Talvez seja tarde

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Deitada na cama de Liz, fico a pensar nas palavras do meu irmão. Ele ficou com uma marca do passado. E se eu fiquei também com uma? A marca do meu irmão era Liz, a sua filha. E a minha? "O amor que ainda sentes por Peter", respondeu a minha vozinha interior, sempre muito conveniente. Porquê? Por que razão, passado tanto tempo, é que Peter ainda dava voltas à minha cabeça e ao meu estômago?! Possivelmente ele devia odiar-me, ou então já me tinha esquecido e voltado para os braços de Chloe, que parecia mais uma boneca de porcelana do que humana. O meu coração começou a bater só ao pensar nele... Deve ser irritante para o meu cérebro comandar o funcionamento do coração, porque sem este pequeno músculo não muito maior que o meu punho fechado, ele não teria energia para comandar os movimentos do coração, que lhe envia sangue. Deve ser horrível depender de uma pessoa e essa pessoa depender de mim. É como uma colaboração mútua. E se um dia o meu cérebro se fartasse do meu coração, que anda sempre indeciso? É um verdadeiro dilema... Imaginem a chatisse que seria para mim, que ia acabar morta por minha culpa, por ser uma pessoa quase bipolar!
Bem, deixando a medicina de lado... Decidi levantar-me e investigar o que Carrie estaria a cozinhar para o jantar. Se calhar já estava a preparar veneno em pó para colocar na minha bebida e poder ficar com Jeremy só para ela. Era uma cabra (Perceberam? Não é cabra, mas é lobo. OK, eu não tenho muita piada para uma adolescente de dezassete anos. Desculpem lá, OK?!) com duas patas que andava por aí a espalhar ódio pela casa. Essa ideia divertia-me: imaginem lá uma cabra com pêlo da cor do cobre, mas um pouco mais avermelhado, com quatro patas rechonchudas e uns dentes mais duros que os dos cavalos. Ah, e não se esqueçam dos olhos verdes pestanudos. Era uma verdadeira cabra diabólica, com pêlo da côr do Inferno.
-Jeremy?- chamei, no meio do corredor sombrio daquela casa.
Ninguém respondeu. Quase que podia jurar que ouvia o silêncio. Eu sei, eu sei, o silêncio é a ausência de som. Mas não têm a sensação de que quando estão sozinhos, não ouvem um zumbido junto aos ouvidos como se fosse um mosquito que não se afasta? Eu penso que esse é o som do silêncio.
Enquanto me arrastava pelo corredor com as minhas muletas que escorregavam no soalho de madeira, senti umas mãos sapudas a pousarem nos meus ombros, sobressaltando-me. "OK, Jo, vais morrer agora. Agradece ao mundo por te ter dado a oportunidade de te reencontrares com o teu irmão e de teres conhecido a mulher maléfica que te vai matar neste momento", pensei para comigo.
-Então, Jo?- disse ela, com a sua vozinha aguda.
Deixei que a minha tensão se perdesse naquele corredor húmido e sombrio e relaxei.
-Queria saber o que há para jantar.
-Oh, querida, está quase pronto.
Quem a ouvisse falar até diria que ela era simpática e uma mulher prestável, mas aquele brilho maléfico nos olhos tirava-lhe qualquer credibilidade.
-Não te importas de me conduzir até à sala ou a algum sítio onde me possa sentar? Não consigo estar muito tempo de pé.
Com uma mão apoiada nas minhas costas, Carrie guiou-me até à cozinha, que também estava impecavelmente arrumada e limpa, ao contrário de quase toda a casa. A mulher do meu irmão puxou uma cadeira, instalou-me e puxou outra cadeira para eu apoiar a perna. Sorri-lhe agradecida e fiquei a observá-la a cozinhar, talvez no seu sítio preferido da casa.
Mais tarde, quando o silêncio já era insuportável, Jeremy apareceu e sorriu-me.
-Preciso de voltar para casa.
A verdade é que já tinha pensado naquilo. Carrie incomodava-me, ela era sinistra. Eu precisava do meu espaço e de estar rodeada por gente que gostasse de mim, como Autumn. Tinha a certeza que ela ia apreciar a minha companhia.
-Porquê, Jo?- Carrie perguntou, com a sua típica voz aguda.
-Sinto que não pertenço aqui, desculpem. Estou aqui a mais e só irei dar trabalho. Além disso, o Jeremy também está fragilizado e não será fácil teres dois doentes para tratar. Eu fico bem, prometo.
Jeremy pareceu desiludido. Quase que podia jurar que não lhe agradava a ideia de ficar sozinho com a mulher.
-Então fica só esta noite, pelo menos.
Tive que concordar. Já era tarde e Autumn não estaria à minha espera.

Carrie serviu empadão de carne. Custa-me admiti-lo, mas nunca conheci alguém que cozinhasse tão bem. Talvez fosse a carne que era boa, talvez me tivesse habituado à horrível comida de hospital, ou talvez Carrie fosse mesmo uma mestre da culinária. Enquanto comia, Carrie ficou a fitar-me com os grandes olhos verdes. Fiz-lhe um sorriso amarelo, já que me incomodava que me observassem.
-Quem terá sido a rapariga que se apaixonou por um humano?- perguntou Carrie, com veneno na voz.
Jeremy olhou imediatamente para mim. Pelos vistos também tinham estado a ver televisão. Jeremy engasgou-se e começou a tossir. Dei-lhe umas palmadinhas nas costas e ele acalmou-se com um copo de água que a mulher lhe estendeu. -Não sei, mas todos nós sabemos como é difícil resistir ao amor.- Jeremy olhou para mim com os olhos cheios de preocupação.
Quando acabei de comer o maravilhoso empadão, pedi licença e decidi voltar para o quarto da pequena Liz. Eatava cansada e no dia seguinte queria ter toda a energia possível para falar com Autumn, que já devia ter recebido o bilhete que tinha mandado pelos Bilheteiros. Os Bilheteiros são como os carteiros dos humanos, com a pequena diferença de que os Bilheteiros podem ser qualquer pessoa, até mesmo eu, e os bilhetes eram entregues em menos de duas horas.
Sentei-me no sofá e liguei a televisão num canal de lobisomens da Unus, mesmo com algum receio de saber mais notícias.
- Temos novidades. Agora a nossa civilização é constituída apenas por duas grandes alcateias. A guerra não está fácil, já um terço dos nossos guerreiros morreu ao lutar. Os da outra alcateia dizem que param com tudo se lhes entregarmos a jovem apaixonada que dizem ter posto a nossa civilização em perigo. Por isso, encontrem-na e os vossos familiares e amigos ficarão a salvo.
Era uma caça ao tesouro, e eu era o tesouro. O que me fariam se me apanhassem? Seria entregue aos outros, talvez me torturassem ou matassem. Mas de que ia adiantar? Peter é que podia ter informações, não eu. E nunca percebi por que razão é que os humanos não podiam saber da nossa existência. Talvez fosse bom para nós podermos usufruir de todas as coisas do Exterior.
Alguém bateu à porta, arrancando-me dos meus pensamentos.
-Jeremy?
-Posso?- Jeremy pôs a cabeça dentro do quarto
Peguei no comando da televisão e desliguei-a. Sorri ao meu irmão e ele entrou, sentando-se de seguida ao meu lado no sofá.
-És poderosa, Jo.
Ainda não tinha reparado que estava a chorar. As lágrimas escorriam-me pelo queixo e caíam no sofá. Jeremy estendeu o braço e limpou-me as lágrimas com o polegar.
-E se o Sebastian me entrega? Ele sabe quem sou. Basta juntar dois mais dois...
-Ele sabe que és tu, mas achas que um líder prefere mostrar-se fraco e entregar-te, desistindo de uma guerra que já começou? Quem lhe garante que eles param com tudo? Tu és preciosa, e o Sebastian tem consciência disso. Ele é muito inteligente, Jo. Garanto-te que ele não te vai entregar.
-E o resto das pessoas?
Brian. Só ele e o meu irmão sabiam de Peter. E se Brian me entregasse? Seria ele capaz de o fazer para salvar a própria pele? Comecei a chorar ainda mais ao pensar nisso.
-Só estarás a salvo se ninguém souber da tua situação.
-Já é tarde...
Limpei as lágrimas. Sempre odiei parecer fraca. Sempre fui aquela rapariga invejada por outras, aquela que passava pelos corredores e deixava todos os rapazes babados a olhar, enquanto as respetivas namoradas amuavam.
-Tudo isto foi uma enorme reviravolta para mim. Passei de durona para uma mosca morta.
Jeremy inclinou a cabeça para o lado, os olhos cheios de ternura.
-Não és uma mosca morta! Ja provaste que és uma verdadeira lobisomem.
A verdade é que nem sabia se era digna de o ser. Encostei a cabeça no braço do sofá e fechei os olhos.

Acordei sentindo-me inexplicavelmente feliz. Era um dia sombrio. Podia ouvir a chuva a cair lá fora, num sitio que me parecia estar a milhares de quilómetros de distância. A cama estava quente, talvez por estar envolvida por vários cobertores e um edredão. Viver naquela zona do país era o mesmo que viver numa ditadura, o Inverno era bastante rigoroso. Girei na cama, porque já me doíam os músculos de ter passado tanto tempo na mesma posição. Então, parei. Estava deitada com um homem na minha cama, um homem que me transmitia calor e segurança. O homem girou e sorriu-me. Tinha olhos escuros e cabelo castanho.
-Bom dia!- disse eu, beijando-o.
-Bom dia, amor.- Brian passou os dedos pelo meu cabelo loiro.
Não sabia como tudo tinha acontecido, mas sim, eu estava deirada na mesma cama que ele e a atração entre nós era inegável. Virei-me de barriga para cima e suspirei. Brian arrastou-se para mais perto de mim, apoiou-se nos cotovelos e aproximou o rosto do meu. Beijou-me, fazendo com que um fogo acendesse dentro de mim. Não sei quanto tempo estivemos assim, o corpo dele em cima do meu, os nossos lábios juntos, complementando-se, formando um só. Podia ficar assim para sempre.

Duas mãos fortes agarravam-me em cada braço. Acordei num quarto estranho com o coração aos saltos. Tinha sido tudo um sonho... Brian estava na guerra e eu e ele não estávamos juntos. Foi como se tivesse engolido uma pedra. Afundei-me na cama sem sequer olhar para quem me agarrava.
-Jo, acorda!
-Que foi?- resmunguei debaixo dos cobertores.
Preferia ficar escondida até Brian voltar e resgatar-me.
-Sou eu, Jo!- era uma voz feminina, mas não era a vozinha irritante de Carrie.
Atirei os cobertores para a frente e vi uma pessoa que me espantou: Autumn. Todo aquele peso que tinha sentido desapareceu num segundo. Sentei-me e agarrei a minha amiga.
-Não acredito que estás aqui!
-Onde mais poderia estar?
-Em tua casa?
-Não conseguia estar sozinha sem o Gab...- confessou, referindo-se ao namorado, Gabriel.
Atirei o meu cabelo despenteado para trás dos ombros.
-Vim buscar-te. Estive na casa dos meus pais até receber o teu bilhete.
Sorri-lhe, sem vontade alguma de falar.
-Podíamos ficar em minha casa.- sugeri.
Ela sorriu, radiante. Os olhos dourados dela ainda ganharam mais brilho.
-Sim, até um dos nossos rapazes regressar.
Nossos. Brian não era meu, e eu não era dele. Mas a minha vontade era de tê-lo só para mim, de nunca mais o deixar partir.
-Ajudas-me a vestir-me? Tenho uma perna engessada e ainda vou estar longos meses fragilizada...
Ela olhou-me com malícia e disse:
-Tens que esperar pelo teu fisioterapeuta Brian para te fazer um milagre...
Atirei-lhe com a almofada, o que a calou por alguns momentos.

Entrei dentro de casa e várias lágrimas ameaçaram rolar pelo meu rosto. O cheiro de Brian invadiu-me. Sentia algo dentro de mim que ameaçava rebentar a qualquer momento. Como estaria ele?
-Há alguma hipótese de sabermos que saiu da guerra por invalidez?- perguntei.
Autumn era uma rapariga mais informada que eu, ela pertencia àquela alcateia desde sempre. Ela respondeu-me que bastava irmos ao hospital perguntar por quem nos interessava e que se não dessem registo, era porque ainda estava em guerra. "Ou morto...", pensei, mas afastei logo de seguida esse pensamento.
-Autumn, eu preciso de saber se o Brian está vivo. Nunca me vou perdoar se lhe acontecer alguma coisa e não ter aproveitado tudo com ele.

Out of the WoodsOnde histórias criam vida. Descubra agora