, com uma expressão de profundo desgosto. — Uma
moça como você, trabalhando com um charlatão...
— Foi o único emprego que consegui, quando cheguei — cortara ela. — Eu não sabia fazer
nada!
Falava agora com alguma irritação e fosse pelo que ela dissera, fosse pelo tom com que
falara, o fato é que o fizera murmurar um apressado pedido de desculpas.
— Eu sei. Não devia ter dito o que disse. Não é da minha conta.
— Gostaria de trabalhar em algo melhor, mas não tenho qualificações — continuara ela, já
mais calma. — Comecei uma carreira muito tempo atrás, mas nunca terminei os estudos. Sou uma
pessoa muito incompleta, gostaria de ensinar música, de ser professora de música, mas isso é
impossível, de modo que trabalho como recepcionista nesse consultório. Não é assim tão mau,
vraiment, embora eu gostasse de fazer algo melhor, um dia. — Sinto muito ter dito o que disse.
Sofia olhara para ele, tocada com o embaraço que ele parecia sentir por causa da sua falta de
tato. Até onde conseguia se lembrar, nunca encontrara ninguém por quem se sentisse tão
imediatamente atraída.
Havia algo tão intenso, enérgico e variado na personalidade de Nathan — no seu ar firme
mas tranquilo, na sua mímica, na maneira cômica como falava de culinária e medicina, que Sofia
sentia ser como que um disfarce para a preocupação real que ele tinha pela saúde dela. E, por fim,
aquela vulnerabilidade e capacidade de se arrepender que, de um modo remoto e indefinível, lhe
lembrava um garotinho. Por um momento, desejou que ele voltasse a tocá-la, mas logo o desejo
desapareceu e ambos ficaram calados por muito tempo, enquanto um carro deslizava pela rua, lá fora,
onde uma chuvinha fina começara a cair e o carrilhão da igreja distante deixava tombar nove notas na
vasta e reverberante quietude do Brooklyn.
Ao longe, trovões ribombavam baixo sobre Manhattan. Tinha escurecido e Sofia acendeu o
seu único abajur.
Talvez fosse o efeito do vinho, ou da presença calma e desinibidora de Nathan, mas ela
sentira-se compelida a continuar falando e, à medida que falava, parecia-lhe que o inglês lhe fluía
mais facilmente, quase correntemente, como se através de condutos que até então ignorara possuir.
— Nada me ficou do passado, absolutamente nada. Essa é uma das razões pelas quais me
sinto tão incompleta. Tudo o que você vê neste quarto é americano, novo — livros, roupas, tudo —
não tenho nada que me lembre a Polônia, o tempo da minha juventude. Nem mesmo uma foto desse
tempo. Uma coisa que sinta muito ter perdido é um álbum de fotografias que eu tinha. Se ao menos eu
pudesse ter ficado com ele, lhe mostraria tantas coisas interessantes... como era Cracóvia, antes da
guerra. Meu pai era professor na universidade, mas era também um fotógrafo muito talentoso.
Amador, mas muito bom, muito sensível.
Tinha uma Leica muito cara, fantástica. Lembro-me de uma das fotos que ele tirar, que
estava no álbum, uma das melhores, que eu tenho tanta pena de ter perdido, era de mim e da minha
mãe sentadas ao piano.
Eu devia ter uns treze anos. Devíamos estar tocando uma peça para quatro mãos. Parecíamos
tão felizes, eu e minha mãe! Agora, não sei por que, só a lembrança daquela foto já é um símbolo para
mim, um símbolo do que podia ter sido e agora já não pode ser. — Após uma pausa, ela continuara, no
fundo orgulhosa da fluidez com que as palavras lhe saíam, e olhara para Nathan, um pouco inclinado
para a frente, totalmente absorvido no que Sofia lhe dizia. — Você deve entender, eu não estou com
pena de mim mesma. Há coisas muito piores do que não poder acabar uma carreira, não ser o que a
gente planejava. Se isso fosse tudo o que eu perdi, eu estaria contente. Teria sido maravilhoso para
mim ter tido essa carreira na música que eu pensava, mas não foi possível. Faz sete, oito anos que não
tenho lido uma nota de música e nem sei se saberia ler de novo. De qualquer maneira, é por isso que
não posso mais escolher um emprego, de modo que tenho que trabalhar desse jeito mesmo.
Passado um momento, ele perguntara, com aquela franqueza que Sofia tanto apreciava:
— Você não é judia, é?
— Não — respondeu ela. — Você pensou que eu era?
— A princípio, sim pensei que você fosse judia. Não há muitas goyim louras andando pelo
Brooklyn College. Depois, olhei bem para você no táxi e pensei que você fosse dinamarquesa, ou
talvez finlandesa, do leite da Escandinávia. Mas, claro, você tem essas maçãs do rosto eslavas.
Finalmente, através de deduções, fiquei achando que você era polaca, perdão, adivinhei que você era
de origem polonesa. Aí, quando você mencionou Varsóvia, tive a certeza. Você é uma linda polaca, ou
polonesa.
Sofia sorrira, sentindo o rubor subir-lhe às faces. — Pas de flatterie, monsieur.
— Mas todas essas contradições — prosseguiu ele. — Como é que uma linda shiksa
polonesa podia estar trabalhando no consultório de um charlatão chamado Blackstock e onde diabos
você aprendeu iídiche? Por fim... puxa, você vai ter que me desculpar de novo a mania de meter o
nariz onde não sou chamado, mas é que estou preocupado com o seu estado, entende, e preciso saber
essas coisas. Como foi que você ganhou esse número no braço? Você não quer falar nisso. Eu detesto
perguntar, mas acho que você vai ter que me dizer.
Sofia deixara cair de novo a cabeça sobre a reles almofada da poltrona cor-de-rosa e
rangente. Talvez, pensou com resignação, mesclada de desespero, se ela explicasse a parte rudimentar
agora, o mais explicitamente possível, e se tivesse sorte, quem sabe ele não perguntaria mais sobre
coisas mais sombrias e complexas, que ela nunca poderia descrever ou revelar a ninguém. Talvez
fosse ofensivo ou absurdo, da parte dela, mostrar-se tão enigmática, fazer tanto segredo de algo que,
afinal de contas, a essas alturas já deveria ser do conhecimento de todos. Embora fosse estranho que as
pessoas, ali na América, apesar de todos os fatos que haviam sido publicados, das fotos, dos
documentários, ainda não parecessem dar-se conta do que tinha acontecido, exceto da maneira mais vazia e superficial.
Buchenwald, Dachau, Belsen, Auschwitz — tudo palavras sem sentido. Aquela incapacidade
de entender, de sentir a realidade, fora outra das razões por que ela só muito raramente falara com
alguém a respeito, à parte o sofrimento, a dor lancinante que lhe causava voltar a esse trecho do seu
passado.
Quanto ao sofrimento em si, ela sabia, antes de falar, que o que iria dizer lhe causaria uma
dor quase física — como abrir uma ferida quase fechada ou tentar apoiar-se numa perna fraturada e
ainda não totalmente consolidada. Mas Nathan, a essa altura, já dera provas suficientes de que só
estava procurando ajudá-la. Ela sabia que precisava realmente — desesperadamente, até — dessa
ajuda e que lhe devia, pelo menos, um leve esboço da sua história recente.
Assim, passados uns minutos, Sofia começara a falar, satisfeita com o tom destituído de
emoção que conseguia manter.
— Em abril de 1943, fui mandada para um campo de concentração no sul da Polônia,
chamado Auschwitz-Birkenau, perto da cidade de Oswiecim. Havia três anos que estava vivendo em
Varsóvia, desde o começo de 1940, quando tive que sair de Cracóvia. Três anos é muito tempo, mas
ainda faltavam dois anos para a guerra acabar. Muitas vezes pensei que poderia ter vivido esses dois
anos a salvo, se não tivesse feito um terrível erro. Foi um erro muito estúpido, tenho raiva de mim
quando penso nele.
Tenho sido tão cuidadosa, que fico até envergonhada de dizer isso. Quer dizer, até então, eu
tinha vivido bem. Não era judia. Não morava no gueto, de modo que não podia ser presa por isso.
Também não trabalhava para a resistência. Achava demasiado perigoso, era uma questão de estar
envolvida numa situação em que... Mas não quero falar sobre isso. De qualquer maneira, como eu não
estava trabalhando para a resistência, não tinha medo de ser presa por essa razão. Fui presa por uma
razão que a você pode parecer muito absurda. Fui presa contrabandeando carne de um lugar que
pertencia a um amigo que morava no campo, nos arredores de Varsóvia. Era completamente proibido
ter carne, que ia toda para o exército alemão. Mas eu resolvi arriscar e tentar contrabandear a carne
para ajudar minha mãe a ficar bem. Ela estava muito doente com... como é que vocês dizem? — la
consomption.
— Tuberculose — disse Nathan.
— Isso mesmo. Tinha tido tuberculose anos antes, em Cracóvia, mas a doença tinha ido
embora.
Depois voltou, em Varsóvia, com aqueles invernos muito frios, sem aquecimento e quase
sem comida para comer, tudo indo para os alemães. Ela estava tão doente, que todo mundo pensou que
ia morrer. Eu não morava com ela, morava perto. Achei que, se conseguisse essa carne, ela poderia
melhorar, de modo que um domingo fui até essa aldeia no campo e comprei um presunto proibido.
Eles me prenderam e me levaram para a prisão da Gestapo em Varsóvia. Não me deixaram voltar ao
lugar onde eu morava e nunca mais vi minha mãe. Muito mais tarde, soube que ela morreu alguns
meses depois disso.
O lugar onde eles estavam sentados tinha ficado abafado e, enquanto Sofia falava, Nathan se
levantara para abrir bem a janela, deixando uma brisa fresca entrar e estremecer as rosas amarelas que
tinha comprado e enchendo o quarto do som da chuva caindo. A garoa transformara-se numa
chuvarada e, a pouca distância, no parque, um relâmpago iluminou um carvalho ou olmeiro com um
clarão branco, quase ao mesmo tempo em que um trovão estrondeava. Nathan ficou de pé junto à
janela, olhando para a súbita tempestade, as mãos juntas nas costas.
— Continue — disse. — Estou escutando.
— Passei vários dias e várias noites na prisão da Gestapo e depois fui deportada, de trem,
para Auschwitz. Levou dois dias e uma noite para chegar lá, embora em tempos normais demore só
seis ou sete horas. Havia dois campos separados em Auschwitz — o lugar chamado Auschwitz
propriamente dito e um outro campo, a alguns quilômetros longe, chamado Birkenau. Havia uma
diferença entre os campos que é preciso entender, já que Auschwitz era usado para trabalhos forçados
e Birkenau era só para uma coisa: exterminação. Quando eu saí do trem, fui escolhida não para ir
para... para... não para Birkenau e as...
Sofia sentiu a fachada que tão laboriosamente construíra começar a estalar e o seu sangue
frio falhar, com um tremer de voz que fazia gaguejar. Mas não tardou a recuperar o domínio sobre si
mesma.
— Não para ir para Birkenau e as câmaras de gás, e sim para Auschwitz, para trabalhar. Isso
porque eu era jovem e tinha boa saúde. Fiquei em Auschwitz durante vinte meses. Quando cheguei,
todo mundo escolhido para morrer era mandado para Birkenau, mas logo depois Birkenau ficou sendo
o lugar onde só os judeus eram matados. Um lugar para a exterminação em massa dos judeus. Havia
também outro lugar, não longe dali, uma enorme usine, onde era fabricada borracha — caoutchouc
synthétique. Os prisioneiros no campo de Auschwitz também trabalhavam lá, mas o principal trabalho
dos prisioneiros era ajudar na exterminação dos judeus em Birkenau. Por essa razão, o campo de
Auschwitz ficou quase todo composto de prisioneiros que os alemães chamavam de arianos, que
trabalhavam para manter o crematório de Auschwitz, para ajudar a matar os judeus. Mas é preciso
compreender que os prisioneiros arianos também acabavam morrendo, depois que os seus corpos e a
sua santé não dar mais para trabalhar e eles ficar inutiles. Aí eles também eram matados, fuzilados ou
com gás, em Birkenau.
Sofia não falara muito, mas estava rapidamente resvalando para o francês. Sentia-se
estranha e profundamente fatigada, de modo que decidiu abreviar a sua crônica ainda mais do que a
princípio pretendera.
— Só que eu não morri. Acho que tive mais boa sorte do que os outros. Durante algum
tempo tive uma posição melhor do que muitos dos outros prisioneiros, devido aos meus
conhecimentos de alemão e russo, principalmente de alemão. Isso me dar vantagem, porque durante
esse tempo comia melhor, tinha roupa um pouco nelhor e mais força. Isso me dar energia extra para
sobreviver. Mas essa situação não demorou muito e no fim eu era como o resto. Passei fome e, como
passei fome, tive le scorbut — acho que se diz escorbuto, não é? — e depois também tifo e
escarlatina. Como eu disse, fiquei lá durante vinte meses, mas sobrevivi. Se tivesse ficado mais um
dia, sei que estaria morta. Fez uma pausa e continuou:
— Agora, você diz que eu tenho anemia e eu acho que você pode estar certo, por que depois
que eu ficar livre daquele lugar, teve um médico, um médico da Cruz Vermelha, que me disse para ter
cuidado porque podia ficar com anemia. — Sentiu a voz transformar-se num suspiro. — Mas meesqueci, havia tantas outras coisas doentes com o meu corpo que esqueci isso Tinham ficado muito tempo calados, ouvindo o vento e o barulho da chuva caindo. Lavado
pela tempestade, o ar penetrava, em rajadas frescas, pela janela aberta, trazendo do parque um cheiro
de terra molhada e limpa. O vento foi diminuindo e o trovão rumando para leste, na direção de Long
Island. Não tardou que apenas uma chuva leve continuasse a se ouvir na escuridão da noite, junto com
o murmúrio distante de pneus patinando sobre as ruas encharcadas.
— Você precisa dormir — disse ele. — Vou-me embora.
Mas ela se lembrava de que ele não fora embora, pelo menos imediatamente. No rádio
estava tocando a última parte das Bodas de Fígaro e ficaram escutando sem falar — Sofia agora
estendida na cama, Nathan sentado na cadeira, ao lado dela — enquanto as mariposas esvoaçavam em
volta da lâmpada fraca que pendia do teto. Ela fechara os olhos e cochilara, mergulhando num sonho
estranho, no qual a alegre e redentora música se misturava suavemente com um cheiro de grama e
chuva. Numa ocasião, sentira, contra a face, num movimento tão leve e delicado como o da asa de um
inseto, o roçar dos dedos dele, mas isso não demorou mais que um segundo. Depois, ela adormecera e
não sentira mais nada.
Mas agora torna-se novamente necessário mencionar que Sofia não foi muito franca ao falar
do seu passado, mesmo partindo-se do princípio de que sua intenção fora apresentar uma narrativa
muito abreviada. Eu só ficaria sabendo disso mais tarde, quando ela me confessou que tinha deixado
de lado muitos fatos importantes da história que contara a Nathan. Não que tivesse mentido (como
aconteceu a respeito de um ou dois aspectos cruciais da sua vida, quando me falou dos seus primeiros
anos, em Cracóvia). Nem inventou ou distorceu algo importante — seria fácil confirmar quase tudo o
que ela disse a Nathan naquela noite. Seus breves comentários sobre o funcionamento do campo de
Auschwitz- Birkenau — embora muito sucintos — eram basicamente corretos e ela não exagerara
nem subestimara a natureza das suas várias doenças. Com relação ao resto, não há razão para se
duvidar do que ela contara a respeito da mãe, da doença e da morte dela, da sequência sobre a carne
contrabandeada e da sua prisão pelos alemães, seguida da deportação para Auschwitz. Por que razão,
então, ela deixara de lado certos elementos e detalhes que seria de esperar que incluísse? Sem dúvida,
por causa da fadiga e da depressão que sentia, naquela noite. Podia também haver uma quantidade de
outras razões, mas a palavra "culpa", conforme vim a descobrir mais tarde, muitas vezes dominava o
seu vocabulário e percebo agora que um horrível sentimento de culpa sempre norteava as narrativas
que ela era forçada a fazer sobre o passado.
Também me dei conta de que Sofia tendia a encarar a sua história recente através de um
filtro de horror a si própria — ao que parece, um fenômeno bastante comum entre os que tinham
passado pelo que ela passara. Simone Weil escreve sobre essa modalidade de sofrimento: "A dor
esmaga a alma com o desprezo, o nojo e até mesmo o ódio por si mesmo e o sentimento de culpa que
o crime deveria provocar, mas não provoca". Assim, no caso de Sofia, talvez fosse esse complexo de
emoções o que fazia com que ela guardasse silêncio a respeito de certas coisas — essa terrível culpa,
juntamente com um simples, mas bem motivado pudor. Sofia era, de modo geral, sempre reticente
quanto à sua estada nas entranhas do inferno — reticente a ponto de isso parecer uma obsessão —
mas, se era assim que ela queria que as coisas fossem, a gente tinha que respeitar essa posição.
Deve, porém, ficar claro — embora esse fato fique evidente à medida que a narrativa for se
desenvolvendo — que Sofia era capaz de me revelar coisas que nunca na sua vida poderia dizer a
Nathan. Havia um motivo simples para isso. Ela estava tão tremendamente apaixonada por Nathan,que o seu amor mais parecia uma loucura e, geralmente, é da pessoa amada que escondemos as mais profundas verdades sobre nós mesmos, quanto mais não seja pela razão muito humana de poupar
sofrimento. Ao mesmo tempo, porém, havia circunstâncias e acontecimentos, no seu passado, que
tinham que ser falados.
Acho que, inconscientemente, ela estava querendo que alguém fizesse as vezes desses
confessores religiosos aos quais friamente renunciara. Eu, Stingo, preenchia bem os requisitos. Em
retrospecto, compreendo que teria sido insuportável, a ponto de pôr em perigo a sua sanidade mental,
ela ter mantido certas coisas trancadas dentro de si. Isso mostrou-se especialmente verdadeiro à
medida que o verão foi passando, com o seu clima de emoções brutais, e à medida em que a situação
entre Sofia e Nathan foi se aproximando do colapso. Aí, quando ela estava mais vulnerável do que
nunca, sua necessidade de expressar toda a agonia e a culpa que sentia era tão urgente, que lembrava o
início de um grito, e eu estava sempre pronto a escutar, com minha idolatria canina e meus
incansáveis ouvidos. Comecei, também, a entender que, se as piores passagens do pesadelo que ela
vivera eram ao mesmo tempo tão incompreensíveis e absurdas a ponto de abalar — mas não desafiar
inteiramente — a capacidade de crédito de uma alma fácil de convencer como a minha, nunca seriam
aceitas por Nathan. Ou ele não teria acreditado, ou teria achado que ela estava louca. Podia até ter
tentado matá-la. De que maneira, por exemplo, Sofia teria encontrado jeito e força para contar a
Nathan o episódio em que ela se envolvera com Rudolf Franz Höss, Obersturmbannführer das SS,
Comandante de Auschwitz?
Falemos um pouco de Höss, antes de voltar a Nathan e a Sofia e aos seus primeiros dias e
meses juntos. Höss figurará mais adiante nesta narrativa, como um vilão-chave da Europa Central,
mas talvez seja apropriado dar aqui os antecedentes desse moderno monstro gótico. Após ter
conseguido apagá-lo da memória por muito tempo, Sofia contou-me que ele voltara à sua consciência
recentemente, por coincidência alguns dias antes de eu ter-me instalado no que todos nós passáramos
a chamar de Palácio Cor-de-Rosa. Mais uma vez, o horror tivera por cenário um vagão de metrô,
abaixo das ruas do Brooklyn. Ela estava folheando um número atrasado da revista Look, quando a
imagem de Höss parecera pular da página, causando-lhe um tal choque, que o ruído estrangulado que
lhe saíra da garganta fizera com que a mulher a seu lado estremecesse também. Höss estava a alguns
segundos do ajuste de contas final. O rosto, uma máscara inexpressiva, algemado, abatido e com a
barba por fazer, o ex-Comandante estava nitidamente às vésperas de embarcar para a última viagem.
Amarrada em volta do seu pescoço via-se uma corda, pendendo de uma forca de metal, em torno da
qual um punhado de soldados poloneses fazia os derradeiros preparativos para a viagem dele para o
outro mundo. Contemplando aquela triste figura, com o seu rosto já morto, como o de um ator que
fizesse o papel de zumbi, no meio de um palco, os olhos de Sofia procuraram, encontraram e
identificaram a borrada, mas para sempre gravada silhueta do crematório de Auschwitz. Atirara a
revista para o chão, e saltara na estação seguinte, tão perturbada por aquela imagem, obscenamente
enraizada em sua memória, que ficara andando, horas a fio e sem rumo, pelas calçadas ensolaradas em
redor do museu e do jardim botânico, antes de criar coragem para se apresentar no consultório, onde o
Dr. Blackstock logo reparara no seu ar estranho e comentara:
— Você parece que viu um fantasma!
Após um ou dois dias, porém, ela conseguira apagar a foto da sua mente. Sem que Sofia ou o
mundo soubessem, Rudolf Höss, nos meses anteriores ao seu julgamento e à sua execução, ocupara-se
em escrever um documento que, nas suas relativamente poucas páginas, revela tanto quanto qualquer
livro de grande porte a respeito de uma mente arrastada pelo êxtase do totalitarismo. Anos se
passariam antes que surgisse uma tradução em inglês (excelentemente feita por Constantine
FitzGibbon). Atualmente parte de um volume chamado K.L. Auschwitz Visto pelas SS — editado pelo
museu que o governo polonês mantém, hoje em dia, no antigo campo de concentração — essa
anatomia da psique de Höss está ao alcance de todos aqueles que desejem conhecer a verdadeira
natureza do mal. Trata-se de um obra que deveria ser lida em todo o mundo por professores de
filosofia, ministros religiosos, rabinos, shamans, historiadores, escritores, políticos e diplomatas,
adeptos do liberalismo, independentemente de sexo e convicções, advogados, juízes, especialistas em
direito penal, comediantes, diretores cinematográficos, jornalistas, em suma, por todos aqueles
preocupados, embora remotamente, em afetar a consciência dos seus semelhantes — e nisso se
incluiriam as nossas amadas crianças, esses incipientes líderes americanos, que deveriam estudá-la,
juntamente com O Apanhador no Campo de Centeio, The Hobbit e a Constituição dos Estados Unidos.
Porque nessas confissões se descobrirá que realmente não estamos familiarizados com a verdadeira
crueldade. O que é mostrado na maioria dos romances, peças e filmes é medíocre, se não espúrio, uma
mistura de violência, fantasia, terror neurótico e melodrama.
A "crueldade imaginária" — para citar, de novo, Simone Weil — "é romântica e variada, ao
passo que a crueldade real é sombria, monótona, estéril, tediosa". Não há dúvida de que essas palavras
caracterizam Rudolf Höss e o funcionamento da sua mente, um organismo tão esmagadoramente
banal, a ponto de constituir um paradigma da tese eloquentemente defendida por Hannah Arendt,
alguns anos após ele haver sido enforcado. Höss não podia ser classificado como sádico, nem era um
homem violento ou sequer particularmente sinistro. Pode-se mesmo dizer que ele possuía uma certa
decência, tendo em vista as suas atribuições. Jerzy Rawicz, o editor polonês da autobiografia de Höss,
e também sobrevivente de Auschwitz, tem a inteligência de contrariar seus ex-colegas prisioneiros,
com relação às acusações de que Höss espancava e torturava. "Ele nunca se rebaixaria a fazer coisas
dessas", insiste Rawicz. "Tinha coisas mais importantes para fazer." O Comandante era um homem
caseiro, conforme mais adiante veremos, mas cegamente dedicado ao dever e a uma causa. Assim
sendo, transformou-se num mero mecanismo servil, no qual um vácuo moral fora tão perfeitamente
limpo de todas as moléculas de hesitações e escrúpulos, que suas descrições dos horríveis crimes que
perpetrava diariamente parecem, muitas vezes, alheias a todo o mal, fantasmas de uma inocência
cretina. Não obstante, até mesmo esse autômato era feito de carne e osso, como eu ou vocês. Tinha
sido educado no catolicismo e por pouco não abraçara o sacerdócio. Pruridos de consciência, até
mesmo de remorso, o atacam de vez em quando, como o prenúncio de alguma doença bizarra, e é essa
fraqueza, essa reação humana que transparece no implacável e obediente robô, o que ajuda a tornar as
suas memórias tão fascinantes, assustadoras e educativas.
Basta meia dúzia de palavras sobre a sua vida pregressa. Nascido em 1900, no mesmo ano e
signo de Thomas Wolfe ("Oh, perdido e, pelo vento, ofendido Fantasma..."), Höss era filho de um
coronel reformado do Exército Alemão. O pai queria que ele fosse para um seminário, mas a Primeira
Grande Guerra eclodiu e, quando Höss tinha apenas dezesseis anos, alistou-se no exército. Participou
dos combates no Oriente Próximo — Turquia e Palestina — tornando-se aos dezessete anos, o mais
jovem oficial não-comissionado das forças armadas alemãs. Terminada a guerra, juntou-se a um grupo
de militantes nacionalistas e, em 1922, conheceu o homem que o dominaria pelo resto da sua vida —
Adolf Hitler. A tal ponto Höss se deixou empolgar pelos ideais do Nacional-Socialismo e pelo seu
líder, que se tornou um dos primeiros membros inscritos no Partido Nazista. Talvez não seja de
estranhar que tivesse cometido o seu primeiro crime de morte pouco depois, o que lhe valeu ser
julgado e encarcerado. Desde cedo que o assassínio era o seu dever na vida. A vítima foi um professor
chamado Kadow, chefe da facção política liberal que os nazistas consideravam contrária aos seus
interesses. Após ter cumprido seis anos de uma sentença que inicialmente o condenara à prisão
perpétua, Höss passou a fazendeiro em Mecklenburg, casou, teve cinco filhos. Os anos, no entanto,
pareciam pesar-lhe nas mãos, em meio ao trigo e à cevada, perto do tempestuoso Báltico. A
necessidade de uma carreira mais de acordo com a sua vocação foi satisfeita quando, em meados da
década de 30, encontrou um velho amigo, que conhecera nos primeiros tempos do Bruderschaft,
Heinrich Himmler, o qual facilmente persuadiu Höss a abandonar a enxada e o arado e experimentar
as vantagens de pertencer às forças SS. Himmler, cuja autobiografia revela ter sido (além de tudo o
mais) um ótimo juiz de assassinos, sem dúvida adivinhou em Höss um homem sob medida para o
importante trabalho que tinha em mente, pois os dezesseis anos seguintes da vida de Höss seriam
passados, ou como comandante de campos de concentração, ou em cargos importantes, ligados à
administração desses campos. Antes de Auschwitz, seu posto mais destacado fora em Dachau.
Aos poucos, Höss adquiriu o que pode ser chamado de uma relação proveitosa — ou, pelo
menos, simbiótica — com o homem que iria ser seu superior imediato: Adolf Eichmann. Eichmann
alimentou os dotes naturais de Höss, que levariam a alguns dos mais destacados progressos na
Todentechnologie. Em 1941, por exemplo, Eichmann começou a achar o problema judeu uma fonte de
intolerável aborrecimento, não só devido à evidente imensidão da tarefa, como também às
dificuldades práticas que envolviam a "solução final". Até então, o extermínio em massa — realizado
pelas tropas SS, numa escala relativamente modesta — fora executado ou por fuzilamento, o que
apresentava problemas relacionados com sangueira, impraticabilidade e ineficiência, ou pela
introdução de monóxido de carbono num espaço hermeticamente fechado, método igualmente ineficaz
e que consumia um tempo proibitivo. Foi Höss quem, após notar a eficiência de um composto de
cristais de hidrocianureto, chamado Zyklon B, quando usado como exterminador dos ratos e das outras
pragas que infestavam Auschwitz, sugeriu esse método de liquidação a Eichmann que, segundo Höss,
aprovou entusiasticamente a ideia, embora mais tarde negasse isso. (Não se entende por que as
experiências desse tipo na Alemanha estavam tão atrasadas.
Havia mais de quinze anos que o gás cianureto era utilizado em certas câmaras de execução
dos Estados Unidos.) Transformando novecentos prisioneiros de guerra russos em cobaias, Höss achou
o gás mais do que adequado ao extermínio de seres humanos e ele logo começou a ser utilizado num
sem-número de internos e recém-chegados de várias origens, embora, após abril de 1943, fosse
exclusivamente empregado em judeus e ciganos. Höss foi também um inovador no uso de técnicas
como campos de minas em miniatura, destinados a explodir e fazer ir pelos ares os prisioneiros que
tentassem escapar, cercas de alta voltagem e — seu grande orgulho — uma matilha de ferozes cães
policiais Doberman, conhecida como Hundestaffel, que lhe dava ao mesmo tempo satisfação e
preocupação (patenteada nas suas memórias), de vez que os cães, apesar de especialmente treinados
para despedaçar os internos que procurassem fugir, de vez em quando ficavam como que entorpecidos
e só pensavam em buscar cantos escondidos onde pudessem dormir. De modo geral, porém, as suas
ideias, férteis e inventivas, foram tão bem-sucedidas, que se pode dizer que Höss — num consumado
travesti da maneira pela qual Koch, Ehlich, Roentgen e outros fizeram progredir a ciência médica,
durante a grande florescência alemã da última metade do século passado — operou uma verdadeira e
duradoura metamorfose no conceito do extermínio em massa.
Pelo seu significado histórico e sociológico, é preciso lembrar que, de todos os co-réus de
Höss, nos julgamentos de criminosos de guerra efetuados na Polônia e na Alemanha — esses sátrapas
e assassinos de segundo plano, que compunham as fileiras das SS em Auschwitz e em outros campos
— apenas um punhado tinha uma tradição militar. Mas isso não deveria constituir grande surpresa. Os militares são capazes de cometer crimes abomináveis, haja vista, para falar apenas em tempos
recentes, os exemplos do Chile, de My Lai e da Grécia. Mas fazer da mentalidade militar sinônimo de
crueldade e torná-la província exclusiva de tenentes e generais é uma falácia dos "liberais"; a
crueldade secundária, da qual os militares são frequentemente capazes, é agressiva, romântica,
melodramática, excitante, orgástica. A crueldade real, a crueldade sufocante de Auschwitz — sombria,
monótona, estéril, tediosa — foi perpetrada quase que exclusivamente por civis. Daí descobrirmos que
as folhas de funcionários e membros das SS destacados para os campos de Auschwitz-Birkenau quase
não continham soldados profissionais, mas eram compostas de um pot-pourri da sociedade alemã,
incluindo garçons, padeiros, carpinteiros, donos de restaurante, médicos, um guarda-livros, um
empregado dos correios, uma garçonete, um bancário, uma enfermeira, um serralheiro, um bombeiro,
um funcionário da alfândega, um advogado, um fabricante de instrumentos musicais, um especialista
em construção de máquinas, um assistente de laboratório, o proprietário de uma empresa de
caminhões... a lista prossegue com essas ocupações comuns e bem civis. Basta apenas acrescentar que
o maior exterminador de judeus da história, o medíocre Heinrich Himmler, era criador de galinhas.
Não há nenhuma novidade em tudo isso: nos tempos modernos, a maioria dos atos
criminosos atribuídos aos militares foi perpetrada com a colaboração e o beneplácito da autoridade
civil. Quanto a Höss, parece ter sido quase uma anomalia, já que a sua carreira anterior a Auschwitz se
estribara na agricultura e nas armas. A evidência mostra que ele fora excepcionalmente dedicado a
ambas as coisas e é justamente essa atitude de espírito rigorosa e inflexível — o conceito do dever e
da obediência acima de tudo, que existe na mente de todo o bom soldado — que dá às suas memórias
uma tão desoladora autenticidade. Lendo a horrível crônica, ficamos convencidos de que Höss é
sincero quando expressa os seus escrúpulos, até mesmo a sua repulsa secreta por esta ou aquela
cremação ou "seleção", e que grandes dúvidas acompanham os atos que ele é obrigado a cometer.
Espreitando por trás de Höss, enquanto ele escreve, sente-se a presença espectral do garoto de
dezessete anos, do promissor jovem Unterfeldwebel do exército de outra era, quando noções de honra,
orgulho e retidão faziam parte do código prussiano, e que o rapaz parece perplexo com a inenarrável
depravação em que o adulto está metido. Mas isso ocorreu em outros tempos e em outro lugar, um
outro Reich, e o rapaz é escorraçado, juntamente com o horror, e o ex-Obersturmbannführer escreve
infatigavelmente, justificando os seus atos bestiais em nome da autoridade insensata, do dever e da
obediência cega.
A gente fica até certo ponto convencida pela equanimidade desta afirmação: "Devo deixar
bem claro que nunca odiei pessoalmente os judeus. É verdade que os considerava como inimigos do
nosso povo.
Mas só por causa disso eu não via diferença entre eles e os outros prisioneiros e tratava-os
todos da mesma maneira. Nunca fiz qualquer distinção. De qualquer forma, o ódio é estranho à minha
natureza".
No mundo dos crematórios, o ódio é uma paixão desvairada e incontinente, incompatível
com o caráter cotidiano da tarefa. Principalmente quando um homem se permitiu abdicar de emoções
tão dissipadoras, o fato de fazer perguntas ou duvidar de uma ordem torna-se acadêmico: ele obedece
imediatamente.
"Quando, no verão de 1941, o Reichsführer SS (Himmler) em pessoa me deu ordem para
preparar em Auschwitz instalações destinadas ao extermínio em massa, eu não tinha a menor ideia da
sua escala ou das suas consequências. Foi, sem dúvida, uma ordem extraordinária e monstruosa. Não obstante, as razões que a motivavam me pareciam certas. Na ocasião, não refleti sobre elas. Tinha
recebido uma ordem e cumpria-me levála a cabo. Se a exterminação em massa dos judeus era ou não
necessária, não cabia a mim opinar, pois me faltava a visão necessária."
E assim tivera início a carnificina, sob o olhar estreito, vigilante e impassível de Höss. "Eu
tinha que parecer frio e indiferente a acontecimentos que teriam partido o coração de algum dotado de
sentimentos humanos. Não podia sequer desviar os olhos quando temia que minhas emoções viessem
à tona. Tinha que assistir friamente, enquanto as mães, carregando os filhos, risonhos ou chorosos,
entravam nas câmaras de gás..."
"Certa vez, duas crianças pequenas estavam tão entretidas numa brincadeira qualquer, que se
recusaram a deixar que a mãe as puxasse. Até mesmo os judeus do Destacamento Especial relutavam
em pegar ao colo as crianças. O olhar suplicante da mãe, que certamente sabia o que estava
acontecendo, é algo que nunca esquecerei. As pessoas já estavam na câmara de gás, ficando
impacientes. Eu tinha que agir. Todo mundo estava de olho em mim. Fiz um gesto para o suboficial de
serviço e ele pegou as crianças, que gritavam e se debatiam, e carregou-as para a câmara de gás,
acompanhadas da mãe, que chorava lancinantemente. Minha pena era tão grande, que a minha vontade
era sumir, mas não podia demonstrar a menor emoção. (Arendt escreve: "O problema não era tanto em
como dominar a sua consciência, como a piedade animal que aflige todos os homens normais em
presença do sofrimento físico. O truque empregado... era muito simples e, provavelmente, muito
eficiente: consistia em orientar esses instintos no sentido inverso, isto é, em dirigi-los para si próprio,
de modo que, em vez de dizer:
"Que coisas horríveis eu fiz com as pessoas!", os assassinos pudessem dizer: "Que coisas
horríveis eu fui forçado a presenciar no cumprimento dos meus deveres, que horrível tarefa a
minha!"). Eu era obrigado a assistir a tudo, hora após hora, dia e noite, à remoção e queima dos
corpos, à extração dos dentes, ao corte do cabelo, a todas essas coisas horríveis. Era obrigado a ficar
horas a fio de pé, em meio ao mau cheiro, enquanto as covas eram abertas e os corpos removidos e
queimados."
"Tinha de olhar pelo olho-mágico das câmaras de gás e contemplar o processo da morte,
porque os médicos faziam questão de que eu assistisse... O Reichsführer SS enviou vários líderes do
partido e oficiais da SS a Auschwitz, para verem com os próprios olhos como se processava o
extermínio em massa dos judeus... Várias vezes me perguntaram como é que eu e os meus homens
podíamos assistir continuamente a essas operações e aguentar firme. Minha resposta era sempre que a
determinação férrea com que tínhamos de cumprir as ordens de Hitler só podia ser conseguida
sufocando todas as emoções humanas."
Mas até mesmo o granito ficaria afetado com tais cenas. Uma depressão convulsiva,
ansiedade, dúvidas, estremecimentos íntimos, uma Weltschmerz que desafiava a compreensão — tudo
isso acomete Höss à medida que os assassinatos progridem. Ele é mergulhado num clima que
transcende a razão, a crença, a sanidade, o próprio Satã. Não obstante, o seu tom é triste, elegíaco:
"Depois que o extermínio em massa começou, eu já não me sentia feliz em Auschwitz... Quando algo
me afetava profundamente, eu não podia voltar para casa e para a minha família. Montava no meu
cavalo e galopava até ter apagado da mente a horrível cena. Muitas vezes, à noite, eu ia até as
cavalariças, procurar alívio entre os meus queridos animais. Quando via meus filhos brincando,felizes, ou minha esposa encantada com o caçula, eu pensava: Até quando nossa felicidade irá durar?
Minha mulher não podia entender essas minhas depressões e as atribuía a algum aborrecimento
relacionado com meu trabalho. Não havia dúvida de que minha família tinha tudo o que queria em
Auschwitz. Qualquer desejo da minha mulher ou das crianças era logo satisfeito. As crianças viviam
uma existência livre. O jardim de minha mulher era um paraíso florido. Os presos nunca perdiam a
oportunidade de fazer alguma gentileza para a minha mulher ou meus filhos, de maneira a atrair a
atenção deles. Nenhum ex-prisioneiro pode dizer que alguma vez tenha sido maltratado na nossa casa.
A maior satisfação da minha mulher teria sido dar um presente a cada prisioneiro ligado de qualquer
maneira à nossa casa. As crianças estavam sempre me pedindo cigarros para os prisioneiros.
Gostavam particularmente dos que trabalhavam no jardim. Toda a minha família demonstrava grande
amor pela agricultura e principalmente pelos animais de toda a espécie. Todos os domingos, eu tinha
que atravessar os campos com elas e visitar as cavalariças, e nunca podíamos nos esquecer dos canis.
Os nossos preferidos eram os dois cavalos e a égua. As crianças sempre tinham no jardim animais, que
os prisioneiros lhes traziam: tartarugas, doninhas, gatos, lagartos, sempre havia algo novo e
interessante. No verão, banhavam-se na piscininha que havia no jardim, ou no Rio Sola. Mas a grande
alegria era quando o Papai tomava banho com eles. Infelizmente, dispunha de muito pouco tempo para
dedicar a esses prazeres infantis..."
Foi esse mundo encantado que Sofia descobriu, no início do outono de 1943, numa época em
que, à noite, as chamas do crematório de Birkenau ardiam tão alto, que o comando regional alemão,
instalado a cem quilômetros de distância, perto de Cracóvia, ficou apreensivo, temendo que o fogo
atraísse as forças aéreas inimigas e, de dia, um véu azulado, de carne humana queimada, toldava o sol
dourado do outono, espalhando por sobre o jardim, a piscininha, o pomar, as cavalariças e as sebes a
sua névoa adocicada, a sua fumaça de matadouro. Não me lembro de Sofia me contar ter alguma vez
recebido qualquer presente de Frau Höss, mas a veracidade do relato de Höss é confirmada quando sesabe que, durante o breve período que Sofia passou em casa do Comandante, da mesma forma que osoutros prisioneiros, também ela não foi jamais maltratada. Muito embora isso não fosse, no fim dascontas, algo pelo qual dar graças a Deus.
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A Escolha De Sofia
RomanceUma história comovente e aterrorizante história da polonesa Sofia zawistowka, sobrevivente do Campo de concentração de Auschwitz, que é também a história de um dos mais bárbaros crimes de todos os tempos: o holocausto promovido pelos nazistas. Por t...