- Em Cracóvia, quando eu era pequena - contou-me Sofia - morávamos numa casa
muito velha, numa rua antiga e tortuosa, não longe da Universidade. A casa era velha mesmo. Acho
que parte dela tinha sido construída havia séculos. Estranho, essa casa e a casa de Yetta Zimmerman
são as únicas casas em que eu já morei - casas de verdade, claro - em toda a minha vida. Nasci lá,
passei toda a minha infância lá e, depois que casei, continuei morando lá, antes de os alemães
chegarem e eu ter que morar durante algum tempo em Varsóvia. Adorava aquela casa, era sossegada e
cheia de sombras no quarto andar, quando eu era muito pequena e tinha um quarto só para mim. Do
outro lado da rua havia outra casa velha, com essas chaminés tortas, e as cegonhas tinham construído
seus ninhos no alto delas. É cegonhas que se diz? Engraçado, eu costumava confundir essa palavra,
"stork", com "stilt", pernas-de-pau, em inglês. Lembro-me das cegonhas em cima da chaminé, do
outro lado da rua. Iguaizinhas às cegonhas do meu livro de contos dos Irmãos Grimm, que eu tinha
lido em alemão. Lembro-me tão bem daqueles livros, da cor da capa e das gravuras de animais, aves e
pessoas! Aprendi a ler em alemão antes de saber ler em polonês e, sabe, falei alemão antes de polonês,
de modo que, quando entrei no colégio de freiras, as colegas caçoavam de mim por causa do sotaque
alemão.
"Cracóvia é uma cidade muito antiga e a nossa casa ficava perto da praça principal, em cujo
centro tem um belo edifício feito na Idade Média - o Sukiennice, como a gente diz em polonês, que,
se não me engano, traduzido para o inglês quer dizer o palácio das fazendas, onde eles tinham o
mercado de fazendas e panos. Tem também um campanário na Igreja de Sta. Maria, muito alto, só que
em vez de sinos tem homens de carne e osso, que saem para uma espécie de balaustrada e tocam
trombetas para anunciar a hora. De noite, é um som lindo, triste e distante, como os trompetes numa
das suítes para orquestra de Bach, que sempre me fazem pensar em tempos antigos e em como isso de
tempo é misterioso. Quando eu era menina, ficava deitada no escuro do meu quarto escutando som dos
cascos dos cavalos na rua - não havia muitos carros na Polônia, nessa época - e, quando estava
quase adormecendo, ouvia os homens tocarem as trombetas no campanário, um som triste e distante, e
ficava pensando no tempo - no mistério do tempo. Ou então pensava em relógios. No hall de entrada
havia um relógio muito velho, que tinha pertencido aos meus avós e, uma vez abri a parte de trás e
olhei para dentro quando ele estava funcionando, vi uma porção de alavancas, rodas e joias - acho
que eram principalmente rubis - brilhando com o reflexo do sol. À noite, deitada na cama, eu ficava
pensando em mim dentro do relógio - imagine que pensamento mais louco, para uma criança! -
flutuando em cima de uma mola e vendo as alavancas mexer e as várias rodas girar e os rubis,
vermelhos, brilhantes e do tamanho da minha cabeça.
Acabava adormecendo e sonhando com esse relógio.
"Oh, tenho tantas recordações de Cracóvia, tantas, que não sei por onde começar! Foram
tempos maravilhosos, os anos entre as duas guerras, até mesmo na Polônia, que é um país pobre e
sofre... como é que se diz mesmo? - de complexo de inferioridade? Nathan acha que eu exagero
falando desses bons tempos - ele gosta de fazer piadas com a Polônia - mas eu lhe conto da minha
família e de como nós vivíamos de uma maneira civilizada e maravilhosa, a melhor vida que se pode
imaginar. "Que é que vocês, faziam aos domingos, para se divertir?", ele me pergunta. "Jogavam
batatas podres nos judeus?"
Ele só pensa na Polônia antissemita e fica fazendo essas piadas, que eu acho horríveis.
Porque é verdade, é famoso a Polônia ter um forte antissemitismo e isso me fazer ficar muito
envergonhada, como você, Stingo, quando você teve aquela misère por causa da gente de cor lá no Sul.
Mas eu disse a Nathan que sim, que é verdade, essa fama ruim da Polônia, mas que ele precisar
entender, vraiment, ele precisa compreender que nem todo o povo polonês era assim, tem gente boa e
decente, como a minha família, que... Oh, é horrível falar disso. Me faz pensar com tristeza que
Nathan, ele é... obcecado, por isso eu acho que vou mudar de assunto...
"Sim, a minha família. Minha mãe e meu pai, os dois eram professores da Universidade, por
isso quase todas as minhas recordações têm ligação com a Universidade, uma das mais antigas da
Europa, fundada no século XIV. Eu não conhecia nenhum outro tipo de vida, exceto a de filha de
professores, e talvez por isso as minhas recordações desses tempos são tão civilizadas. Stingo, um dia
você tem que ir à Polônia e ver e escrever sobre ela. É tão bonita! E tão triste! Imagine, os vinte anos
que eu vivi lá foram os únicos vinte anos em que a Polônia foi livre. Depois de séculos! Acho que por
isso eu costumava ouvir meu pai dizer tantas vezes: "Estes são belos tempos para a Polônia!" Porque
tudo era livre pela primeira vez, nas universidades e nas escolas - você podia estudar qualquer coisa
que você quisesse. E eu acho que essa é uma das razões pelas quais as pessoas podiam aproveitar tanto
a vida, estudar e aprender e ouvir música e ir para o campo aos domingos, na primavera e no verão. Às
vezes, eu penso que gosto de música quase tanto quanto da vida. Sempre íamos a concertos. Quando
eu era menina nessa casa velha, ficava acordada de noite, na cama, escutando a minha mãe tocar piano
na sala - Schumann ou Chopin, ou Beethoven, ou Scarlatti, ou Bach - ela era uma ótima pianista -
eu ficava acordada, ouvindo a música encher toda a casa e me sentia tão segura e confortável! Pensava
que ninguém tinha um pai e uma mãe mais maravilhosos ou uma vida melhor do que eu. E ficava
pensando que, quando eu crescesse e não fosse mais criança, talvez eu casasse e fosse professora de
música, como minha mãe.
Seria uma vida maravilhosa, poder tocar bela música e ensinar e estar casada com um ótimo
professor, como meu pai.
"Nenhum dos meus pais era de Cracóvia. Minha mãe era de Lodz e meu pai era de Lublin.
Conheceram-se em Viena, quando estavam estudando. Meu pai estudava Direito na
Academia Austríaca de Ciências e minha mãe estudava música. Os dois eram católicos muito
religiosos, de modo que fui educada indo sempre à missa e num colégio de freiras, mas nunca fui
fanática. Acreditava muito em Deus, mas minha mãe e meu pai não eram... não sei qual é a palavra
exata para dur - é, acho que é duros.
Nada disso. Eram liberais - quase até socialistas - e sempre votavam com o partido
trabalhista ou os democratas. Meu pai odiava Pilsudski. Dizia que era pior para a Polônia do que
Hitler e bebeu um bocado de schnapps para comemorar a noite em que Pilsudski morreu. Era um
pacifista, meu pai e, embora dissesse que aqueles tempos eram de felicidade para a Polônia, eu sabia
que, au fond, ele estava sombrio e preocupado. Uma vez, ouvi-o falando com minha mãe - deve ter
sido mais ou menos em 1932 - e dizer, numa voz sombria: "Isto não pode continuar. O destino nunca
permitiu à Polônia ser feliz por muito tempo". Falou isso em alemão, eu me lembro. Em casa,
falávamos mais alemão do que polonês.
Francês eu aprendi a falar, quase perfeitamente, no colégio, mas falava alemão mais melhor
ainda do que francês. Era a influência de Viena, onde meu pai e minha mãe tinham passado tanto tempo, e depois meu pai era professor de Direito e o alemão era a língua dos intelectuais daquele tempo. Minha mãe era uma cozinheira maravilhosa, à maneira vienense. Também fazia bons pratos
poloneses, mas a cozinha polonesa não é o que se chama uma haute cuisine, de modo que eu ainda me
lembro dos pratos que ela fazia naquela cozinha grande que a gente tinha em Cracóvia - Wiener
Gulash Suppe und Schnitzel e, oh! acima de tudo me lembro de uma sobremesa maravilhosa que ela
fazia, chamada pudim Metternich, cheia de castanhas, manteiga e casca de laranja.
"Sei que pode parecer cansativo repetir isso, mas minha mãe e meu pai eram pessoas
maravilhosas.
Nathan agora está ótimo, calmo, num dos seus bons tempos - períodos, vocês dizem, não?
Mas, quando ele está num dos maus períodos, como quando você o conheceu - quando ele está numa
das suas tempêtes, começa a gritar comigo e sempre me chama de porca polonesa e antissemita. Oh, a
língua dele e o que ele me chama, palavras que eu nunca ouvi antes, em inglês, em iídiche! Mas é
sempre: "Sua polonesa porca, nafka, kurveh, você está me matando, está me matando como os
imundos poloneses sempre mataram os judeus!" Tento falar com ele, mas ele não quer escutar, só fica
louco raiva e eu sei que, em tempos desses, não adianta dizer para ele que havia poloneses bons, como
meu pai. Papai nasceu em Lublin quando pertencia aos russos e havia muitos judeus lá que sofriam
com aqueles terríveis pogroms que faziam contra eles. Uma vez, minha mãe me disse - porque meu
pai nunca falava de coisas dessas - que, quando ele era jovem, ele e o irmão, que era padre,
arriscaram a vida escondendo três famílias judias de um pogrom dos soldados cossacos. Mas eu sei
que, se tentasse dizer isso a Nathan durante uma das suas tempêtes, ele gritaria ainda mais comigo e
me chamaria de polonesa porca e mentirosa. Oh, eu tenho que ser tão paciente com Nathan - sei que
ele está ficando muito doente, que ele não está bem - e ficar calada, pensando em outras coisas,
esperando que a tempête acabe e ele fique de novo bom para mim, tão cheio de tendresse e tão
amoroso.
"Deve ter sido mais ou menos há dez anos, um ano ou dois antes da guerra começar, que
pela primeira vez ouvi meu pai falar em Massenmord. Foi logo depois de saírem histórias nos jornais
sobre terrível destruição que os nazistas tinham feito na Alemanha, nas sinagogas e nas lojas dos
judeus. Lembro-me que meu pai primeiro falou não sei o quê a respeito de Lublin e dos pogroms que
ele tinha visto lá e depois disse: "Primeiro, de Leste, agora, de Oeste. Desta vez, vai ser ein
Massenmord". Não entendi bem o que ele queria dizer então, acho que um pouco porque em Cracóvia
havia um gueto, mas não tantos judeus quanto em outros lugares e, de qualquer maneira, eu não
achava que eles eram diferentes ou que eram vítimas, ou que eram perseguidos. Acho que eu era
ignorante, Stingo. Nessa altura eu estava casada com Casimir - casei muito, muito cedo e acho que
ainda era uma menininha, pensando que aquela vida maravilhosa, tão confortável e segura, iria
continuar eternamente. Mamãe e Papai, Casimir e Zozia - Zozia, você sabe, é o apelido de Sofia -
todos vivendo felizes na casa grande, comendo Wiener Gulash Suppe, estudando e ouvindo Bach -
oh, para sempre. Não entendo como eu podia ser tão estúpida. Casimir era um professor de
matemática que eu conheci quando minha mãe e meu pai deram uma festa para alguns dos jovens
professores da Universidade. Quando eu e Casimir casamos, tínhamos planos de ir para Viena, como
minha mãe e meu pai tinham fazido (sic). Ia ser muito parecido com a maneira de eles fazerem seus
estudos. Casimir conseguiria o grau supérieur em Matemática na Academia Austríaca e eu estudaria
música. Eu já tocava piano desde que tinha oito ou nove anos e ia estudar com a famosa professora,
Frau Theimann, que tinha aprendido minha mãe e continuava aprendendo - acho que o certo é
ensinando - mesmo já sendo muito velha. Mas nesse ano houve o Anschluss e os alemães entraram
em Viena. Tudo ficou muito perigoso e meu pai disse que sem dúvida íamos ter guerra.
"Me lembro tão bem do último ano quando estávamos todos juntos em Cracóvia! Eu ainda
não podia acreditar que aquela vida alguma vez pudesse mudar. Estava tão feliz com Casimir - Kazik
- e amavao tanto! Ele era tão generoso, meigo e inteligente - você está vendo, Stingo, que eu sou
sempre atraída por homens inteligentes. Não posso dizer se amava Kazik mais do que Nathan - amo
tanto Nathan, que o meu coração até dói - e acho que a gente não deve comparar um amor com outro.
Bem, eu sei que amava profundamente Kazik e não podia suportar pensar que ia haver guerra e que
Kazik podia virar soldado. Por isso a gente expulsou esses pensamentos e nesse ano fomos a concertos
e lemos muitos livros e fomos ao teatro e dar grandes passeios pela cidade. Nesses passeios eu
comecei a aprender a falar russo. Kazik era de origem de Brest-Litowsk, que durante muito tempo foi
russa e falava russo tão bem como o polonês e me aprendeu muito bem. Não como meu pai, que
também tinha vivido sob os russos, mas odiava-os tanto, que recusava falar essa língua a não ser que
obrigado. De qualquer maneira, durante esse tempo eu me recusei a pensar nessa vida acabando. Bem,
eu sabia que ia haver algumas mudanças, naturais, como sair da casa dos meus pais e ter a minha
própria casa e a minha família. Mas isso eu pensava que ia acontecer depois da guerra, se ia haver
guerra, porque sem dúvida a guerra ia durar muito pouco e os alemães iam ser derrotados e logo eu e
Kazik iríamos para Viena, estudar como sempre tínhamos planejado."
"Eu era tão estúpida de pensar uma coisa dessas, Stingo. Era como o meu Tio Stanislaw, que
era irmão de meu pai e coronel da cavalaria polonesa. Ele era o meu tio predileto, tão cheio de vida e
de risos e com um sentimento maravilhoso e inocente sobre a grandeza da Polônia - la gloire, tu
comprends, la patrie etc., como se a Polônia nunca tivesse estado sob os prussianos, os austríacos e os
russos todos aqueles anos, mas tivesse continuité, como a França ou a Inglaterra, ou outros lugares.
Ele nos visitava em Cracóvia com o seu uniforme, seu sabre e um bigode de hussardo e falava muito
alto e ria muito e dizia que os alemães iam aprender uma lição se tentassem combater a Polônia. Acho
que meu pai continuaria a ser gentil com o meu tio, mas Kazik tinha uma mentalidade muito lógica e
direta e discutia com o Tio Stanislaw de maneira amistosa, perguntando como essa cavalaria teria
efeito sobre os alemães, com suas tropas Panzer e seus tanques. E o meu tio dizia que o importante era
o terreno e que a cavalaria polonesa sabia manobrar no terreno familiar e os alemães ficariam
perdidos em terreno estranho, e que assim as tropas polonesas mandariam embora os alemães. E você
sabe o que aconteceu quando houve essa confrontação - une catastrophe totale, em menos de três
dias. Oh, tudo tão galante e idiota! Todos aqueles homens e seus cavalos! E tudo tão triste, Stingo, tão
triste..."
"Quando os soldados alemães entraram em Cracóvia - isso foi em setembro de 1939 - nós
todos ficamos chocados e com medo. Naturalmente, detestamos o que estava acontecendo, mas
ficamos calmos e esperamos pelo melhor. Essa parte não foi tão má, Stingo, no princípio, porque
tínhamos fé que os alemães nos tratariam decentemente. Não tinham bombardeado a cidade, como
Varsóvia, de maneira que nos sentimos um pouco especiais e protegidos, poupados. Os soldados
alemães tinham muito bom comportamento e eu me lembro do meu pai dizer que isso provava o que
ele tanto tempo acreditara, que o soldado alemão seguia a tradição da antiga Prússia, que tinha um
código de honra e decência, e por isso nunca faria mal aos civis, nem seriam cruéis com eles. Também
fazia nos sentir calmos ouvir todos aqueles milhares de soldados falando alemão, que para a nossa
família era quase a língua nacional. De maneira que tivemos pânico no começo, mas logo não pareceu
assim tão mau. Meu pai sofria terrivelmente com as notícias do que acontecia em Varsóvia, mas dizia
que tínhamos que continuar com as nossas vidas como antes. Dizia que não tinha ilusões sobre o que
Hitler pensava dos intelectuais, mas que em outros lugares, como Viena e Praga, muitos professores
das universidades tinham permissão para continuar o seu trabalho, e que achava que ele e Casimir também teriam. Mas após semanas e semanas passarem e nada acontecer, vimos que em Cracóvia
tudo ia ser ok, isto é, tolerável."
"Uma manhã, nesse mês de novembro, fui à missa na Igreja de Sta. Maria, a igreja das
trombetas. Em Cracóvia, eu ia à missa quase sempre e fui muitas vezes, depois que os alemães
chegaram, rezar para a guerra acabar. Talvez pareça egoísta e horrível, Stingo, mas eu acho que eu
queria que a guerra acabasse para poder ir para Viena com Kazik, estudar. Oh, naturalmente havia
milhões de outras razões para rezar, mas as pessoas são egoístas, você sabe, e eu achava que tinha
sorte de a minha família ter sido poupada, de maneira que só queria que a guerra terminasse para a
vida poder ser como nos velhos tempos. Mas quando rezei na missa, essa manhã, tive uma... uma
prémonition - sim, uma premonição e fiquei cheia de um sentimento de medo. Não sabia por que
tinha medo, mas de repente a oração parou na minha boca e eu podia sentir o vento soprando na igreja
à minha volta, muito úmido e frio. E aí me lembrei do que causou o medo, algo que tomou conta de
mim como se fosse um relâmpago. Me lembrei de que, nessa mesma manhã, o novo Governador-Geral
do distrito de Cracóvia, um nazista chamado Frank, tinha mandado as professores da Universidade se
reunir no cour de maison, para lhes aprender o novo regulamento durante a ocupação. Nada de mais,
uma simples reunião. Tinham que estar no pátio da
Universidade de manhã. Meu pai e Kazik só tinham sabido no dia antes e tudo parecia
perfeitamente razoável e ninguém se preocupou. Mas agora aquela premonição me dizia que uma
coisa muito, muito errada estava acontecendo e saí da igreja correndo."
"Oh, Stingo, eu nunca mais vi meu pai e nem Kazik! Corri, não era longe, e quando cheguei
na Universidade havia muita gente junto do portão principal, diante do pátio. A rua estava fechada ao
trânsito e havia aqueles enormes caminhões alemães e centenas e centenas de soldados alemães com
baionetas e metralhadoras. Havia uma barrière e aqueles soldados alemães não queriam me deixar
passar e então eu vi uma senhora que eu conhecia bem, a senhora do Professor Wochna, que aprendia
la chimie, você sabe, ensinava química. Ela estava histérica, chorando e caiu nos meus braços,
dizendo:
"Oh, eles foram todos, todos levados!" Não acreditei, não podia acreditar, mas outra mulher
de professor também estava chorando e disse: "É verdade. Eles foram levados, levaram também meu
marido, o Professor Smolem". E aí eu comecei a acreditar aos poucos e vi aqueles caminhões fechados
descer a rua rumo ao oeste e comecei a chorar e fiquei também histérica. Corri para casa e contei à
minha mãe e caímos chorando nos braços uma da outra. Minha mãe disse: "Zozia, Zozia, para onde
eles foram? Para onde os levaram?" E eu respondi que não sabia, mas dali a um mês ficamos sabendo.
Meu pai e Kazik foram levados para o campo de concentração de Sachsenhausen e soubemos que os
dois foram fuzilados no primeiro dia do ano. Assassinados só por que eram poloneses e professores.
Havia muitos outros professores, acho que cento e oitenta no total, e muitos também não voltaram. Foi
logo depois disso que fomos para Varsóvia - era preciso eu achar trabalho..."
"Nesses longos anos depois, em 1945, quando a guerra acabou e eu estava naquele centro
para pessoas deslocadas, na Suécia, eu pensava naquele tempo quando Kazik e meu pai foram
assassinados e em todas as lágrimas que eu tinha chorado e me espantava de não poder chorar mais
depois de tudo o que tinha acontecido comigo. Era verdade, Stingo, eu não tinha mais emoções. Não
sentia mais, como se não tivesse mais lágrimas para derramar. Lá na Suécia, fiz amizade com uma
judia de Amsterdam, que foi muito boa para mim, principalmente depois que eu tentei me matar.
Acho que não fiz muita força, cortei o pulso com um pedaço de vidro e não saiu muito sangue, mas essa velha judia ficou muito amiga minha e nesse verão falamos um bocado juntas. Ela tinha estado no
campo de concentração onde eu estive e perdido duas irmãs. Não entendo como foi que ela
sobreviveu, tantos judeus foram assassinados lá, você sabe, milhões e milhões de judeus, mas ela
conseguiu sobreviver, como eu, só uns poucos sobreviveram.
Falava muito bem inglês, além de alemão e foi assim que eu comecei a aprender inglês,
sabendo que provavelmente vinha para a América."
"Ela era muito religiosa, essa mulher, e sempre ia rezar na sinagoga que eles tinham no
campo. Disseme que ainda acreditava muito em Deus e uma vez me perguntou se eu não acreditava
Nele também - no Deus cristão - como ela acreditava no Deus de Abraão. Disse que o que tinha
acontecido com ela tornava mais forte a crença Nele, embora ela conhecesse judeus que achavam que
Deus tinha desaparecido do mundo. E eu respondi que sim, eu antigamente acreditava em Cristo e na
Sua Santa Mãe, mas agora, depois de todos aqueles anos, eu era como esses judeus que achavam que
Deus tinha ido para sempre embora. Disse que sabia que Cristo me tinha virado o rosto e eu já não
podia rezar a Ele como antigamente em Cracóvia. Já não podia rezar para Ele e nem chorar. E quando
ela me perguntou como eu sabia que Cristo me tinha virado o rosto, eu disse que só um Deus, só um
Jesus sem piedade e que já não ligava para mim poderia permitir que as pessoas que eu amava fossem
mortas e me deixar viver com essa culpa. Já era terrível elas terem morrido assim, mas aquele
sentimento de culpa era além do que eu podia suportar. On peut souffrir, mas tudo tem um limite..."
"Você pode achar que é uma coisa pequena, Stingo, mas permitir alguém morrer sem uma
despedida, um adeus, uma palavra de conforto e compreensão é terrível de suportar. Escrevi muitas
cartas a Kazik e a meu pai em Sachsenhausen, mas elas sempre voltavam com a marca
"Desconhecidos". Eu só queria dizer-lhes que os amava muito, principalmente Kazik, não porque o
amava mais do que a meu pai, mas porque a última vez que tínhamos estado juntos tínhamos brigado e
isso era terrível. Quase nunca a gente brigava, mas estávamos casados acima de três anos e acho que é
natural brigar às vezes. Na noite antes desse terrível dia tínhamos brigado, já não me lembro por que,
e eu disse para ele "Spadaj!", que em polonês é como dizer "Quero que você morra!" - e nessa noite
não tínhamos dormido no mesmo quarto.
E eu nunca mais o vi depois disso. Por isso é que eu achava tão difícil de suportar, nós não
nos termos despedido com um beijo, um abraço, nada. Oh, eu sei que Kazik sabia que eu o amava
ainda e eu sabia que ele me amava, mas isso ainda é pior, saber que ele deve também ter sofrido por
não poder me dizer, me comunicar esse amor."
"Por isso, Stingo, eu tenho vivido muito tempo com esse forte sentimento de culpa que não
consigo perder, mesmo sabendo que não tem sentido, como aquela mulher judia na Suécia me disse,
quando tentou me mostrar que o amor que a gente tinha era a coisa mais importante e não a briga
idiota. Mas eu ainda tenho esse forte sentimento de culpa. Engraçado, Stingo, eu aprendi de novo a
chorar e acho que isso quer dizer que sou de novo um ser humano. Talvez ao menos isso. Um pedaço
de ser humano, mas um ser humano. Muitas vezes choro sozinha quando escuto música, que me
lembra Cracóvia e esses anos passados. E sabe, tem uma música que eu não posso escutar, me faz
chorar tanto que o meu nariz para e eu não posso respirar e os meus olhos parecem rios. Está nesses
discos de Händel que eu ganhei no Natal. "Eu sei que o meu Redentor vive" - isso me faz chorar por
causa do meu sentimento de culpa e também porque eu sei que o meu Redentor já não vive e que o
meu corpo vai ser destruído pelos vermes e os meus olhos nunca, nunca mais vão ver Deus..." Na época sobre a qual escrevo, esse movimentado verão de 1947, em que ela me contou
tanta coisa sobre o seu passado e eu de repente me vi preso, como um desastrado inseto, na incrível
teia de aranha de emoções que formavam o relacionamento entre Sofia e Nathan, ela trabalhava numa
esquina da Flatbush Avenue como recepcionista part-time do consultório do Dr. Hyman Blackstock
(né Bialystok).
A essa altura dos acontecimentos, Sofia estava na América havia menos de ano e meio. O
Dr. Blackstock era um quiroprático que emigrara havia muito da Polônia. Seus pacientes incluíam
muitos velhos imigrantes e refugiados judeus mais recentes. Sofia conseguira o emprego pouco depois
da sua chegada a Nova York, no início do ano anterior, quando fora trazida para os Estados Unidos sob
os auspícios de uma organização internacional de ajuda aos deslocados de guerra. A princípio,
Blackstock (que falava polonês fluentemente, além do seu iídiche mamaloshen) ficara aborrecido pelo
fato de a agência lhe ter enviado uma jovem goy, que só sabia um pouco de iídiche, aprendido num
campo de concentração. Mas, homem humano e sem dúvida impressionado pela beleza dela, pelo que
Sofia passara e pelo fato de ela falar um alemão impecável, dera-lhe o emprego de que ela tanto
precisava, possuindo, como possuía, pouco mais do que as roupas leves que lhe tinham dado no centro
de deslocados da Suécia. Blackstock não precisava se preocupar: dali a dias, Sofia falava com os
clientes em iídiche como se tivesse acabado de sair de um gueto. Alugara o quarto barato na pensão de
Yetta Zimmerman - seu primeiro lar em sete anos - mais ou menos ao mesmo tempo em que
começara a trabalhar. O fato de só trabalhar três dias por semana permitira-lhe restabelecer as forças,
ao mesmo tempo que lhe dava tempo de assistir a aulas grátis de inglês no Brooklyn e se assimilar à
vida naquela parte agitada de Nova York.
Contou-me que nunca havia se sentido entediada. Estava decidida a esquecer a loucura do
passado - pelo menos, até onde um espírito e uma memória vulneráveis lhe permitiam - e assim,
para ela, a enorme cidade fora realmente um Mundo Novo. Fisicamente, sentia que ainda não estava
em forma, mas isso não evitava que ela gozasse dos prazeres que a rodeavam, como uma criança solta
numa sorveteria.
Música: para começar, só a possibilidade de ouvir música, dizia ela, enchia-lhe as entranhas
de deleite, o mesmo que a gente sente antes de fazer uma refeição apetitosa. Até conhecer Nathan, não
pudera comprar uma vitrola, mas isso não tinha importância: no pequeno rádio de pilha que comprara
ouvia música esplêndida, emanando de estações cujas estranhas iniciais nunca conseguia dizer certo
- WQXR, WNYC, WEVD - e homens com vozes sedosas, anunciando os nomes encantados dos
potentados e príncipes musicais de cujas harmonias por tanto tempo ela estivera privada. Até mesmo
obras batidas, como a Inacabada, de Schubert ou Eine kleine Nachtmusik a extasiavam como se nunca
as tivesse ouvido. E, naturalmente, havia também os concertos na Academia de Música e, no verão, no
Lweisohn Stadium, em Manhattan, música maravilhosa e virtualmente de graça, música como o
Concerto para Violino, de Beethoven, tocada uma noite, no estádio, por Yehudi Menuhim, com tal
paixão e ternura, que, sentada sozinha, no alto do anfiteatro, e tremendo um pouco sob as estrelas
rutilantes, ela sentira uma serenidade, uma sensação de paz interior, que a tinham surpreendido,
juntamente com a constatação de que ainda havia coisas pelas quais valia a pena viver e de que
poderia refazer a sua vida ou, melhor, renascer, se lhe dessem uma chance.
Durante esses primeiros meses, Sofia ficara muito tempo sozinha. Suas dificuldades com a
língua (logo vencidas) tornavam-na tímida, mas fora isso, ela gostava de estar sozinha, a solidão
parecia-lhe um luxo, já que nos últimos anos sentira muita falta de privacidade, assim como de livros, da palavra escrita.
Começara a ler avidamente, assinando um jornal polaco-americano e frequentando uma
livraria polonesa, situada perto da Rua Fulton, que tinha uma seção de livros emprestados.
Interessavam-lhe principalmente traduções de autores americanos e o primeiro livro que lera, ainda se
lembrava, fora o Manhattan Transfer, de John dos Passos, seguido de Adeus às Armas, Uma Tragédia
Americana e Do Tempo e o Rio, de Thomas Wolfe, este último tão mal traduzido para o polonês, que
ela fora obrigada a romper a promessa que fizera, no campo de concentração, de nunca mais ler nada
em alemão, e lera uma versão alemã que conseguira encontrar na biblioteca pública. Talvez pelo fato
de a tradução ser feliz, ou porque a visão lírica e trágica, porém otimista, que Wolfe projeta da
América, fosse o que a alma de Sofia ansiasse, no momento - tendo acabado de chegar a estas plagas,
com um conhecimento apenas rudimentar da paisagem do país e das gigantescas extravagâncias - Do
Tempo e o Rio fora o livro que mais a impressionara, de todos os que lera naquele inverno e naquela
primavera. De tal maneira, que resolvera tentar ler outro romance de Wolfe, Olha para Casa, Anjo, em
inglês, mas logo desistira, por achá-lo extremamente difícil. Para o iniciado, a nossa é uma língua
cruel, cuja monstruosa ortografia e cujas idiossincrasias parecem ainda mais absurdas numa página
impressa, e a capacidade de ler e escrever de Sofia sempre foi inferior - a meu ver - ao seu modo de
falar, salpicado aqui ali de erros, mas fluente.
Toda a sua experiência da América se resumia a Nova York - principalmente ao Brooklyn
- e, aos poucos, começou a amar a cidade, sentindo ao mesmo tempo, medo dela. Em toda a sua vida,
conhecera apenas duas cidades - a pequenina Cracóvia, com seu sossego gótico e, mais tarde, o
monte informe de escombros da Varsóvia após a Blitzkrieg. Suas mais ternas recordações - isto é,
aquelas de que falava - prendiam-se à cidade onde nascera, imemorialmente suspensa num friso de
telhados antigos e ruas tortuosas. O período de anos entre Cracóvia e o Brooklyn tinha-a obrigado -
quase como a única maneira de preservar a sanidade mental - a procurar esquecer esse tempo. Por
isso ela dizia que, nas primeiras manhãs que passara na pensão de Yetta, ao despertar numa cama
estranha, rodeada de paredes cor-de-rosa ao escutar, ainda sonolenta, o distante barulho do trânsito de
Church Avenue, ficava um bocado de tempo incapaz de reconhecer a si própria ou onde estava, a
ponto de lhe parecer estar em transe, como a donzela encantada de um dos contos de Grimm da sua
infância, transportada, em sonhos, para um reino novo e desconhecido. Depois, acordando com uma
sensação na qual a tristeza e a alegria se mesclavam, ela dizia para si mesma: Você não está em
Cracóvia, Zozia, está na América. E saía para enfrentar o pandemônio do metrô e dos clientes do Dr.
Blackstock, mais a verde, bela, feia, populosa, suja e incompreensível vastidão do Brooklyn.
Com a chegada da primavera, Prospect Park, ali tão perto, tornara-se o refúgio predileto de
Sofia - um lugar seguro, naqueles tempos, para uma loura solitária e encantadora andar. À luz velada
de pólen, salpicados de verde manchado de ouro, as grandes acácias e os olmeiros, que se erguiam,
como torres, sobre os gramados, davam a impressão de prontos a abrigar uma festa campestre, numa
tela de Watteau ou Fragonard, e era debaixo de uma dessas árvores majestosas que Sofia, nos seus dias
de folga ou nos fins de semana, se instalava, com uma copiosa cesta de piquenique. Mais tarde,
confessou-me, com um quê de vergonha, que tinha ficado obcecada por comida tão logo chegara a
Nova York. Sabia que tinha de ter cuidado com o que comia. No centro de Deslocados de Guerra, o
médico da Cruz Vermelha sueca que cuidava dela, tinha-lhe dito que sua desnutrição era tão grave,
que provavelmente lhe causaria mudanças metabólicas mais ou menos permanentes. Advertira-lhe que
se precavesse contra um consumo exagerado de comida, principalmente de gorduras, por mais forte
que fosse a tentação. Mas tudo isso só fizera a coisa parecer mais divertida, como que uma
brincadeira, quando, à hora do almoço, ela entrava numa das fantásticas lojas de comestíveis de
Flatbush e fazia compras para os seus piqueniques solitários no parque. O fato de poder escolher dava-
lhe uma sensação dolorosamente sensual. Havia tanta coisa para comer, tanta variedade e abundância
que, a cada vez, ela ficava sem ar, os olhos embaçados de emoção e, com gravidade e lentidão,
escolhia, dentre o fragrante e opulento sortimento de comidas, um ovo de codorna aqui, uma fatia de
salame ali, meio pão de centeio, preto e lustroso. Salsichas. Sardinhas em lata. Presunto defumado.
Arenque. Segurando na mão o saco de papel, a advertência ecoando-lhe na cabeça: "Não se esqueça do
que o Dr. Bergström lhe disse, não se encha de comida!" - ela avançava metodicamente, rumo aos
mais recônditos recessos do parque, ou ficava perto do enorme lago, onde - mastigando com grande
concentração, o paladar maravilhado com a redescoberta - abria à página 350 de Studs Lonigan.
Como que tateava. Tendo experimentado, no sentido mais lato da palavra, um verdadeiro
renascer, tinha algo da lassidão e, para falar a verdade, muito da inépcia de uma criança recém-
nascida. Sua falta de jeito lembrava a de um paraplégico tentando recuperar o uso das pernas.
Pequenas coisas, coisas absurdamente pequenas, ainda a confundiam. Esquecera como conectar os
dois lados do zíper de um blusão que lhe tinham dado. Suas tentativas desajeitadas assustavam-na e,
certa vez, chegara a chorar quando, ao tentar tirar um pouco de base de uma bisnaga plástica comum,
apertara com tanta força, que o cosmético pulara para cima dela e lhe estragara um vestido novo. Mas
estava se recuperando. De vez em quando, sentia dores nos ossos, principalmente nos tornozelos, o seu
andar ainda mostrava uma hesitação aparentemente relacionada com o desânimo e a fadiga que
costumavam dominá-la e que ela esperava ver desaparecer. Contudo, se o seu estado de saúde não era
brilhante, pelo menos ela estava a salvo da escuridão abismal em que quase mergulhara. Não havia
muito mais de um ano que, no campo de concentração recémliberado, nas derradeiras horas de uma
existência que ela não se permitia recordar, uma voz russa - uma voz de barítono, mas dura e
corrosiva - penetrara seu delírio, o suor, a febre e a sujeira da prateleira, coberta de palha, onde ela
jazia, e murmurara, num tom impassível: "Acho que esta também está acabada". Porque já então ela
sabia que não estava acabada - uma verdade agora confirmada, com alívio (ali, deitada na grama à
beira do lago), pelos tímidos, mas voluptuosos arrancos de fome que acompanhavam o exaltado
instante, pouco antes de cravar os dentes, em que as suas narinas aspiravam o cheiro pungente dos
picles, da mostarda e do pão de centeio judaico.
Mas um fim de tarde, em junho, quase fez com que terminasse, de maneira desastrosa, o
equilíbrio precário que ela criara para si mesma. Um aspecto da vida da cidade que entrava de modo
negativo no seu balanço de impressões era o metrô. Sofia detestava os trens do metrô de Nova York
pela sua sujeira e pelo barulho que faziam, mas, acima de tudo, pela proximidade de tantos corpos,
principalmente à hora do rush, que parecia neutralizar, senão anular, a sensação de privacidade por
que ela tanto ansiava.
Sabia ser uma contradição, uma pessoa que passara por tudo o que ela passara, fugir ao
contato de epidermes estranhas, parecer cheia de dedos. Mas a verdade era que ela não suportava ficar
junto de tanta gente, naquele roçar de carne - era como se isso fizesse parte da sua nova identidade.
Ainda no centro de refugiados na Suécia, jurara a si própria passar o resto da sua vida evitando
multidões. Mas o metrô nova-iorquino parecia caçoar de resolução tão absurda. Ao voltar para casa,
um fim de tarde, após ter deixado o consultório do Dr. Blackstock, Sofia entrara num vagão ainda
mais cheio do que de hábito, não só da costumeira avalanche de pessoas suarentas, de todas as cores e
dos mais variados aspectos de miséria conformada, como de um bando de garotões de escola
secundária, gritando e armados de apetrechos de beisebol, que invadiram o trem, abrindo caminho em todas as direções, com tal brutalidade, que a sensação de pressão se tornou quase insuportável.
Empurrada para a extremidade da carruagem, contra um emaranhado de torsos flexíveis e braços
suados, Sofia fora tropeçando até se refugiar na escura plataforma entre os carros, imprensada entre
duas formas humanas cuja identidade, de uma forma abstrata, ela procurava distinguir, quando o trem
de repente parou e as luzes se apagaram.
Uma sensação de medo a dominara. Os protestos e suspiros dos passageiros foram sufocados
pelas exclamações de euforia dos garotos, a princípio tão ensurdecedoras, que Sofia, rigidamente
imobilizada na parte mais escura do vagão, percebeu que não adiantaria gritar, ao sentir, por trás dela,
a mão que lhe subia pelas coxas, por baixo da saia.
Mais tarde, ela buscaria algum consolo no fato de ter-lhe sido poupado o pânico que, de
outra maneira, decerto a teria invadido em meio a um tal tumulto, a um tal calor e dentro de um trem
parado e escurecido. Talvez tivesse gemido, como os outros. Mas a mão, com seu rígido dedo central
- avançando com pressa e perícia, incrivelmente seguro de si - evitou isso, fazendo com que o
pânico fosse substituído, na sua mente, pela sensação de choque e horror de alguém que experimenta,
de repente, um estupro digital. Porque não era uma mão-boba qualquer e sim um ataque dirigido à sua
vagina, que o solitário dedo procurava como um maligno e obcecado roedor, desviando-se do pelo
sedoso até penetrar por inteiro, causando-lhe menos dor do que uma perplexidade hipnótica. Teve uma
vaga consciência de unhas e ouviu a si mesma dizer "Por favor", sentindo a banalidade, a estupidez
das palavras, tão logo as pronunciou. Todo o episódio não tinha ultrapassado trinta segundos de
duração. Finalmente, a odiosa pata retrocedeu e ela ficou, trêmula, em meio a uma sufocante
escuridão, que a luz parecia nunca mais poder aliviar. Sofia não tinha ideia de quanto tempo as luzes
tinham demorado a se acender - cinco minutos, talvez menos - mas, quando isso aconteceu e o trem
começou de novo a andar, com um deslocar de corpos, ela constatou não ter como reconhecer o seu
atacante, escondido entre a meia dúzia de costas, ombros e panças masculinas que a rodeavam. Deu
um jeito e, na parada seguinte, saltou do trem.
Um estupro direto, convencional, teria violado menos o seu espírito, a sua sensibilidade, ter-
lhe-ia causado menos repulsa e horror. Nenhuma atrocidade que ela testemunhara nos últimos cinco
anos, nenhum ultraje que ela própria sofrera - e não tinham sido poucos - a tinham encouraçado
para tamanho insulto. Um estupro clássico, por mais repelente que fosse, pelo menos lhe teria
permitido ver a cara do atacante, ter-lhe dado a perceber o que ela sentia, através de uma careta, de um
olhar de nojo ou mesmo de lágrimas: ódio, medo, repugnância, possivelmente apenas desprezo. Mas
aquele ataque anônimo no escuro, aquela penetração subreptícia e incorpórea, pelas costas, como uma
punhalada traiçoeira, de parte de um canalha cujo rosto ela jamais veria: não, ela teria preferido
(disse-me muitos meses mais tarde, quando a distância do ato lhe permitiu encará-lo sob um salvador
prisma de humor) um pênis. A coisa em si era má, mas ela poderia ter suportado o episódio com mais
força em outra altura qualquer da sua vida. Naquele momento, ele afetara o frágil equilíbrio da sua
recém-renovada psique, pela maneira com que aquela violação da sua alma (pois sentia-se como uma
violentação não só do seu corpo) não apenas a empurrava de volta para o cauchemar, o pesadelo do
qual procurava, lenta e delicadamente, recuar, como simbolizava na sua debochada perversidade, a
própria natureza desse mundo de pesadelo.
Sofia, que por tanto tempo estivera literalmente nua e que, durante aqueles poucos meses no
Brooklyn, procurara revestir-se, a custo, de autoconfiança e sanidade, fora, por meio daquele ato, mais
uma vez despida. E sentia uma vez mais o espírito gelado. Sem dar uma explicação plausível - e sem contar a ninguém, nem mesmo a Yetta Zimmerman, o que tinha acontecido - pediu ao Dr.
Blackstock uma semana de licença e recolheu-se ao leito. Dia após dia, no auge do verão, permaneceu
estendida na cama, com as venezianas corridas, deixando entrar apenas umas finas línguas amarelas
de luz. Mantinha o rádio desligado. Comia pouco, não lia nada e só se levantava para esquentar um
pouco de chá. Em meio à penumbra do quarto, ouvia o bater da bola contra a madeira do bat, e ou
gritos dos garotos, nos campos de beisebol do parque, cochilava e pensava na perfeição uterina
daquele relógio no qual, em criança, ela entrara em imaginação, e ficara olhando as alavancas, os
rubis, as rodas, empoleirada numa mola de aço.
Sempre ameaçadoras, na fímbria da sua consciência, pairavam a forma e a sombra, a
aparição do campo de concentração - cujo nome ela, por assim dizer, expulsara do seu léxico
particular e no qual raramente pensava, sabendo que só com o risco da própria vida poderia permitir a
intrusão do campo na sua memória. Se o campo voltasse a se aproximar, como fizera na Suécia, teria
ela a força de resistir à tentação, ou pegaria de novo num caco de vidro, não hesitando dessa vez, em ir
até o fim? A pergunta ajudou-a a ocupar as horas que ela passou deitada, durante aqueles dias, olhando
para o teto, onde floquinhos de luz, vindos do exterior, nadavam como peixinhos dourados no
desolado e onipresente rosa.
Providencialmente, porém, foi a música que ajudou a salvá-la, como já acontecera no
passado. No quinto ou sexto dia - Sofia sabia apenas que era um sábado - despertou, após uma noite
desassossegada, cheia de sonhos confusos e ameaçadores e, como que movida pelo hábito, esticou a
mão e ligou o pequeno rádio Zenith, sobre a mesinha de cabeceira. Não pensara ligá-lo, fora um
simples reflexo; a razão por que evitara a música, naqueles dias de depressão, era ter descoberto que
não podia suportar o contraste entre a beleza abstrata, mas incomensurável, da música e a dimensão
quase palpável do seu desespero. Mas, sem se dar conta, devia ter permanecido aberta e receptiva aos
poderes misteriosamente terapêuticos do Dr. W. A. Mozart, pois logo aos primeiros acordes da música
- a grande Sinfonia Concertante em mi bemol maior - ela estremecera dos pés à cabeça, tomada de
um prazer sem limites. De repente, compreendera a razão daquilo, por que motivo aquelas frases
nobres e sonoras, tão cheias de dissonâncias, lhe imbuíam o espírito de alívio, reconhecimento e
alegria. Porque, à parte a sua beleza intrínseca, era uma obra cuja identidade ela havia dez anos
procurado. Tinha ficado como que hipnotizada ao ouvi-la pela primeira vez, quando um conjunto
vienense visitara Cracóvia; mais ou menos um ano antes do Anschluss. Sentada na sala de concertos,
ouvira, transfixiada, aquela peça e abrira todas as portas e janelas da sua mente para deixar entrar as
luxuriantes harmonias e aquelas loucas dissonâncias, inexaurivelmente inspiradas. Numa época da sua
juventude dominada pela perpétua descoberta de tesouros musicais, aquele era como que um tesouro
acabado de cunhar e supremo.
Contudo, nunca mais ouvira a peça porque, como tudo o mais, a Sinfonia Concertante e
Mozart, o doce e queixoso diálogo entre o violino e a viola, realçado pelas flautas, as cordas, a
rouquidão das madeiras, tudo fora soprado pelos ventos da guerra, numa Polônia tão estéril, tão
mergulhada em destruição, que a simples ideia da música parecia ridícula, uma excrescência.
Por isso, naqueles anos de cacofonia, na Varsóvia arrasada pelas bombas e, mais tarde, no
campo de concentração, a lembrança daquela obra se esfumara, inclusive o título, que ela acabara
confundindo com os títulos de outras peças musicais que conhecera e amara num tempo imemorial,
até restar apenas numa recordação vaga, mas inefável, de um momento de incomparável felicidade, na
Cracóvia de outra era.
Mas, no seu quarto, naquela manhã, a peça, emanando alegremente da laringe de plástico do
radinho barato, fizera com que ela se sentasse na cama com o coração pulando rápido e uma sensação
desacostumada ao redor da boca, que percebeu ser um sorriso. Durante minutos ficara ali, sentada,
escutando, sorrindo, arrepiada, encantada, o intangível se tornar tangível e começar lentamente a
dissolver a angústia que a dominava. Depois, quando a música acabara e ela anotara cuidadosamente o
nome da obra, anunciado pelo locutor, fora até a janela e levantara a persiana. Olhando para o campo
de beisebol, na orla do parque, Sofia ficara pensando se algum dia teria dinheiro suficiente para
comprar uma vitrola e um disco da Sinfonia Concertante, e compreendera que só esse pensamento já
era, por si só, um sinal de que estava emergindo das sombras.
Mas ela sabia que ainda tinha muito que percorrer. A música podia ter-lhe levantado o
ânimo, mas à sua volta a escuridão deixara o seu corpo fraco e abatido. O instinto lhe dizia que isso
era porque tinha comido tão pouco, que o efeito fora quase o de um jejum. Mesmo assim, não podia
explicar a falta de apetite, a fadiga, as pontadas de dor que lhe percorriam os tornozelos e,
principalmente, o inesperado adiantamento do seu período menstrual, chegando muitos dias antes do
que deveria e com um fluxo tão copioso, que mais parecia uma hemorragia. Assustada, ficou pensando
se não seria efeito do singular estupro que sofrera. No dia seguinte, ao voltar a trabalhar, resolveu
pedir ao Dr. Blackstock que a examinasse e lhe sugerisse um tratamento. Tinha alguma noção de
medicina e percebia a ironia que havia no fato de procurar os conselhos de um quiroprático, mas ela
deixara os preconceitos de lado ao aceitar o emprego de que tão desesperadamente necessitava. Sabia,
pelo menos, que o que ele fazia era legal e que, da multidão de pacientes que procuravam o
consultório (inclusive vários policiais), alguns, ao menos, pareciam beneficiar-se das massagens
espinhais do doutor, dos seus puxões e das suas torções.
Mas o importante era ser ele uma das poucas pessoas que ela conhecia suficientemente bem
para pedir ajuda de qualquer tipo. Além disso, tinha uma certa dependência dele, em nada relacionada
com o magro salário que dele recebia. Acima de tudo, sentia-se ligada ao doutor de uma forma
divertida e tolerante. Blackstock, um homem robusto e começando a ficar calvo, de cinquenta e
poucos anos, era um desses abençoados por Deus, a quem o destino tirara da pobreza de um shtetl, na
Polônia russa, para as mais sublimes satisfações que o sucesso materialista americano podia oferecer.
Um dândi, cujo guarda-roupa continha coletes bordados, gravatas e echarpes de foulard e botoeiras de
cravos, ótimo papo e grande contador de piadas (quase todas em iídiche), parecia flutuar numa aura
contagiante de otimismo e boa disposição. Gostava de seduzir, de distribuir presentes e favores e de
executar, para os clientes, para Sofia, para quem quisesse apreciar, pequenos truques de mágica e
passes de mão. No estado de espírito em que se encontrava, Sofia podia ter ficado irritada com tanta
euforia, com tantas piadas e brincadeiras, mas por trás de tudo aquilo via um tal desejo infantil de ser
estimado, que não podia sentir-se ofendida.
Além disso, apesar da qualidade óbvia do seu humor, ele fora a primeira pessoa, em anos,
que conseguira fazê-la rir.
A respeito dos seus bens materiais, ele era espantosamente franco. Só um homem tão
expansivo e cheio de calor humano poderia recitar a lista do que possuía sem parecer odioso - o que
ele fazia, num inglês híbrido e gutural, com um sotaque - o ouvido de Sofia já aprendera a distinguir
- tipicamente brooklyniano:
- Quarenta mil dólares ao ano de renda bruta, uma casa de setenta e cinco mil dólares, na
parte mais elegante de St. Albans, Queens, toda ela paga, acarpetada e com luz indireta em todas as peças, três carros, inclusive um Cadillac Fleetwood com todos os acessórios e um iate de onze metros
de comprimento, com seis beliches. Tudo isso, além da mulher mais adorável que Deus já deu a um
homem.
Logo a mim, um jovem judeu faminto, um pobre nebbish, que desembarcou na Ilha Ellis
com cinco dólares no bolso e sem conhecer ninguém! Me diga! Me diga por que eu não me haveria de
sentir o homem mais feliz do mundo? Por que não haveria de querer fazer as pessoas rirem e serem
felizes como eu?
Não havia razão, realmente, pensou Sofia, um dia, nesse inverno, ao voltar para o
consultório sentada ao lado de Blackstock, no Cadillac, após uma ida à casa do doutor, em St. Albans.
Fora ajudá-lo a procurar alguns papéis no escritório que ele tinha em casa e lá conhecera a
mulher do doutor - uma exuberante loura artificial, chamada Sylvia, chamativamente vestida com
uma calça de seda estufada, semelhante às usadas pelas dançarinas de ventre da Turquia, que logo
tratou de mostrar à Sofia a casa, a primeira em que ela entrava na América. Era um verdadeiro
labirinto de organdi e chintz, imerso, apesar de ser meio-dia, na meia-luz arroxeada de um mausoléu,
onde cupidos rosados se debruçavam das paredes para um piano de cauda pintado de vermelho
berrante e para poltronas e sofás capitonnés, brilhando sob protetoras mortalhas de plástico
transparente, e onde os espelhos de porcelana do banheiro eram pretos retintos. Depois, já no Cadillac
Fleetwood, com o seu enorme monograma nas portas da frente - HB - Sofia viu-o, fascinada, usar o
seu telefone móvel, instalado, recentemente, para uns poucos clientes selecionados, em base
experimental e, nas mãos de Blackstock, um sobressalente instrumento de amor. Mais tarde, ela se
recordaria do diálogo - ou, melhor, da parte dele - ao contatar com sua casa: "Sylvia, meu bem,
quem está falando é o Hymie. Está me ouvindo bem? É só para lhe dizer que sou louco por você,
queridinha. Beijos, beijos, amor. Fleetwood está agora passando por Liberty Avenue, junto do
cemitério de Bayside. Eu adoro você, querida, um beijo para o meu amor. (Som de beijos estalados.)
Volto a falar daqui a uns minutos, meu bem". E, pouco depois: "Sylvia, querida, é o Hymie. Adoro
você, meu amor. O Fleetwood está agora na esquina de Linden Boulevard com Utica Avenue. Que
engarrafamento! Um beijo, querida. (Som de beijo.) Muitos, muitos beijos para você. O quê? Você diz
que vai fazer compras em Nova York? Compre uma roupa bem bonita pra, usar para o seu Hymie,
minha adorada. Você sabia que a adoro? Oh, querida, esqueci, leve o Chrysler. O Buick está com a
bateria gasta. Até já, queridinha". E, deitando um olhar para Sofia e acariciando o telefone:
- Que sensacional meio de comunicação!
Blackstock era um homem realmente feliz. Adorava Sylvia mais do que a própria vida. Só o
fato de não terem filhos, confidenciara certa vez a Sofia, fazia com que ele não fosse o homem mais
feliz da face da Terra...
Conforme se verá (e isso é importante para esta narrativa), Sofia contou-me várias mentiras,
nesse verão. Talvez eu devesse dizer que, em certas ocasiões, isso era necessário para que ela
mantivesse o equilíbrio emocional. Ou, quem sabe, até mesmo a sanidade mental. Sem dúvida não a
acuso porque, vistas em retrospectiva, as suas inverdades não precisavam de desculpas. A passagem
sobre sua juventude em Cracóvia, por exemplo - o solilóquio que eu procurei transcrever o mais
acuradamente possível - era, tenho agora a certeza, quase toda verdadeira. Mas continha uma ou duas
significantes falsidades, juntamente com algumas lacunas cruciais, que eventualmente serão esclarecidas. Lendo muito do que escrevi até agora, reparo que Sofia me disse uma mentira momentos após nos termos visto pela primeira vez. Foi quando, após a horrível briga com Nathan, ela me deitou
o seu olhar de desespero e declarou que Nathan era "o único homem com quem fiz amor, além do meu
marido". Embora sem importância, essa declaração não era verdadeira (muito mais tarde, ela me
confessou que, após seu marido ter sido fuzilado pelos nazistas - o que realmente acontecera -
tivera um amante em Varsóvia) e eu trago o assunto à baila não por uma obstinação pela veracidade
absoluta, e sim para mostrar a atitude reservada de Sofia com respeito ao sexo, e a dificuldade que foi,
para ela, contar a Blackstock o que lhe estava acontecendo e que ela achava ser consequência do
estupro que sofrera no metrô.
Tinha um pudor enorme de revelar o seu segredo - até mesmo a Blackstock, um
profissional e, além do mais, uma pessoa em quem ela sabia que podia confiar. O horror do que lhe
acontecera era algo que nem vinte meses de campo de concentração - com sua desumana degradação
diária e sua nudez - tinham conseguido fazer com que se sentisse menos ultrajada. Ao contrário,
sentia-se ainda mais vulnerável porque pensara no Brooklyn como sendo um lugar "seguro" e, além do
mais, a sua vergonha era ainda maior pelo fato de ser católica, polonesa e fruto do seu tempo - isto é,
uma jovem criada com repressões puritanas e tabus sexuais tão marcantes quanto qualquer donzela
batista do Alabama. (Só mesmo Nathan, contou-me ela mais tarde, Nathan, com sua sensualidade
apaixonada, tinha conseguido despertar nela um erotismo que Sofia nem sequer sonhara possuir.)
Acrescente-se a isso a vergonha do estupro, a maneira grotesca, não-convencional, pela qual fora
atacada - e o constrangimento que sentira ao ter que contar a Blasckstock fora quase insuportável.
Mas, noutra ida a St. Albans no Cadillac, falando a princípio num rígido e formal polonês,
ela conseguira lhe falar da preocupação com seu estado de saúde, no cansaço, nas dores nas pernas e
nas hemorragias e, finalmente, contara, quase num sussurro, o episódio do metrô. E, conforme ela
esperava, Blackstock não percebeu, de imediato, o que ela estava querendo dizer. Então, com grande
dificuldade, quase se engasgando, o que só muito mais tarde adquiriria um leve enfoque cômico, ela
lhe dera a entender que não, o ato não fora consumado de maneira comum. Não obstante, nem por isso
fora menos revoltante e aviltante.
- Doutor, será que o senhor não entende? - murmurou ela, em inglês.
Fora ainda mais revoltante por esse fato - acrescentara ela, já em lágrimas - se é que ele
podia fazer um esforço para compreender o que ela queria dizer.
- Você está me dizendo - interrompeu ele - que foi com um dedo...? Que não foi com
o...
E estacou, delicadamente, porque, no que dizia respeito a sexo, Blackstock não era um
homem grosseiro. E, quando Sofia reafirmara tudo o que acabava de dizer, ele olhara para ela com
compaixão e murmurara, com uma amargura que lhe era estranha:
- Oy vey, que mundo mais furshtinkener, este em que a gente vive!
O resultado de tudo isso foi que Blackstock concordou em que a violação que Sofia sofrera,
embora fora do comum, podia muito bem ter causado os sintomas que tinham começado a incomodá-
la, principalmente a hemorragia. Especificamente, o diagnóstico foi que o trauma por ela sofrido,
localizado como estava na região pélvica, provocara um deslocamento mínimo, mas que nem por isso
deveria ser ignorado, da vértebra sacra, com consequente pressão no quinto nervo lombar ou no primeiro nervo sacro, ou em ambos; de qualquer maneira, era o bastante para causar a perda de
apetite, a fadiga e as dores nos ossos de que ela se queixava, ao passo que o sangramento exagerado
ratificava os outros sintomas. Não havia dúvida, disse ele a Sofia, de que ela precisava de massagens
na coluna dorsal, para restaurar o funcionamento normal dos nervos e trazê-la de volta ao que o doutor
chamava (pitorescamente, mesmo aos ouvidos inexperientes de Sofia) "o pleno verdor da saúde".
Duas semanas de tratamento quiroprático, garantiu ele, fariam com que ela ficasse novinha em folha.
Era como se ela fosse sua parente, de modo que não lhe cobraria um tostão. E, num último esforço
para levantar-lhe o ânimo, insistiu para que Sofia assistisse ao seu mais recente número de
prestidigitação, no qual um buquê de sedas multicoloridas lhe sumiu, de repente, das mãos no meio do
ar, para reaparecer, um instante depois, transformadas em bandeirinhas das Nações Unidas, saindo
lentamente da sua boca, presas a um fio. Sofia conseguiu soltar uma risada apreciativa mas, nesse
momento, sentia-se tão por baixo, que temeu enlouquecer.
Nathan referiu-se certa vez à maneira como ele e Sofia se conheceram como tendo sido
"cinematográfica". Com isso ele queria dizer que não tinham se conhecido como a maioria das
pessoas, atraídas por circunstâncias comuns de educação, colégio, trabalho ou vizinhança, mas à
maneira deliciosa e inesperada desses românticos estranhos dos filmes de Hollywood, cujos destinos
se cruzam a partir do primeiro encontro patrocinado pela sorte: John Garfield e Lana Turner, por
exemplo, condenados a se amarem desde o instante em que tinham olhado um para o outro num café
de beira de estrada ou, mais originalmente, William Powell e Carole Lombard, de quatro numa
joalheria, as cabeças colidindo ao procurarem um brilhante perdido. Por outro lado, Sofia atribuía a
convergência dos seus caminhos simplesmente ao fracasso da medicina quiroprática. Suponhamos,
pensava ela, às vezes, que as ministrações do Dr. Blackstock e as do seu jovem assistente, Dr.
Seymour Katz (que chegava depois da hora normal de atendimento, para ajudar a dar vazão à
prodigiosa torrente de sofredores) tivessem dado resultado; suponhamos que o desenrolar dos
acontecimentos que tinham levado do dedo violador à vértebra sacra e ao comprimido quinto nervo
lombar não só tivesse provado não ser uma quimera quiroprática, mas tivesse terminado
triunfalmente, como resultado de duas semanas de manipulações da sua atormentada coluna, por parte
de Blackstock e Katz!
Assim curada, ela nunca teria conhecido Nathan, disso não havia dúvida. Mas a verdade foi
que todo o vigoroso tratamento a que ela se submetera só a fizera sentir-se pior. A tal ponto que Sofia
venceu a sua repugnância em ferir as suscetibilidades de Blackstock e lhe disse que nenhum dos
sintomas tinha desaparecido, pelo contrário, tinham-se tornado mais incômodos e alarmantes.
- Mas, minha querida - exclamara Blackstock, abanando a cabeça - você tem que se
sentir melhor!
Duas semanas tinham-se passado e, quando Sofia sugeriu ao médico, com grande relutância,
que talvez precisasse consultar um médico de verdade, ele teve a reação mais próxima da indignação
que ela jamais vira naquele homem quase que patologicamente bondoso.
- Você quer consultar um doutor em medicina? Um gozlin com consultório em Park Slope,
que só vai querer roubar você? Minha querida, é melhor você consultar um veterinário!
Para desespero dela, ele propusera tratá-la com um Electro-Sensilator, aparelho novo e de
aspecto complicado, parecido com uma pequena geladeira e contendo muitos fios e telas, destinado a
corrigir a estrutura molecular das células da espinha, e que ele acabara de adquirir ("por cinco vinténs", disse, acrescentando mais uma expressão idiomática ao vocabulário dela) de um instituto de
quiroprática situado em Ohio ou Iowa - estados cujos nomes ela sempre confundia.
Na manhã do dia em que iria se submeter ao macabro abraço do Electro-Sensilator, Sofia
acordara sentindo-se excepcionalmente doente e fatigada, pior do que nunca. Era um dia em que não
tinha que ir trabalhar, de modo que resolvera ficar toda a manhã na cama, só se levantando por volta
do meio-dia.
Lembrava-se nitidamente de que, no seu dormitar febril - um cochilar no qual o passado
em Cracóvia se misturava, sem explicação possível, com a presença sorridente e as mãos hábeis do
Dr. Blackstock - não parava de sonhar, numa obsessão misteriosa, com seu pai. Muito sério, no seu
colarinho duro, os óculos sem aro, de professor, e o terno preto, cheirando a fumaça de charuto, ele lhe
falava, em alemão, com a mesma intensidade de que Sofia se recordava, quando criança. Parecia estar
prevenindo-a de alguma coisa - estaria preocupado com a doença dela? - mas, de cada vez que ela
lutava para sair do estado de letargia em que se encontrava, as palavras dele se desvaneciam e lhe
fugiam da memória e ela ficava apenas com a aparição do pai, severa e, até de certa forma, vagamente
ameaçadora. Finalmente - acima de tudo para afastar aquela imagem - ela se forçara a sair da cama
e enfrentar o lânguido e belo dia de verão. Mal se aguentava nos pés e de novo não sentia o menor
apetite. Havia muito tinha consciência da palidez da sua pele mas, naquela manhã, um olhar ao
espelho do armário do banheiro a horrorizara, quase a pusera em pânico: seu rosto estava tão vazio de
cor e de vida quanto as caveiras de monges há muito falecidos, que ela se lembrava de ter visto no
sepulcro subterrâneo de uma igreja italiana.
Com um arrepio que lhe perpassou os ossos, os dedos - magros e exangues - e as plantas
dos pés, Sofia fechou os olhos, na certeza, sufocante e absoluta, de que estava morrendo. E sabia até o
nome da doença: estou com leucemia, pensou. Estou morrendo de leucemia, como meu primo
Tadeusz, e todo esse tratamento do Dr. Blackstock não passa de um caridoso disfarce. Ele sabe que eu
estou morrendo e apenas finge que me vai curar. Um quê de histeria entre a dor e a hilaridade, tomou
conta dela, ao pensar na ironia que havia em morrer de uma doença tão insidiosa e inexplicável, após
ter sobrevivido a tantas outras doenças e depois de tudo o que vira e o que passara. E a esse
pensamento ela pôde acrescentar o corolário, perfeitamente lógico, embora torturante e desesperador,
de que tal fim era apenas a maneira de o corpo levar a cabo a autodestruição que ela não conseguira
realizar por si mesma.
No fim, Sofia conseguiu controlar-se e empurrar o pensamento mórbido para os recessos
mais fundos da mente. Afastando-se um pouco, do espelho, apercebeu-se narcisisticamente da própria
beleza persistente sob a máscara branca, e isso lhe deu um longo momento de conforto. Era dia da sua
aula de inglês no Brooklyn College e, a fim de se fortalecer para a terrível viagem de metrô e para a
aula em si, obrigou-se a comer alguma coisa. Apesar da náusea, Sofia sabia que tinha que engolir os
ovos com bacon, o pão integral de centeio e o leite desnatado que preparou, sem vontade, na penumbra
da sua pequena kitchnette. E, enquanto comia, ela teve uma inspiração - parcialmente provocada pela
sinfonia de Mahler tocando no concerto do meio-dia transmitido pela WQXR. Sem que Sofia soubesse
o motivo, uma série de sombrios acordes, no meio do andante da sinfonia, lembraram-lhe o notável
poema que o professor, um ardente, gordo, paciente e consciencioso estudante de último ano de letras,
chamado Mr. Youngstein, lhe lera no fim da última aula de inglês. Sem dúvida, devido ao fato de
saber outras línguas,
Sofia era, de longe, a melhor aluna da classe, entre o grupo de esforçados estudantes, formado principalmente por refugiados de fala iídiche, oriundos de quatro cantos arruinados da
Europa. O fato de ser a aluna mais bem dotada decerto atraíra o Sr. Youngstein para Sofia, embora não
fosse tão cega que não se apercebesse de que a sua mera presença física pudesse perturbar o jovem.
Tímido e agitado, ele estava obviamente caído por ela, mas se limitara a sugerir,
desajeitadamente, que ela ficasse alguns momentos depois da aula, para que ele lhe pudesse ler o que
chamava de "alguns poemas representativos da poesia americana". Lia os versos numa voz nervosa,
entoando os poemas de Whitman, Poe, Frost e outros em sílabas roucas, nada musicais, mas
claramente enunciadas, enquanto ela escutava com grande atenção, por vezes profundamente tocada
por aquela poesia, que aqui e ali trazia novas e excitantes nuanças de significado à língua inglesa, e
pela evidente paixão que ele sentia por ela, expressa em olhares de fauno, por trás dos monstruosos
óculos prismáticos. Sentia-se ao mesmo tempo lisonjeada e aborrecida com aquela obstinada devoção
e só se sentia tocada pela poesia porque, além de ele ser, com vinte e poucos anos, pelos menos dez
anos mais jovem do que ela, não era, fisicamente, nada apetecível - isto é, enormemente gordo, além
de ter olhos grotescamente estrábicos. No entanto, sentia de maneira tão profunda, tão sincera, aqueles
poemas, que não podia deixar de comunicar muito da sua essência, e Sofia ficara principalmente
cativada pela melodia de um deles, que começava assim:
Porque eu não pude parar para a Morte,
Ela parou para mim;
Na carruagem cabíamos só nós
E a Imortalidade.
Ela adorara ouvir o Sr. Yougnstein ler o poema e queria lê-lo ela própria, juntamente com as
outras obras da poesia, a fim de guardá-las de cor. Mas houve uma pequena confusão. Uma das
inflexões do professor lhe escapara. Sofia entendera que esse pequeno poema, essa visão
fascinantemente simples mas que continha em si o ressoar da eternidade, era obra de um poeta
americano cujo último nome era idêntico ao de um dos mais famosos romancistas da literatura
mundial. E, por isso, no seu quarto da pensão de Yetta, lembrando-se do poema graças aos acordes
sombrios da sinfonia de Mahler, decidira ir, antes da aula, até a biblioteca do Brooklyn College e
procurar a obra desse maravilhoso poeta, que ela, ignorantemente, pensava ser um homem. Esse mal-
entendido, dir-me-ia ela mais tarde, fora, realmente, a peça crucial que faltava para completar o
pequeno mosaico que redundara no seu encontro com Nathan.
Lembrava-se claramente de sair do calor flatulento do detestado metrô e entrar no
ensolarado campus com seus grandes retângulos de grama bem verde, sua multidão de estudantes de
cursos de verão, suas árvores e suas aleias floridas. Sempre se sentia mais em paz ali do que em
qualquer outro lugar do Brooklyn. Embora aquela universidade se parecesse tanto com a venerável
Universidade Jagielloniana do seu passado quanto um reluzente cronômetro com um velho relógio de
sol, todos aqueles estudantes, a movimentação entre as aulas, o ambiente acadêmico faziam Sofia
sentir-se confortável, em casa. Os jardins eram como que um oásis, sereno e cheio de flores, em meio
ao enxamear de uma caótica Babilônia. Nesse dia, ao atravessar os jardins, a caminho da biblioteca,
Sofia avistara algo que ficaria tão indelevelmente gravado na sua mente a ponto de mais tarde se
perguntar se não teria uma relação mística com Nathan e o surgimento dele na sua vida. O que ela viu,
mesmo pelos padrões de decoro do Brooklyn College e dos anos quarenta, não era por assim dizer chocante, e Sofia não ficou escandalizada quanto estranhamente agitada, como se a rápida e
desesperada sensualidade da breve cena tivesse o poder de reavivar dentro dela as brasas de um fogo
que julgara ter sido quase que para sempre extinto.
Vislumbrara, apenas, o instantâneo colorido de dois jovens, morenos e esplendorosamente
belos, encostados contra um tronco de árvore, com os braços cheios de livros, mas tão apaixonados
quanto David e Betsabé, beijando-se com a fome de animais devorando-se mutuamente, as línguas
enfiadas glutonamente na boca um do outro, visíveis através do manto escuro da cascata de cabelo da
moça.
O instante passou. Sentindo como se a tivessem apunhalado no peito, Sofia afastou os olhos
e apressou-se a descer pela calçada cheia de estudantes, cônscia de que devia estar muito vermelha e
de que o seu coração batia loucamente. Era algo inexplicável e alarmante, aquela incandescente
excitação sexual que sentia dentro dela. Após ter passado tanto tempo sem sentir absolutamente nada,
depois de ter vivido tanto tempo sem desejo! Mas agora a fogueira estava na ponta dos seus dedos, nas
suas extremidades e, acima de tudo, no centro da sua pessoa, dentro do ventre, onde havia meses e
anos não ardia.
A incrível emoção evaporou-se rapidamente. Desaparecera quando ela entrou na biblioteca e
muito antes de dar com o bibliotecário, atrás do balcão - um nazista. Não, claro que ele não era
nenhum nazista, não só porque a plaqueta gravada em preto sobre branco o identificava como sendo o
Sr. Sholom Weiss, mas também porque - bem, que estaria um nazista fazendo ali, distribuindo
volume sobre volume do conhecimento humano na biblioteca do Brooklyn College? Mas Sholom
Weiss, um homem pálido e sisudo, de trinta e poucos anos, com agressivos óculos de armação de
tartaruga e uma viseira verde, de tal maneira parecia sósia de todos os burocratas e semimonstros
alemães, inflexíveis e sombrios, que ela conhecera nos últimos anos, que Sofia teve a estranha
sensação de haver voltado a Varsóvia dos tempos da ocupação. E foi sem dúvida esse momento de
déjà vu, esse sentimento de indentificação, que a fez ficar de repente tão descontrolada. Sentindo-se de
novo fraca e doente, perguntou a Sholom Weiss, numa voz tímida, onde estava a ficha na qual poderia
encontrar as obras do poeta americano do século XIX, Emil Dickens. - Na sala de catalogação,
primeira porta à esquerda - respondera Weiss, entre dentes.
E, após uma longa pausa, acrescentara: - Mas a senhora não vai encontrar essa ficha.
- Não vou encontrar essa ficha? - ecoara Sofia, intrigada e, após um momento de silêncio,
perguntou: - Pode me dizer por quê?
- Charles Dickens é um escritor inglês. Não há nenhum poeta americano com o sobrenome
Dickens.
A voz era tão cortante e hostil quanto uma incisão.
Acometida de uma súbita náusea, com a cabeça zonza e uma sensação de estar sendo
espetada nas pernas por uma porção de agulhas, Sofia ficou olhando, com curiosidade, para a cara de
Sholom Weiss, desagradável e inflexível, parecendo flutuar para fora do pescoço e do confinante
colarinho. Sinto-me tão doente, disse para si mesma, como se estivesse falando com um médico
invisível e solícito. Mas conseguiu insistir com o bibliotecário:
- Tenho certeza de que há um poeta americano chamado Dickens!
Partindo do princípio de que aqueles versos, com sua reverberação, com sua penetrante
música sobre a mortalidade e o tempo, seriam tão familiares a um bibliotecário americano quanto os
objetos de uma casa, um hino patriótico ou a sua própria pele, Sofia sentiu seus lábios murmurarem
Porque eu não pude parar para a Morte... Estava horrivelmente enjoada e não percebeu que na mente
mesquinha de Sholom Weiss acabava de se registrar a frase com que ela o contradissera e a sua
insolência. Antes que pudesse recitar mais, ouviu a voz dele elevar-se, em desobediência, a todos os
pedidos de silêncio da biblioteca, provocando um distante, vago levantar de cabeças. Num murmúrio
rouco e rascante - cheio de veneno e má-vontade - respondeu, com toda a desprezível indignação
do pobre-diabo investido de algum poder:
- Escute, eu já lhe disse que não existe poeta com esse nome! Será preciso eu lhe fazer um
desenho?
Sholom Weiss podia se vangloriar de a ter aniquilado com a língua. Porque, quando Sofia
acordou, momentos mais tarde, do desmaio que a fizera cair ao chão, as palavras dele ainda
ricocheteavam loucamente na sua memória e ela apercebeu-se vagamente de que tinha desmaiado tão
logo ele acabara de gritar com ela. Mas tudo estava turvo e Sofia não saberia dizer onde se encontrava.
Na biblioteca, claro, era lá que ela estava, mas parecia estar reclinada numa espécie de sofá ou num
banco junto da janela, não longe do balcão diante do qual tinha caído, e sentia-se tão fraca, e um
cheiro horrível enchia o ar à sua volta, um cheiro azedo, que ela não conseguia identificar, até que
lentamente, sentindo a blusa molhada, percebeu que vomitara o que comera antes de sair de casa. Uma
úmida camada de vômito cobria-lhe o peito, qual lama fétida.
Mas algo mais a levou a virar a cabeça, uma voz, uma voz de homem, contundente, potente,
erguendo-se contra a figura suarenta e encolhida, cujas costas estavam voltadas para Sofia, mas que
ela reconheceu, pela viseira verde, entortada sobre a testa, como sendo Sholom Weiss. E o tom severo,
indignado e de comando do homem, que ela mal podia ver, fez com que um estranho e agradável
arrepio lhe perpassasse a espinha, apesar de estar ali, prostrada e tonta.
- Nunca o vi mais gordo, Weiss, mas você é um bocado mal-educado. Ouvi tudo o que
disse para a moça. Eu estava bem aqui! - rugiu. - Ouvi todas as grosserias que disse para ela. Será
que você não percebeu que ela era estrangeira, seu maldito momzer, seu schmuck!
Uma pequena multidão se juntara e Sofia viu o bibliotecário estremecer como se estivesse
sendo sacudido por ventos selvagens.
- Você é um palhaço, Weiss, um palhaço, do tipo que faz com que os judeus tenham má
reputação.
Essa jovem, essa linda jovem, que ainda não entende bem nossa língua, lhe faz uma pergunta
perfeitamente viável e você resolve tratá-la como se ela fosse um lixo. Sinto vontade de lhe quebrar a
cara! Você não devia estar mexendo com livros e sim com esgotos!
De repente, para seu espanto, Sofia viu o homem puxar a viseira de Weiss para baixo, até
ficar pendurada do gasganete, como se fosse um inútil apêndice de celuloide.
- Seu imbecil, seu putz - disse a voz, cheia de desprezo e nojo. - Você é capaz de fazer
qualquer um vomitar!
Sofia devia ter perdido de novo o conhecimento, porque, quando voltou a abrir os olhos, viu
os dedos fortes, suaves e expressivos de Nathan, sujos, para seu constrangimento, de vômito, mas
incrivelmente confortadores, aplicando-lhe algo fresco e úmido na testa.
- Você já vai se sentir bem - murmurou. - Vai se sentir muito bem. Não se preocupe.
Puxa, você é tão bonita, como é que você consegue ser tão bonita? Não se mexa, você está bem, só
teve uma tonteirazinha. Fique quietinha, deixe o doutor aqui cuidar de tudo. Pronto, como é que você
se sente?
Quer um golinho de água? Não, não, não diga nada, fique calminha, num minuto você vai se
sentir ok.
E a voz continuou, num brando monólogo, tranquilizando-a, ninando-a, infundindo-lhe uma
sensação de repouso, assim como um murmurado refrão, tão sedativo que ela nem mais sentiu
vergonha de ver as mãos daquele desconhecido sujas do seu próprio vômito e lamentou que o único
pensamento que lhe expressara, quando abrira os olhos pela primeira vez, tivesse sido um idiota Oh,
acho que vou morrer.
- Não, você não vai morrer - repetiu ele de novo, numa voz cheia de força e paciência, ao
mesmo tempo que os seus dedos lhe davam uma agradável sensação de frescura. - Você não vai
morrer, vai viver até os cem anos. Como é que você se chama, meu bem? Não, não me diga, fique
quietinha e linda.
Seu pulso está ótimo, normal. Beba só um golinho de água...
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A Escolha De Sofia
RomanceUma história comovente e aterrorizante história da polonesa Sofia zawistowka, sobrevivente do Campo de concentração de Auschwitz, que é também a história de um dos mais bárbaros crimes de todos os tempos: o holocausto promovido pelos nazistas. Por t...