O diabo em pessoa

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A guerra continuava imparável. Jeremy e eu já não aguentávamos com a espera de alguma novidade. Mas naquela manhã, Kelly apareceu completamente desorientada, a deslocar-se de um lado para o outro sem dar atenção aos doentes com quem eu e Jeremy partilhávamos o quarto no recobro.
-Kelly? - chamei.
Ela aproximou-se e sentou-se ao meu lado, de frente para o meu irmão.
-É oficial, agora somos uma só alcateia.
Como já estava melhor, sem a ligadura no braço, tentei aproximar-me do meu irmão e abracei-o com muita força. Ele também estava feliz.
-Tive que ausentar-me para ouvir o comunicado deles.- não consegui perceber se ela estava feliz ou não com a decisão.
-E qual é o nosso novo nome?- perguntou o meu irmão, com alguma curiosidade.
-Unus, de união e de sermos apenas um.
Unus... Agora era uma Unus, tal como o meu irmão, Brian, Autumn e Kelly.
-Kelly, de que alcateia era?
-Fortia... Mas nunca me identifiquei com ela. Não sou forte, não sei lutar e só sei cuidar daqueles que são como eu: frágeis e indefesos.
Olhei para Jeremy. Ele odiava pessoas que se vitimizavam. Ele era o chefe do exército, ele valorizava a força.
-Tenho que ir trabalhar.- levantou-se e ficou a trocar pensos a outros doentes.

Dois dias depois, Jeremy e eu tivemos alta. A guerra continuava e eu tinha que encontrar um refúgio. O meu irmão garantiu-me que a casa dele ficava longe da zona de batalha. Ele disse-me que a mulher não se ia importar com a minha presença, por isso concordei. Nada era melhor que recuperar o tempo perdido com o meu irmão mais velho.
Enquanto nos levavam à casa do meu irmão na ambulância, fiquei a pensar em como estariam os meus amigos. Autumn devia estar segura, certamente, mas muito assustada, apesar da sua personalidade vincada. Como estaria Brian? Só de pensar nele senti um aperto enorme no meu coração. Só esperava que ele estivesse vivo e bem. Ele era uma das pessoas mais importantes que tinha e tornámo-nos inseparáveis. Thomas... Bem, o meu estômago começou às voltas quando pensei nele, o meu antigo melhor amigo. Certamente que também estaria bem; por alguma razão o tinham transferido para a alcateia mais poderosa de sempre, a Alcateia Maior.
-Johanna?
Olhei para ele após ter interrompido os meus pensamentos. Odiava que ele me chamasse pelo meu verdadeiro nome. Por isso pedi-lhe para me chamar apenas Jo, como já todos faziam.
-O que se passa? Pareces triste.
A verdade é que estava mesmo triste; essencialmente, estava preocupada. Só o simples pensamento de poder perder Brian destruía-me por dentro.
-Achas que é normal que me importe tanto com um amigo?
Jeremy percebeu, porque fez um grande sorriso que revelou os seus dentes brancos e alinhados.
-Amigo?- desafiou.
Olhei para o lado, para a pequena janela da ambulância. A neve estava quase toda a derreter. Estávamos muito perto do limite da floresta, talvez para evitar a guerra que se tinha instalado no núcleo.
-Já não percebo nada...- admiti.
-Existe mais alguém que estraga o que sentes, não é verdade?
Peter. O nome dele ecoava por todo o lado dentro de mim, sentia-o no sangue que pulsava nas minhas orelhas, fazendo-as ficarem quentes e vermelhas. Tapei-as com o cabelo loiro num gesto que poderia parecer natural. Há imenso tempo que não via Peter, e o melhor era se o esquecesse; era o melhor para todas as pessoas de quem gostava, especialmente Brian, que não merecia uma pessoa como eu que fosse tão indecisa. Mas Brian era... Não tinha palavras para descrever o que sentia por ele. Ele era o meu porto seguro, a minha casa, a pessoa com quem me imaginava passar o resto da minha vida... E era um ótimo amigo, que me fazia rir a toda a hora. Onde estaria ele?
-Terra chama Jo!- chamou-me o meu irmão. Percebi que fiquei absorta nos meus pensamentos.
-Ele chama-se Peter, mas eu já devia ter-me esquecido dele. E depois há o meu melhor amigo, Brian, que me deixa cada vez mais confusa.
Ele riu-se como se o assunto tivesse imensa piada. Eu divido o mundo em dois, dependendo de cada categoria. No mundo há dois tipos de pessoas: as que se riem por algo que tem mesmo piada ou aquelas que se riem por gozo. O meu irmão encontrava-se na segunda categoria.
Fiquei calada até à ambulância parar em frente a uma cabana grande, de um andar, com um grande jardim coberto com neve a derreter, deixando a vegetação rasteira bastante húmida. Jeremy saiu com a ajuda do condutor. Depois foi a minha vez de descer. Tentei andar com as muletas na neve, mas comecei a escorregar e por pouco que não caía no chão húmido, com a minha perna engessada.
Finalmente chegámos à porta. Jeremy bateu três vezes na porta de madeira que aprecia bastante pesada. Passados alguns segundos, uma mulher jovem apareceu. O meu irmão acenou ao condutor, que voltou para a ambulância e conduziu de regresso ao hospital. Quando voltei a minha atenção para a mulher que nos tinha aberto a porta, deparei-me com ela e Jeremy num beijo longo que me enojou. Comecei a tossir, como que a indicar que parassem. A mulher pareceu nem notar pela minha presença, porque quando eu tossi pareceu assustada.
-Quem és tu?- perguntou.
Devo admitir que o meu irmão teve muito bom gosto. A mulher tinha uns belos longos cabelos ruivos da cor de fogo que caíam em cachos largos e olhava-me de alto a baixo com uns olhos grandes verdes azeitona, com longas pestanas a tornarem-lhe o olhar ainda mais vivo. Era baixinha, mas não era gorda.
-Carrie, esta é a minha irmã, Jo.- sorri para dentro ao constatar que ele não se tinha esquecido do meu novo nome.
A mulher, aparentemente a esposa do meu irmão, continuou a olhar-me de alto a baixo, como se fosse um bicho nojento.
-Irmã? Nunca me falaste de uma irmã!- a vozinha dela era aguda, o que se tornava irritante quando falava demasiado.
Jeremy piscou-me o olho e encolheu os ombros, como se fosse tudo uma brincadeira da mulher.
-Entrem.- convidou, enquanto me olhava com repulsa.
A casa cheirava a mofo, como se tivesse sido abandonada e já não fosse limpa há anos. Espirrei, talvez por causa do pó que me causava alergia.
-Essa tua irmã é um bocado sensível...- Carrie segredou para o meu irmão com a sua voz irritante. Era suposto não ouvir, mas com aquela voz era impossível.
Entrámos numa sala sombria. Tive alguma dificuldade em deslocar-me, porque o chão estava húmido e as muletas tendiam a escorregarem naquele chão de madeira húmido. A sala era muito pobre em termos de mobília: um sofá vermelho com uma grande camada de pó, um cadeirão velho de um verde berrante, uma lareira cujas cinzas tinham ficado por remover, uma estante com livros ligados uns aos outros por teias de aranha e, por fim, algumas molduras com fotografias que não se encontravam no seu melhor estado devido à humidade. O meu irmão não parecia importar-se com a sujidade, porque se sentou no sofá e suspirou, talvez pelo cansaço.
-Não sabes como estava aflita, Jeremy!- ela levou uma mão ao peito num gesto teatral e fingido.
Eu preferi continuar em pé ao invés de sentar-me numa camada de pó. Carrie fez o mesmo. Continuou a falar com o marido, ignorando-me completamente. Ela conseguia ser mesmo hipócrita, porque de vez em quando virava-se para mim com os seus grandes olhos verdes cheios de maldade e dizia, exibindo um grande sorriso bastante falso:
-Ah, querida, já me tinha esquecido de ti!
Jeremy começou a falar da guerra, assuntos que não me interessavam, e relatou a maneira de como nos reencontrámos. Carrie juntava as duas mãos e inclinava ligeiramente a cabeça para o lado, com um sorriso afetado:
-Que alegria!
Sinceramente, não sei o que o meu irmão viu nela. Era diabólica, hipócrita e irritante. Ela não era nada de espetacular, apenas tinha um cabelo ruivo de meter inveja.
-Estou um pouco cansada.- disse, por fim, no meio da conversa dos dois amados.
-Ah, Carrie, podes levá-la para o quarto de hóspedes? Quero que ela fique aqui até a guerra acabar. Não te importas, pois não?
-Claro que não, bombonzinho.- disse ela, enquanto me agarrava o braço com imensa força.- Anda, Jo. Eu mostro-te onde é.
Comecei a caminhar, sentindo ainda a pressão dos dedos de Carrie no meu braço. Ela odiava-me, isso era óbvio. Carrie conduziu-me por alguns corredores sombrios até que parou em frente a uma porta branca. Abriu-a com um pontapé e empurrou-me para o interior do quarto, deixando de me agarrar o braço.
-Ouve com atenção, fedelha.- começou. Sinceramente, quem era ela para me tratar assim?- O Jeremy é meu e de mais ninguém. Afasta-te ou vais acabar morta.- ameaçou.
Fez um sorriso maléfico e fechou a porta a trás de si, deixando-me com alguma surpresa num quarto iluminado com a luz solar, impecavelmente limpo. A cama tinha quatro pés e uma cabeceira em ferro pintado de branco, sem ponta de sujidade. As paredes estavam pintadas de rosa muito clarinho, como a pele rosada de um bebé e era decorado como se fosse o quarto de uma criança. A mobília era toda branca, desde as mesinhas de cabeceira à cadeira da secretária, também branca. O quarto cheirava a alfazema, um cheiro que me agradou logo assim que Carrie me deixou sozinha. Aquele quarto era enorme, já que tinha espaço para a cama de casal e ainda para um sofá (rosa claro) que ficava de frente para uma grande estante (branca), com uma televisão pequena e antiga. Aquele quarto era adorável. Sentei-me no sofá e senti-me a afundar nas suas almofadas suaves. Era tão confortável que sentia que era capaz de dormir ali durante dias seguidos, sem que ninguém me acordasse do meu sono profundo.
Encontrei o comando da televisão escondido debaixo de uma almofada. Apontei-o para a televisão e o ecrã acendeu-se. A televisão tinha estado ligada num canal de notícias da última vez que fora usada. Decidi deixar a televisão ligada onde estava, assim podia absorver as informações que tinha perdido nas últimas semanas. Um lobisomem falava da guerra e das alianças formadas entre cada grupo. Mal podia acreditar que a Arvoredos se tinha aliado à Alcateia Maior... Podia ter a certeza que os meus pais estariam contra tal coisa, mas agora já nem podia considerá-los meus pais.
-Descobrimos uma coisa muitíssimo importante: já sabemos o motivo desta guerra. Uma jovem que pertenceu à Alcateia Arvoredos envolveu-se com um humano, gerando um grande descontentamento por parte de Veronica, a líder desta alcateia tão modesta. Ficámos a saber que a jovem apaixonada conseguiu transferir-se para uma alcateia poderosíssima, a Alcateia Poder. A Arvoredos não gostou, dizem que devia ficar sozinha, sem pertencer a nenhum lugar. Mas Sebastian, o líder da Poder, não concordou. Há rumores de que se apaixonou pela jovem... Será este líder tão novo e inexperiente capaz de destruir metade da nossa população para proteger uma jovem que pôs em causa a nossa civilização? Estaremos em segurança?
Desliguei-te a televisão sentindo as faces ruborizadas. Como é que se atreviam a culpar-me por uma guerra? Que estupidez! Peter nunca seria capaz de destruir uma civilização de lobos, eu tinha descoberto a sua paixão pelos animais dos quais descendemos. E desde quando é que Sebastian estava apaixonado por mim? E ele não era incompetente. Se o fosse, não seria líder de uma das alcateias mais fortes. Quer dizer, já não havia líder por causa da junção entre alcateias, dando arigem à Alcateia Unus... Só esperava que fosse ele quem nos passasse a governar.
-Jo?- o meu irmão estava do outro lado da porta.
Levantei-me e deixei-o entrar. O rosto dele ficou sombrio. Eu sabia que havia algo que ele me escondia.
-Este quarto é da tua filha, não é?
Ele baixou a cabeça e ficou a olhar para os pés, como se fossem uma coisa muito linda de se observar.
-Sim.
-E não é filha da Carrie, pois não?
-Não. A Liz é filha da Cassandra.
-E onde estão as duas?- fiz a pergunta mesmo já sabendo a resposta.
-A Liz foi levada pela mãe, que é humana, para o Exterior. Fico à espera que um dia a traga, por isso, esta é a única zona da casa que mantenho limpa. A Carrie é muito ciumenta, ela sabe que tive uma vida antes dela. Tenta ser compreensiva se ela te falar com rudeza...
"Rudeza? Ela era capaz de me matar e eu tenho que ser compreensiva?", pensei.
-Não tinhas dito que seguiste em frente e para eu fazer o mesmo?
Ele olhou para mim com os seus grandes olhos azuis escuros.
-E avancei, mas fiquei com uma marca do passado.

Out of the WoodsOnde histórias criam vida. Descubra agora