Sobre os Monstros do Lado de Fora

227 12 5
                                    


Clove

Faço o melhor que posso para não parecer segura ou grata, mas é uma tarefa muito difícil quando tudo que há na sua mente remete a essas duas coisas. Caminhando pelas ruas do anoitecido Distrito 2 com Cato Ludwig, eu analiso as opções. É ridículo demais pensar em tentar matar uma pessoa que você passou a vida toda defendendo da morte.

- Me desculpa, Cato – falo relutantemente, incomodada com essas palavras vulneráveis. – Eu ficaria.

- Mas não vai ficar! – ele grita. Como sempre, o encaro de volta por um longo tempo agindo feito gente decepcionada e desacostumada. Funciona. Ludwig sacode a cabeça, permanecendo com essa carranca idiota. – Para de falar disso, Fuhrman. Não tem mais chance, lá nós resolvemos isso.

A casa dos Ludwig é um bom lugar. Há outros três filhos aqui e os pais deles são quase sadios da cabeça. Eles assustam os filhos com o inferno manhã após manhã, mas quando eles chegam da Academia, os bajulam que nem pessoas da Capital.

- Ah, Cato, querido! – a mãe enorme e loira dele guincha, correndo para a porta. – Eu estava tão preocupada com a sua demora, mas eu estava sentindo que era por uma boa causa. Você venceu quantos no ringue hoje?

Eu os respeito em função da gratidão que tenho por eles, mas não deixo de notar o modo como seu tom muda quando vai cobrar o filho mais velho. Suas mãos ao redor dos braços de Cato passam a apertar ainda mais e o seu sorriso frio some.

- Quatro – ele responde secamente, agarrando meu pulso e me empurrando rumo à escada.

- É um bom número. Como vai, Clove?

- Bem, obrigada – respondo, quase sumindo de sua vista.

- O seu irmão, Cato, ele...

- Eu sei.

Cato bate a porta do seu quarto atrás de mim e tem sua habitual avalanche de xingamentos. Como se houvesse algo para se esperar, me sento na sua cama bagunçada e passo os olhos pelos os livros de estratégia em sua mesa, como sempre, porque não tenho interesse mais no show dele.

Penso intricadamente sobre suas chances. Sobre as minhas. Sobre a morte. Só eu poderia matá-lo. Se eu decidisse assim, só ele poderia me matar. Traição.

Prestes a me irritar com a falta de respostas, alguém bater à porta me fornece o pretexto necessária para pensar em outra coisa e adiar isso até haver facas com sangue na minha mão e Cato na minha frente.

- Pode deixar. É o Hector – ele fala, indo abrir a porta na minha frente. Enquanto fala qualquer coisa que eu não posso ouvir com o irmão, joga um cobertor do armário em minha direção e aponta para sua cama.

Mas eu fico parada no mesmo lugar. Não há nada que você precise saber entre Cato e eu, eu não vou deitar na cama dele. 

Enobaria gostaria de me matar agora. Sentada na mesa de cabeceira do cara que eu vou matar sem saber ainda como. Eu poderia envenená-lo, o que seria indigno, mas então se eliminaria a preocupação com o corpo-a-corpo que eu nunca fui capaz de vencer se ele era o concorrente. Armadilhas seriam vergonhosas. Escondida em uma moita aguardando a morte levar quem sempre te livrou dela.

Cato termina a conversa e bate a porta no momento em que meus sentidos me traem e eu estou passando a mão na dolorosa fratura em meu braço.

- Se você não me deixar ver isso, eu vou quebrar o resto.

Como ele já está sentado ao meu lado e puxou meu braço, o deixo apertar os olhos para a marca como se não fosse visível o bastante.

- Quando eu vencer, vou matar ele assim que chegar – Cato anuncia displiscentemente, se levantando e pegando uma caixa de remédios.

- Se você vencer, não vai precisar. Ele já vai estar morto – argumento, enquanto ele executa a mesma sequencia de ações de sempre, amarrando forte demais o curativo.

Ludwig só associa o que eu disse depois de empurrar a caixa para o canto da mesa. Fica parado por um tempo e finalmente ergue as sobrancelhas. Ele sabe, todo mundo sabe. 

- Vai dormir, Fuhrman. Eu vou resolver uma coisa com o pirralho. A cama é sua hoje.

Depois disso, passo a ficar sentada na sua cama o observando pegar uma pilha de livros. Eu não me intrometo na vida de Cato, mas isso me envolve um pouco.

- Você vai sair de casa?

- Vou estar no quarto ao lado – responde, sorrindo como se eu tivesse feito alguma pergunta muito inconveniente. – Não se preocupe. Os monstros não entram nessa casa.

Cato bate a porta e meu corpo cede à enorme cama. Meu nariz inala todo o cheiro familiar e meus olhos estão fechados, mas essa imagem que não se forma de fato jamais pôde ser vista. Nunca há nenhum sangue ao redor dele. Eu estou sempre desarmada. Minha boca está cerrada como as portas da morte, mas isso soa como se eu dissesse o que só agora me dei conta: Eu não posso matá-lo. Eu não consigo matar Cato Ludwig. 

Linhas BorradasOnde histórias criam vida. Descubra agora