Capítulo Onze

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— Filho, o Norte está convencido de que tem uma verdadeira patente com relação à virtude — disse meu pai, tocando de leve, com o dedo indicador, o seu olho preto.

 — Mas o Norte está errado. Você acha que os cortiços do Harlem representam, para os negros, um progresso sobre um pedaço de plantação de amendoins no Condado de Southampton? Você acha que os negros podem viver felizes nessa horrível pobreza? Filho, um dia destes, o Norte vai acabar lamentando essas hipócritas tentativas de magnanimidade, esses gestos pensados e transparentes, que atendem pelo nome de tolerância. Um dia, guarde bem o que eu lhe digo, vai ficar demonstrado que o Norte está tão mergulhado em preconceitos quanto o Sul, se não mais. Pelo menos, no Sul os preconceitos estão à vista. Mas aqui... 

— Fez uma pausa e levou de novo o dedo ao olho machucado.

 — Estremeço, só de pensar na violência e no ódio que germinam nesses cortiços. O protótipo do liberal sulista, consciente das injustiças perpetradas no Sul, meu pai nunca fora dado a pôr as várias culpas raciais do Sul nas costas do Norte. Por isso, foi com certa surpresa que o ouvi falar assim, sem saber — naquele verão de 1947 — quão proféticas as suas palavras provariam ser. Passava bastante da meia-noite e estávamos sentados no escuro e acolhedor bar do Hotel McAlpin, para onde eu o levara, após a desastrosa altercação que ele tivera com um chofer de táxi chamado Thomas McGuire, Licença no 8608, uma hora após a sua chegada a Nova York. O velho (Uso essa expressão apenas no sentido vernacular-paternal do termo. Aos cinquenta e nove anos, ele tinha uma aparência jovem e saudável) não ficara muito ferido, mas houvera um considerável bate-boca e um alarmante derramar de sangue, oriundo de um corte superficial na testa, que necessitara de curativo. Depois de tudo terminado e quando estávamos bebendo (ele, uísque, eu, a bebida dos meus verdes anos — Rheingold) e conversando, principalmente sobre o golfo que separava essas chagas urbanas ao norte do Chesapeake dos campos elíseos do Sul (nisso, o meu pai não podia ter sido menos profético, pois não previu Atlanta), pude refletir, sombriamente, em como a briga que meu pai tivera com Thomas McGuire me permitira, pelo menos momentaneamente, esquecer meu recente desespero. Porque, conforme o leitor talvez se lembre, tudo isso aconteceu poucas horas depois daquele momento, no Brooklyn, em que eu partira do princípio de que Sofia e Nathan haviam desaparecido para sempre da minha vida. Estava convencido — pois não tinha motivo para pensar de outra maneira — de que nunca mais a veria. E assim, a melancolia que tomara conta de mim quando saí da pensão de Yetta Zimmerman e peguei o metrô para ficar com meu pai em Manhattan, quase me provocara um dos piores mal-estares físicos que eu já conhecera — o pior desde a morte de minha mãe. A essa altura, era algo que me causava ao mesmo tempo um sofrimento e uma ansiedade incríveis. Os sentimentos alternavam-se. Olhando estupidamente para as luzes, ora incandescentes, ora escurecidas, do túnel do metrô, senti a combinação de dor como um peso imenso e opressivo em cima dos ombros, comprimindo-me os pulmões e fazendo com que a respiração saísse aos arranques. Não conseguia chorar, mas por várias vezes senti vontade de vomitar. Era como se eu tivesse testemunhado uma morte súbita e insensata, como se Sofia (e também Nathan porque, apesar da raiva, do ressentimento e da desilusão que ele me causara, estava por demais envolvido no nosso relacionamento a três para que eu de repente pusesse de lado o afeto e a amizade que sentia por ele) houvesse sido morta num desses catastróficos acidentes de trânsito, que acontecem num abrir e fechar de olhos, deixando os

sobreviventes demasiado estonteados para poderem sequer amaldiçoar os céus. Tudo o que eu sabia, enquanto o trem do metrô avançava pelas gotejantes catacumbass debaixo da Oitava Avenida, era que, com uma rapidez em que ainda mal podia acreditar, eu fora separado das duas pessoas de quem mais gostava, e a sensação de perda que isso produzira estava me causando uma angústia semelhante à de ser enterrado vivo debaixo de uma tonelada de cinzas. — Admiro tremendamente a sua coragem — disse meu pai, enquanto jantávamos num Schrafft's. — As setenta e duas horas que planejo passar nesta cidade são o máximo que a maioria dos mortais oriundos de lugares civilizados, pode suportar. Não sei como é que você aguenta. Deve ser a sua juventude, a maravilhosa flexibilidade da sua pouca idade, que lhe permite ser seduzido, em vez de devorado, por esta cidade tentacular. Nunca estive lá, mas será possível, conforme você me escreveu, que certos trechos do Brooklyn lembrem Richmond? Apesar da longa viagem de trem, meu pai estava muito bem disposto, o que me ajudou a esquecer um pouco o caos espiritual em que me encontrava. Disse que não vinha a Nova York desde o fim da década de trinta e que a cidade lhe parecia ainda mais babilônica do que nunca, na sua dissoluta ostentação. — É um resultado da guerra, filho — sentenciou aquele engenheiro, que ajudara a construir cidades navais do tamanho dos porta-aviões Yorktown e Enterprise. — Tudo neste país ficou mais rico. Foi necessária essa guerra para nos tirar da Depressão e nos transformar na mais poderosa nação da Terra. Se há uma coisa que nos vai fazer ficar à frente dos comunistas durante muitos anos, é justamente isso: dinheiro, que temos em quantidade. (Não se pense, por essa alusão, que o meu pai era, sequer remotamente, um desses fanáticos anticomunistas. Conforme já disse, ele tinha notáveis tendências esquerdistas, para um sulista: seis ou sete anos mais tarde, no auge da histeria macarthista, pediria demissão do cargo de Presidente da seção da Virgínia dos Filhos da Revolução Americana, à qual, principalmente por razões de ordem genealógica, fora filiado durante um quarto de século, quando essa tradicional organização publicou um manifesto de apoio ao Senador por Wisconsin.) Contudo, por mais sofisticados que possam ser em questões econômicas, os visitantes do Sul (ou de qualquer outro lugar do interior) raramente deixam de ficar espantados com os preços de Nova York, e meu pai não era exceção, resmungando diante da conta cobrada pelo jantar. Acho que andava por volta de quatro dólares — imaginem! — nada exorbitante, pelos padrões da metrópole, naqueles tempos sem inflação, e mesmo para a comida mais do que comum do Schrafft's. — Por quatro dólares, na nossa terra — queixou-se ele — você se banquetearia durante todo o fim de semana. Mas o bom humor logo lhe voltou, enquanto subíamos a Broadway, em meio à noite cálida, atravessando Times Square, um lugar que fez com que o velho adotasse uma expressão de puritano espanto — embora ele nunca tivesse sido puritano — reação essa, eu acho, provocada menos por desaprovação do que por choque, como que uma bofetada na cara, diante da fauna que povoa essa zona.

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