Yuma estava dentro da biblioteca por acaso, mas isso acabou por salvá-la. O lugar havia sido destruído alguns anos antes por vândalos, e, quando foi reconstruído, recebeu acabamento de magnésio, capaz de proteger contra a radiação. Ela decidiu ficar lá.
Eu e Char também fomos para lá, pois não poderia arriscar sua vida para a radiação. Esta desapareceu gradativamente do planeta. Não sou cientista para conseguir apreender a razão de isso ter acontecido tão rapidamente, mas fato é que em 2033 a radiação já não era mais capaz de transformar pessoas em sedentos. Certamente, mais um dos mistérios do nosso mundo que não são fáceis de explicar.
Entramos no local e nos aconchegamos atrás de algumas estantes, destruindo os braços de sofás para formar uma cama. Unimos dois móveis para que pudéssemos dormir juntos, de forma que eu protegesse Char no caso de haver perigo que eu não identificara antes. Nos cobrimos com alguns panos que eu tinha encontrei em um homem morto, embora contasse à minha companheira. Ela se recusaria a dormir com o cobertor, caso soubesse de onde viera.
No meio da noite, ouvi gemidos de dor.
— Char? — perguntei, tentando descobrir se era ela tendo um pesadelo.
Ela se espreguiçou e disse:
— O que foi?
Fiquei calado, tentando ouvir melhor, mas os sons ficaram mais baixos.
— O que foi? — ela repetiu.
Eu ia responder, mas dei um salto da cama quando ouvi um grito.
— O que foi isso? — ela perguntou, levando a mão ao peito e apertando-o, provavelmente com o coração pulando tanto quanto o meu.
— Fique aqui. Vou tentar descobrir o que está acontecendo.
— Posso te acompanhar?
— Não. Pode ser perigoso. — Pensei a respeito, e disse: — Fique atrás daquelas estantes e leve aquele extintor consigo. Se aparecer alguém, mesmo que seja eu, bata na pessoa com todas as suas forças. Não quero que você se machuque.
Ela assentiu e agarrou o extintor que estava pendurado debaixo de uma grande placa vermelha, correndo para trás das estantes enquanto eu cautelosamente caminhava pelo salão vazio, à procura do homem que gritara.
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Quando estava saindo do salão por uma porta ao norte, ouvi um som estranho vindo da saída oposta. Voltei, atravessando completamente o ambiente e pegando um pedaço de madeira que havíamos quebrado do sofá. Andei com ele levantado, pronto para atacar quem fosse.
Encontrei duas pessoas no corredor de uma saída de emergência. Uma delas estava morta.
O homem no chão com a garganta cortada tinha também o zíper da calça aberto e o órgão genital projetando-se para fora. Ele não parecia nem de longe um sedento, mas um predador que subestimara sua presa. Perto dele estava uma mulher asiática. Ela respirava forte, como se tentando se acalmar, mas tinha a respiração cortada pelo choro. Suas roupas estavam completamente ensopadas de sangue. Na sua mão direita, uma pequena adaga, também manchada de sangue.
Eu me aproximei lentamente, achando que ela poderia estar em choque.
Coloquei as mãos em seus ombros. Ela arregalou os olhos e, com uma velocidade incrível, cravou a lâmina da adaga em minhas costelas. Um dos ossos se quebrou.
A moça tinha nos olhos o fogo do puro ódio, mas quando viu que minha face não era a do homem caído no chão, seus olhos se arregalaram ainda mais e ela soltou a faca, ainda presa em meu corpo, para levar as mãos ao rosto.
— Não se preocupe — eu disse, tentando parecer gentil. Tirei a faca e mostrei a ela como a fenda que a lâmina fizera se fechava.
Ela tirou as mãos do rosto e seus olhos giraram.
Desmaiou e bateu a cabeça no chão.
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— O que aconteceu? — perguntou Char, que, a despeito do que eu mandara fazer, não me recebeu com uma cacetada do extintor. Ela percebeu a pessoa em meus braços e abriu caminho. — Coloque-a na cama.
Levei a moça até nossa cama improvisada e com cuidado pousei seu corpo sobre os sofás.
— O que aconteceu com ela?
— Acho que foi abusada — eu disse.
— Onde está o homem?
— Morto.
— Você o matou?
— Não. — Mostrei a adaga.
Olhamos para a mulher. Seu rosto parecia aflito, ainda que ela não estivesse consciente.
— Ela me atacou e desmaiou quando mostrei que não estava ferido. Pareceu assustada quando percebeu que eu não era o homem que ela queria acertar. — Ficamos em silêncio por alguns momentos, e então dei alguns passos atrás. — Vou procurar por outros sofás.
Encontrei uma dupla de poltronas que seriam o suficiente para passar a noite e arranquei a cortina de uma grande janela para nos cobrirmos, rasgando-a no meio. Pelo vidro, enxerguei a fachada e as vitrines de uma loja de roupas. Saí da biblioteca e fui até lá, arrombando a porta e levando para o prédio público todas as roupas que achava que serviriam na asiática, ignorando as muito floreadas ou com mensagens espalhafatosas. Achei que roupas alegres não combinavam com o momento.
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Agora eu Morro
Science FictionEm uma grande cidade, quatro pessoas tentam sobreviver ao terrível ano de 2033, quando grande parte dos problemas mundiais, como a falta de água e o aquecimento global, explodem junto de uma bomba de hidrogênio em Berlim. A radiação se espalha pelo...