Prólogo

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O barulho das corujas estava intenso na noite passada. Com sorte, se alguma se descuidasse, podia apanhá-la e saciar a minha fome selvagem.

Acordei com a minha mãe a gritar, dizendo que ia chegar atrasada à escola. "Já passou a Lua Cheia...", pensei. Há imenso tempo que não acordava na forma humana. Abri levemente os olhos e tentei adaptar-me à escuridão em que o meu quarto estava envolvido. A única luz que começava a entrar era a do corredor principal.
-Johanna, acorda!
Suspirei como forma de protesto e empurrei os cobertores e o edredão para a minha frente com os pés. Pus-me de lado na beira da cama e tentei encontrar as minhas pantufas. "Porcaria, odeio perder a visão noturna..." Havia certas coisas às quais eu nunca me habituava, como perder a visão noturna depois da Lua Cheia. Os meus pés descalços tocaram o soalho frio e recuei para a cama.
-Anda, filha, não tenho o dia todo... É o teu primeiro dia na escola nova.
Pus-me no chão e lá encontrei as pantufas. A minha mãe já reclamava, dizendo que ia adoecer por estar descalça no chão. Voltei a suspirar e passei por ela sem a cumprimentar e lhe desejar os bons-dias. Dirigi-me à casa de banho, ouvindo ainda os protestos da minha mãe. Normalmente, a culpa era sempre do meu irmão Jackson, que adorava dormir após uma boa noite de caça, mesmo sabendo que tem aulas para frequentar. Ao encaminhar-me para a casa de banho, passei pela cozinha e vi o meu irmão e o meu pai sentados à mesa, tomando o pequeno almoço. Murmurei um "Bom dia" quase inaudível. Ao notar a minha presença, Jackson começou a barafustar:
-Vê se te despachas, molengona.
Ignorando-o, entrei na casa de banho. Tomei um duche rápido, arranjei-me e fitei-me durante uns momentos ao espelho. Thomas, um amigo, dizia que eu tinha uma beleza completamente extraordinária. O que veria ele em mim?Tinha uns olhos grandes de um azul pálido, uma pele impecavelmente branca, com algumas sardas aqui e acolá e cabelos loiros igualmente pálidos, completamente lisos. Sou uma rapariga de estatura média, magra e elegante, com um corpo que inveja qualquer rapariga ou mulher. Parecia uma albina de tão branca que era. O que Thomas mais admirava em mim era a minha forma de lobo. Ah, pois é, esqueci-me de vos mencionar um ponto importante: sou um lobisomem. Muitos de vocês pensam que devia dizer lobimulher, certo? No entanto, dou-vos esta notícia: lobisomem só tem um género, que se aplica aos dois sexos. Estava eu a dizer... Ah, sim, já sei. Quando estou na forma de lobo, os meus olhos continuam iguais. O meu pelo é branco como a neve que me rodeia no inverno, com algumas zonas de um cinzento quase impercetível. Sou uma loba grande e feroz, mas não muito forte. Acabo por depender da minha alcateia para me defender das outras. Dentro da nossa floresta, a famosa Floresta Grey, por incrível que pareça, somos bastantes lobos e cada lobo pertence a uma alcateia desde o seu nascimento. Sem uma alcateia, é impossível sobreviver.
-Johanna, despacha-te! Céus!
Os gritos da minha mãe despertaram-me dos meus pensamentos. Às vezes ela conseguia ser tão irritante... Pus um pouco do perfume em várias zonas do pescoço e fui tomar o pequeno almoço. A cozinha estava com luz a mais para o meu gosto. Eram luzes amarelas tão fortes que me faziam doer os olhos. Olhei para a minha família à mesa, onde estavam os meus pais sentados, Jackson e os meus outros irmãos, que também já tinham acordado. Aquela parte da casa era sempre uma confusão. A louça estava sempre por lavar ou por colocar dentro da máquina, havia comida no chão ou até mesmo a voar. O meu pai lia um livro enquanto tomava o seu café da manhã e eu comia bacon frito com ovos. Não sei como consigo manter a boa forma, pois estou sempre a comer carne ou peixe, o que é mais raro. Peguei na frigideira e comecei a cozinhar o meu próprio pequeno almoço.
-Alguém quer?
-Sim, mana! Eu quero, eu quero!- Richard acordava cheio de energia e não parava de comer.
Virei-me para trás, enquanto lançava um ovo ao ar e sorri.
-Tu não, Richard, ou então vais ser um lobo gordo!- mandei-lhe uma piadinha.
Logo de imediato, Richard baixou os braços que tinha levantado para se fazer notar e amuou. Quando acabei de cozinhar, passei os ovos e o bacon para um prato. Peguei num garfo e pousei-o no meu lugar: ao lado direito do meu pai, que fica na cabeceira da mesa. Estiquei o braço para tocar na mãozinha de Richard e disse:
-Não te preocupes, quando cresceres vais poder comer o que quiseres.
A vida dos meus irmãos mais novos era muito mais fácil. Por norma, as crianças das alcateias mantinham-se humanas até aos doze anos, o que lhes permitia ter uma vida quase normal. Eu mesma não desfrutei dessa sorte... Passei a ser lobisomem pela primeira vez quando tinha apenas seis anos, uma coisa que já não acontecia na nossa alcateia há mais de um século. Na altura, não se falou de outra coisa na Alcateia Arvoredos - a alcateia a que pertenço - e passei a ser bastante conhecida e admirada entre toda a gente, pois tive que me desenrascar sozinha. Por um lado, acho que isso me tirou um pouco da minha vida. Passei a caçar com os outros lobos e tive que aprender a lutar e a defender-me. A parte da Transformação era a pior. Tinha dores horríveis quando a Lua passava do Quarto Crescente para a Lua Cheia. A Transformação sempre foi usada como uma história assustadora para as criancinhas mais pequenas.
Enquanto estava absorta nos meus pensamentos, Jackson começou a falar da escola:
-É o nosso primeiro dia e vou chegar atrasado...
-Poupa-me, Jackson. Ambos sabemos que não te faz diferença ficares em casa ou ires para a escola, acabas sempre por não fazer nada e arranjar problemas...- disse-lhe.
Já devia ter percorrido todas as escolas daquela cidade. O meu irmão, quando não se continha, abusava da sua força excessiva e atacava quem o contrariava. Por culpa dele, cada ano frequentei uma nova escola. "Não podemos ter-vos aos dois em escolas diferentes, é insuportável!", dizia a minha mãe. Comi o último pedaço de bacon, lambi as pontas dos dedos e levantei-me.
-Estás pronto?
Jackson acenou afirmativamente com a cabeça e levantou-se também. Peguei na minha carteira e saímos da nossa pequena barraca, que funcionava como casa, e atravessámos a longa Floresta Grey em direção à escola.

Out of the WoodsOnde histórias criam vida. Descubra agora