Lembranças - HIATUS

IV. Epílogo (Parte IV)

Ao abrir os olhos novamente, 09 se viu no mesmo cubículo escuro e sombrio em que havia sido trancafiada durante tempo. Ajoelhada no chão gélido, se pôs a gritar com toda a força que tinha. Ela não conseguia acreditar que havia voltado para aquele pesadelo. Seu algoz havia morrido, não havia? Do seu lado estava o corpo de Zhang, a barriga exposta graças aos cortes da faca, à diferença que seu sangue agora brotava negro como petróleo. Tremendo com a possibilidade de ficar presa ali para sempre, se aproximou, encostando o ouvido em seu peito. Não ouviu nenhuma batida.

O sangue negro transbordava pelo chão, enquanto 09 procurava desesperadamente por outras maneiras de confirmar que seu algoz estava morto e que não poderia mais fazer mal nenhum à ela ou à qualquer outra pessoa que tivesse caído nas garras do psiquiatra sádico. Havia desejado isso por tanto tempo, que custava a acreditar. Verificou suas narinas, de onde nenhum ar saía; o mesmo valendo para sua boca. Seu pulso estava sem pulsação. O corpo já começava a acinzentar e a esfriar. Serenidade, sensação que ela não sentia há um bom tempo, tomou conta do seu rosto, ao finalmente confirmar a morte do seu algoz.

Ela havia derrotado o bastardo com suas próprias mãos, enfiado sua faca o mais fundo que tinha conseguido e rasgado sua barriga de lado a lado. E tinha adorado cada segundo daquilo. Faria questão de nunca esquecer o sofrimento e a dor que os olhos de Zhang transmitiram no momento da sua morte. Colírio para os seus olhos.

Não haveria mais cobaias. Não haveria mais soros do esquecimento. Não haveria mais torturas, nem jogos mentais. Doutor Malvadeza havia embarcado para uma viagem sem volta para a cidade dos pés juntos e ela finalmente estava livre. Enfim havia ganhado sua tão sonhada liberdade.

No momento em que 09 tomou consciência de sua liberdade, um estranho feixe de luz passou pela porta do calabouço, iluminando pouco a pouco o quarto escuro. À sua frente, imagens distorcidas começaram a surgir, tornando-se mais nítidas conforme a tal luz ia se espalhando pelo lugar. De pronto, ela começou a reconhecer aquelas imagens. Seu pai. Sua mãe. Sua irmã. Marina. Martin. Demorou uma fração de segundos para que entendesse o que estava acontecendo. Da mesma forma que aconteceu com a imagem de seus familiares, as lembranças restantes que estavam perdidas em algum lugar da sua mente graças ao soro do esquecimento de Zhang, começaram a voltar com tudo. Conforme a claridade atingia as paredes do local, os nomes que ela escrevera ali durante tanto tempo foram se apagando, lentamente, até que só havia restado um.

Pietra. Pietra era seu verdadeiro nome.

Quase como que cronometrado, nesse momento seus olhos abriram, ainda disformes, e se viu novamente no corredor do sanatório, deitada por cima do corpo de Zhang. Um sorriso involuntário surgiu em seu rosto, chegando até seus olhos, enquanto se levantava do chão. O brilho que emanava deles curiosamente evidenciando que sua sede de sangue não havia sido saciada após ter colocado suas mãos no psiquiatra. Ela havia provado o gosto do poder e ansiava por mais. Por que então não começar com os enfermeiros cães de guarda de Zhang? Eles ouviram e viram suas sessões de tortura com o sádico e não fizeram nada para ajudá-la. E ela tinha mais do que certeza que a faca que segurava com força na sua mão direita, ainda coberta com o sangue do doutor, concordava com isso. Dessa vez faria seu trabalho num lugar onde ninguém poderia ouvir seus gritos de dor e agonia. E ah, ela podia apostar que eles gritariam.

Ouvindo passos vindos de algum lugar próximo dali, Pietra rapidamente se levantou, pronta para colocar seu plano em ação. Indo apressadamente para o cômodo onde encontraria o instrumento perfeito para que tudo ocorresse como desejava, encontrou lá dentro uma afiada tesoura cirúrgica. “Bingo!”. Um segundo uso da sua amada faca ficaria para depois. Após segurar a tesoura com a mão esquerda, se posicionou atrás da porta, preparada para fazer o que queria e precisava.