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— E o que aconteceu, quando você chegou em casa? — Perguntou Char.

— Levei uma grande surra com uma vara que minha mãe tinha conseguido no caminho de volta para casa. Ela já estava lá, quando cheguei. Fiquei passeando pela cidade, desprotegido e totalmente receoso, procurando meios de impedir minha volta ao lar, ou pelo menos retardá-la. Claro que não foi possível. Conforme foi anoitecendo, tive medo da rua e da cidade. E tive de voltar, no final das contas.

— Sua mãe tinha procurado por você?

— Quando perguntei, ela disse que sim, que estivera muito preocupada e passara grande parte de seu dia de trabalho me procurando pelas ruas da cidade. Depois de algum tempo, porém, quando fiquei mais velho, acabei descobrindo que tinha sido diferente. Perguntei se tinha realmente me procurado e ela disse que não. Que sabia que, no final do dia, eu ficaria com medo e voltaria correndo para casa.

— Ela estava certa.

— É claro que estava.

— Como foi a surra?

— Quem sabe a melhor de minha vida — ri. — Se é que pode existir um lado bom nisso. Mas o que quero dizer é que foi terrível. Ela bateu com muita força, e por muitas vezes. Chorei como nunca. Quando ela terminou, tentei me sentar em um canto da casa, mas não consegui. E adivinhe o que ela acabou por fazer quando descobriu que meu traseiro ficou com marcas vermelhas por dias...

— Nem ideia. — Char disse, mas eu sabia que tinha.

— Cuidou dos machucados que ela mesma tinha causado — ri outra vez. — Foi realmente muito irônico. Até hoje escuto ela dizendo "Você mereceu!", como se fosse um fantasma dentro da minha cabeça. Era contraditório.

— Você fugiu outras vezes? — Char perguntou.

— É claro. Eu era maroto... e não gostava de acompanhar minha mãe naquele trabalho sem graça. Conforme fugia, apanhava em uma escala crescente de força. Segundo ela, para impedir que fugisse na próxima vez. Mas eu sempre fugia.

— Não ficava com medo das surras?

— Ficava. Mas havia recompensas, quando conseguia escapar. — Eu disse, pensando em todas as coisas que aprendera naquelas escapadas, com o homem que depois descobri se chamar Hanno, mas que esqueci de perguntar o sobrenome. Ele viraria meu melhor amigo. Mais ainda do que os garotos com os quais aprendi a conviver nos arredores do exército.

Foi ele quem me ensinou a arte de guerrear.

Foi culpa dele. Culpa dele que me tornei imortal.

— Você... — A mulher demorou um pouco a formular a pergunta, pensando nas consequências que trariam aquelas palavras. — Você sentiu falta dela? Chorou?

— Minha mãe? Quando morreu?

— Sim.

Não havia outra resposta a ser dada:

— Nunca fui emotivo.


***


No dia seguinte, tive a ousadia de fugir outra vez.

Aconteceu a mesma coisa que no dia anterior. Minha mãe procurava por ostras. Levantei e corri embora o mais rápido que pude com minhas nádegas inchadas. Ainda assim, ela não me perseguiu. E não bateu em mim no final do dia, mas me xingou como nunca. Afinal de contas, sentia-se péssima por ter dado uma surra tão grande.

Agora eu MorroOnde histórias criam vida. Descubra agora