Inferno Gelado

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Chegámos a casa sem uma única palavra para servir de explicação. A minha cabeça estava num turbilhão, a dar voltas e voltas. Peter pareceu-me confuso quando me viu, depois cheio de atitude.
A casa estava fria. Talvez por não termos acendido a lareira, talvez por Brian e eu estarmos frios um com o outro, ou talvez ambos. Assim que entrei na sala, diriji-me à lareira. Peguei em lenha e tentei pregar-lhe fogo com um fósforo, mesmo nunca tendo feito isso antes. Senti o olhar de Brian cravado nas minhas costas, possivelmente a rir-se de mim. Ouvi os passos dele nas minhas costas a aproximarem-se cada vez mais. Rodeia-me com os seus braços grandes e fortes e mostra-me como acender a lareira. Quando finalmente uma chama irrompeu nas mãos deles, ele afastou-se, levanto-me com ele nos seus braços e caímos um em cima do outro.
Ficámos deitados no chão a olhar para o teto durante o que me pareceu ser toda uma vida. Continuei deitada em cima dele, aninhada no peito dele com os peitorais salientes. Senti-me com sono e decidi acertar a minha respiração com a dele, mas foi impossível adormecer.
-Tu sabes que temos que falar.– Brian quebrou o silêncio.
Esperei que o meu silêncio servisse de resposta. Não queria afastá-lo outra vez, e uma futura conversa sobre Peter seria o suficiente para que isso acontecesse.
-Não quero estragar tudo.– acabou por dizer.
Senti-o a afastar-se para me fitar. Brian era um mestre a ler-me os pensamentos.
-Nem eu.– admiti.
Aproximei-me porque o quis beijar. Estava tão perto de sentir os lábios dele, mas ele impediu-me. Devo ter olhado para ele de uma maneira estranha, porque ele disse:
-Nunca te beijaria sabendo que não estarias a pensar em mim, mas nele.
Levantei-me e decidi que precisava de dormir. Havia muito em que pensar.

Em vez de dormir, tudo o que consegui fazer foi recuperar os acontecimentos dos últimos dias. Cameron/ Sebastian era meu irmão.
As eleições tinham sido um pouco tumultuosas. Fiquei a saber que a casa aonde o táxi me levou pertencia a Sebastian (prefiri chamá-lo assim, era suposto protegê-lo com este nome), ou àquele que fosse o chefe de alcateia. Era o local onde assuntos importantes eram tratados, por ser uma casa vulgar que não chamava à atenção.
O chefe da alcateia foi eleito pelo voto dos candidatos à governação, que não podiam votar em si mesmos. Os outros candidatos eram pessoas demasiado enfadonhas. Uma mulher de trinta anos, uma tal de Izzy, era tão chata que não teve o voto de ninguém. Outro homem, um Robert, era demasiado convencido, sempre com grandes ideias. Por fim, um outro candidato era William, uma pessoa simpática, líder da antiga Sophía. Os mais óbvios para a liderança eram William e Sebastian, mas o eleito foi Sebastian, para meu alívio.
Provavelmente uma grande guerra estaria para vir. O meu irmão queria mostrar-nos ao mundo, mas essa informação só me foi dada a mim. Senti-me demasiado ansiosa. Saber que a minha família era perigosa fez-me ficar assustada com qualquer coisa que acontecesse à minha volta.

-JOOOO, VEM CÁ!– Brian chamou-me a partir da entrada enquanto eu penteava o meu cabelo loiro já demasiado comprido em frente ao espelho do meu quarto.
Desci as escadas a correr e estaquei no início do corredor. Peter estava na porta. Só consegui ver a sua silhueta alta e magra contra a luz branca do sol.
-Fiz merda.– disse ele, os olhos fixados nos sapatos ensopados.
Brian não parecia nada feliz com a visita inesperada de Peter. Quase que podia ver o fumo a sair-lhe pelas narinas e pelos ouvidos, como nos desenhos animados. Peter dirigiu-se à cozinha como se fosse a casa dele, como se sempre tivesse vivido lá.
-O que é que queres, pá?!– reclamou Brian, os braços cruzados sobre os peitorais salientes.
Decidi ignorá-lo. Sentei-me numa cadeira e Peter fez o mesmo. Brian deve ter preferido ficar de pé, talvez para servir de cão de guarda, como se eu precisasse de um...
-Fiz uma grande porcaria e preciso da vossa ajuda.

A ideia era louca, quase impossível, mas algo tinha que ser feito. Peter contou-me a história toda. De como esteve aqui durante a noite de Lua Cheia em que a guerra começou, como percebeu que os lobisomens existiam, como caiu da árvore e perdeu a memória, como decidiu apoiar o abate dos lobos, como me viu e se recordou de tudo, como decidiu travar tudo o que fez quando não tinha memórias. Brian e eu tivemos que aceitar, mesmo sem saber como solucionar todo aquele problema. Ao princípio, o meu melhor amigo parecia contrariado, mas acabou por aceitar. Não era só ele (um casmurro) que estava em causa, mas toda a cidade.
Brian decidiu do nada que precisava de sair, deixando-me a mim a sós com Peter.
-Corres um perigo enorme ao estares aqui. Estão à nossa procura, especialmente atrás de mim. Diz-me, por favor, que não contaste as tuas descobertas a ninguém.
Ele olhou para mim através das lentes grossas dos óculos. Os olhos dele continuavam iguais àqueles de que me recordava: castanhos com um toque de dourado à volta da pupila. Peter estendeu a mão por cima da mesa e eu não resisti em apertá-la com a minha.
-Acho que ninguém sabe. Nem eu próprio sei se acredito...
-Tens que ter cuidado, a nossa cidade tem ideias fixas, e se alguém escapa a essas ideias, é o fim do mundo. Há um grupo de pessoas que foge às ideias fixas da nossa sociedade: somos os Rebeldes.
Peter olhou para mim como se me perguntasse se Brian pertencia a esse grupo. Era óbvio que não, mas sabia que ele também não estava de acordo com as regras da sociedade.
-Quero ser um lobisomem.
A ideia de Peter surpreendeu-me como se tivesse sido atingida por um balde de água fria. Ele não tinha noção das implicações que isso teria na vida dele.
-Nem penses nisso.– Brian voltou a aparecer, assustando-me.
Os olhos dele devem tem ficado fixos na minha mão e na de Peter, enlaçadas de tal maneira que pareciam impossíveis de se separarem.
-Tenho que concordar.– acabei por dizer, soltando devagarinho a minha mão da de Peter.
Brian pousou as mãos quentes nos meus ombros. Inspirei e expirei lentamente.
-Eu sempre quis viver aqui, tenho o direito de fazer as minhas próprias escolhas. Como é que posso tornar-me um lobisomem?
Levantei a cabeça para olhar para Brian, que me olhou com aqueles olhos escuros e tristes.
-Só há duas maneiras, e nenhuma delas é de fiar.
Brian sempre foi um perito nessas coisas de lobisomens. Eu não gostava de teorias, limitava-me a ser.
-Sou só ouvidos.
Brian explicou-lhe tudo. A criação dos lobisomens consistiu na mistura de sangue entre um humano e um lobo feita por um cientista louco. Também lhe explicou que eram bastante raros os lobisomens que pediram para o serem, ou que foram atacados e se tornaram nessa espécie rara (normalmente, quando eram atacados, acabavam por viverem isolados sem pertencerem a nenhuma alcateia). Alguns dos lobisomens que não foram lobisomens de nascença, foram atacados. Quando são atacados, tanto podem morrer, pode não haver qualquer efeito, ou então podem tornar-se lobisomens entre um espaço de seis meses (se esses meses passarem sem nada de anormal acontecer, é porque o ataque não teve qualquer efeito).
-E qual é a outra maneira de me tornar um lobisomem?– perguntou.
Brian olhou para mim e eu para ele e soube imediatamente no que estava ele a pensar. A segunda maneira consistia em misturar sangue de um lobisomem com o de um humano através de uma seringa. A quantidade tinha que ser exata, não podia ter um mililitro a mais ou um mililitro a menos. Se tivesse a menos, o efeito era nulo, enquanto que se tivesse a mais, era morte certa. Brian explicou-lhe tudo isso, mas Peter não desistiu da ideia.
-Como eu fui atacado... Acham que há hipótese de me ter tornado um lobisomem?
Brian voltou a olhar para mim. Ele não estava a gostar nada da ideia.
-Não sabemos, só com alguns testes. Há coisas mais importantes a tratar. Tens que sabotar todas as armas dos militares, ou então vamos todos morrer.– Brian disse aquelas palavras com uma frieza que me congelou as entranhas.
Peter fixou o olhar na mesa. Queria levantar-me, abraçá-lo e dizer-lhe que tudo ia correr bem, mas estaria a mentir.
-Há alguma hipótese de eu poder ficar aqui? O mundo aqui dentro é muito melhor.
Brian soltou uma gargalhada escarninha.
-Bem-vindo ao Inferno gelado.

Out of the WoodsOnde histórias criam vida. Descubra agora