A rapariga das visões

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Na mesma semana em que Jo conheceu o irmão, Peter estava pronto para atacar os lobos. Estava tudo a postos, apesar de não deixarem que ele atirasse contra os animais felpudos. Sentiu alguma raiva quando lho disseram, mas decidiu dar-se por contente por o deixarem estar num dos carros dos atiradores.
Peter estava na cama do hotel enquanto ouvia os gritos de frustração da mãe no quarto dela. Estava constantemente a repetir que não tinha dinheiro para pagar a estadia no hotel e a renda da casa. Mas o filho limitava-se a encolher os ombros. Preferia a miséria ao invés de viver em frente a um lugar onde imensos animais perigosos viviam.
O texto publicado por Alexa tinha gerado imensa polémica. Grande parte da população recusava-se a manter os lobos vivos, enquanto que as associações protetoras dos animais faziam diversas manifestações por condenarem o abate dos animais. De nada lhes adiantava, a decisão fora tomada.
Estavam a bater à porta. Peter ergueu-se da cama e abriu ligeiramente a porta, o suficiente para ver o rosto exótico de Alexa.
-Peter, querido!– abraçou-o quando lhe abriu a porta.
O adolescente inspirou, absorvendo o cheiro dela.
-Tenho novidades excitantes.
Peter sentou-se de novo na cama, enquanto esperava que a jornalista começasse a falar. Naquele dia vestia uma saia justa de cintura subida, de um vermelho berrante e um top branco que batia pela zona do umbigo. Tanto o branco como o vermelho lhe favoreciam o brilho da pele escura.
-É melhor despachar-se, tenho coisas para fazer.
Ela sorriu, fazendo com que as maçãs de adão subissem, quase ocultando os olhos castanhos da cor do chocolate negro.
Alexa sentou-se na borda da cama com bastante cuidado. Cruzou uma perna por cima da outra, pousou as mãos no colo e anunciou que queriam uma entrevista com eles os dois na televisão, passada em todos os cantos do país. Não ia haver ninguém que não a visse.
-Qual é o canal?
-BestProductions.
Peter sabia o que aquilo significava: ia ter que viajar para a Capital, podia fugir dali.
-Quando é que querem gravar?
Alexa despejou toneladas de informações às quais não prestou nenhuma atenção. Não prestou atenção até perceber que iam enviar pessoas para gravarem a entrevista. Bem podia dizer adeus a uma fuga.
-Quando é que vai ser o abate?– perguntou Alexa, mais por cortesia do que por verdadeiro interesse.
-Ainda nesta semana.
Ela sorriu e levantou-se. Fez um sorriso e saiu do quarto, as ancas a balançarem de um lado para o outro.
Peter ergueu o olhar para a janela. Lá fora, as árvores arreganhavam os dedos ossudos para o céu branco, algo difícil de alcançar para apenas umas árvores presas a um pequeno quadrado de terra, um canteiro. Era assim que Peter se sentia: uma planta incapaz de se mover, de alcançar o que lhe parecia inalcançável.
Tomou uma decisão: ia enfrentar o novo medo e o passado.

Nessa tarde, Peter estava em frente à floresta. Inspirou e expirou, inspirou e voltou a expirar. Era obrigação dele tentar perceber de onde vinha aquele ódio e de onde tinha vindo aquele amor e fascínio transmitido pelos seus cadernos.
Um arrepio percorreu-lhe a coluna vertebral. De repente, um flash de memória passou-lhe pela cabeça.

"Peter?", uma voz de mulher chamava-o.
Ele estava num lugar escuro, mas confortável e quente. Queria e não queria sair dali. De repente, um clarão de luz fê-lo levar as mãos aos olhos. Algo o divertiu, algo como um pensamento de ser como um vampiro.
"Aqui estás tu!", exclamou a mulher que o chamava.
Viu-se frente a frente com uma mulher jovem, um rosto feliz que escondia uma tristeza profunda.
Ele saiu do roupeiro com a ajuda dos braços da mulher. Sentiu o frio da casa onde estava invadir-lhe cada célula do corpo. Um arrepio. A mulher riu-se e disse, com o indicador espetado no ar:
"Sabes, Peter? Dizem que os arrepios são o resultado de almas que andam por aí a passear e entram no corpo das pessoas. Se calhar, tens uma alma dentro de ti."
Só então percebeu que a mulher era a mãe, só que muito mais jovem, os cabelos com cor e os olhos com algum brilho. Naquela época, a senhora ainda tentava dissimular a tristeza que sentia pela falta do pai do seu filho.

Peter regressou à realidade. Abanou a cabeça numa tentativa desesperada de tirar a imagem da mãe da cabeça. O importante era focar-se na tarefa que tinha pela frente.
Um pé de cada vez. Era só mexer um pé de cada vez. Passo a passo, respirando calmamente, ele ia conseguir entrar na floresta.
Já não havia muita neve. Estava na primavera, mas até mesmo o verão era um pouco fresco naquela zona do país.
Avançou devagar, a neve derretida a ensopar-lhe os pés. Quando já não aguentava caminhar devagar, começou a correr. Era agradável sentir o ar frio a passar por ele enquanto corria. Sentiu-se imparável enquanto corria a uma velocidade impressionante para um humano. Parou ao ouvir o arrulhar de um pássaro. Com a respiração ofegante, pousou as mãos nos joelhos e tentou acalmar-se. Tinha avançado imenso para o interior da floresta, mais do que alguma vez chegara.
Retomou a caminhada ao ouvir diversas vozes e ao ver mais luz. Quando chegou ao lugar que pretendia, o que viu deixou-o sem reação.
Casas baixas mais parecidas com cabanas, pessoas a andarem de um lado para o outro demasiado ocupadas com as suas próprias vidinhas para repararem na presença dele.
Viu duas pessoas a correrem. Não conseguia vê-los bem. Uma das pessoas era alta, um rapaz, sem dúvida alguma, com músculos salientes. Ao lado dele estava uma rapariga de cabelo loiro apanhado num rabo de cavalo irrepreensivelmente direito que dizia qualquer coisa engraçada ao parceiro de corrida, porque ele se riu. Não era baixa, mas também não era muito alta. Tinha curvas e movia-se com uma ligeireza hipnotizante.
O rapaz parou e parecia olhar diretamente para ele. A rapariga também parou, virou-se e olhou para Peter. Os olhos dela mostraram tantas emoções diferentes no mesmo momento que ele não sabia o que pensar. O coração dele gelou ao saber que era ela, a rapariga das visões que tinha visto.
O rapaz agarrou a mão dela, os dedos deles entrelaçados. Ele avançou com passos firmes, ela nem tanto.
À medida que se aproximavam, Peter percebeu que ela estava a chorar.
-Peter...– sussurrou, um murmúrio quase imperceptível.
-Johanna.– não precisou de pensar duas vezes, ele sabia que era esse o nome dela.
Começou a chorar cada vez mais. O rapaz que estava ao lado não pareceu achar muita piada. À medida que ela balbuciava palavras sem sentido parecia que ele inchava, ficava com o dorso arqueado e tentava afastá-la de Peter. Ela pousou uma mão no braço dele e deu por si a desejar sentir aquele toque. Ela conseguiu libertar-se e começou a correr em direção a ele.
Peter estendeu os braços para a envolver. Quando ela chegou, sentiu as mãos frias dela a percorrem-lhe as costas enquanto o puxava de encontro a ela.
-Não devias ter voltado.– disse ela, quando se afastaram.
-Havia uma coisa que precisava de fazer.
Peter não sabia o que se passava na cabeça dele, só percebeu que a memória lhe perfurou o cérebro como uma bala. A médica tinha avisado que podia aparecer de repente ou aos poucos. Mas foi de repente, como um tiro certeiro. Recordou-se dela, das discussões com ela, do lobo onde tinha visto os olhos dela, de ter descoberto os lobisomens na noite em que fora atacado mas que não chegara a apontar nada.
Ele lembrou-se, e isso foi suficiente para a agarrar pelo pescoço com um pouco de demasiada força e encostar os lábios aos dela. Ela não se afastou, muito pelo contrário.
-Jo...– uma voz interrompeu-os.
Johanna afastou-se, limpou as lágrimas que ainda restavam e olhou aterrorizada para o rapaz que se recordava de se tratar de Brian.
-Isto é incrível... Há semanas que eu quero que ela me beije assim, mas tu chegas aqui e ela nem hesita.
Ele não parecia zangado, apenas triste.
Então, Peter lembrou-se de que estava numa grande alhada. Naquele momento, todo o ódio que pensou sentir pareceu-lhe patético. Ainda lhe custava a perceber como era possível que num segundo uma pessoa não soubesse o seu passado e no segundo seguinte tivesse uma vida, memórias. O fascínio pelos lobos ultrapassava qualquer ódio que ele pensava ter sentido. A culpa não tinha sido deles. Era noite de Lua Cheia e as alcateias estavam num confronto violento. Peter tinha sido irracional e teimoso ao ter decidido que queria observá-los.
-Tens que sair daqui.– Johanna olhou-o com súplica, aqueles olhos azuis tão claros raiados de sangue.
-Porquê? Eu quero ficar aqui.
-Não me perguntes outra vez. É demasiado perigoso estares aqui. Vai.
Abraçou-o uma última vez, as lágrimas a ameaçarem romper dos olhos a qualquer instante.
-Não te esqueças de mim.

Out of the WoodsOnde histórias criam vida. Descubra agora