21. Ibura e os seres vindos do mar

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Ilha de Guanahani, outubro de 1492

Um bando de maritacas se agitou barulhento e voou dos galhos próximos, procurando abrigo em lugares distantes e mais calmos nas matas da ilha, delatando a movimentação, ainda que leve e polida, que ocorria abaixo das árvores. O som foi diminuindo enquanto elas se afastavam, até que um silêncio funesto e agourento pairou por toda a extensão local da floresta litorânea, sob a qual dezenas de guerreiros se encontravam silenciosos e observadores.

Ibura abaixou novamente os olhos, ignorando as aves, e voltou a observar a praia e, mais além, o mar de águas translúcidas por onde o sol acabava de despontar no horizonte. Fixou o olhar nas canoas que vinham em direção ao local onde estavam. Conduzidas pelos seres que eles já haviam visto de perto no dia anterior, e que durante à noite voltaram ao mar para as grandes embarcações, elas se aproximavam da praia, em um contraste escuro com o brilho do sol que doía os olhos.

O grupo de guerreiros, dezenas a mais do que no dia anterior, lentamente começou a se mover, ainda ocultos pela vegetação. Haviam passado a noite na aldeia e retornaram na madrugada, acompanhados de um grupo muito maior. Tinham a cor dos canários, todos jovens, com pernas bem torneadas e barrigas com músculos à mostra. As ordens eram receber os homens do mar e tentar travar com eles algum diálogo, o que não fora conseguido de forma efetiva no dia anterior. Os jovens tremiam, mas não recuaram da empreitada que lhes foi destinada. Se ou outros seres fossem deuses, ou mesmo se fossem seres humanos, cabia aos jovens guerreiros Taino descobrir quem eram eles e por qual razão vieram.

Quando se movimentou debaixo das sombras das árvores, Ibura sentiu a tensão de seus músculos. As mãos pareceram apegadas à lança que usava. Trocou-a de mãos por um instante, enquanto movimentou os dedos abrindo-os e fechando, numa tentativa de reativar a circulação do sangue. Seja lá o que fossem as criaturas vindas dos mares, sabia que era tarde demais para recuar ou fugir. A experiência do dia anterior ainda martelava em sua mente: a estranha arma, parecida com suas facas de pedra, mas comprida e extremamente cortante e o ferimento rápido e inesperado que causou na mão de Guaicaba, o sangue do líder respingando na praia.

Depois do episódio, o grupo se desestruturou. Não conheciam aquela arma e não esperavam por aquilo. Os guerreiros se afastaram imediatamente e mantiveram distância. Não houve mais tentativas de estabelecer uma comunicação. As risadas que os membros do grupo que veio do mar soltaram quando Guaicaba fora ferido humilharam o líder e aos outros também. Os visitantes eram seres humanos sim, Ibura pensara. E não pareciam confiáveis. Foi naquele momento, em meio às degradantes risadas, que Ibura encetou um propósito em seu coração: iria conhecê-los, falar a língua deles e decifrá-los.

Os Taíno eram os herdeiros e senhores daquelas ilhas. Por muito tempo, e com inúmeras guerras e disputas, as defenderam de outros clãs. Mas até então, jamais tinham se deparado com armas como aquelas que os seres do mar portavam. Os povos mais violentos e perigosos com os quais já haviam feito contato eram os Caribe e nem eles possuíam aquele tipo de objeto.

Ibura se lembrava do dia anterior. Eles ofereceram as suas dádivas aos seres e depois se afastaram, ainda sem saber se eram seres do submundo, das habitações dos deuses ou de qualquer outro lugar. Se dirigiram à aldeia e levaram as novidades ao cacique e ao bohique. Ainda que só de ouvir falar sobre os seres, o grande chefe da ilha de Guanahani e o xamã estremeceram. Seus deuses e a Grande Mãe se mostravam silenciosos e ausentes. Não obtiveram resposta em como agir e lidar na situação. O que fizeram foi preparar mais presentes e oferendas. Também convocaram mais guerreiros para acompanhar o grupo de volta à praia. Precisavam continuar na defesa do território contra os recém-chegados.

— Eu vou até à embarcação deles — Ibura falara ao cacique.

Todos o encararam. O cacique e o bohique também o fizeram por um instante, silenciosos e perscrutadores. Observaram a idade, tamanho e condições do rapaz.

— Tem certeza? — o cacique falou.

— Tenho. Quero ver o que tem lá. E quero sondar os perigos que oferecem.

— Sabe que eles podem te matar sem piedade?

— Sei sim. Mas quero me arriscar ainda assim.

Vendo a coragem dele, outros jovens se ofereceram para ir com Ibura.

— Não é preciso — o rapaz afirmou. — Se eles me derem uma chance, quero passar a noite com eles.

— E se eles partirem novamente?

— Então eu volto. Consigo nadar tranquilamente a distância das grandes embarcações até a praia.

— Vamos discutir o assunto e depois daremos uma resposta — o cacique completou por fim.

Então, o cacique, o bohique e outros grandes líderes da tribo se reuniram. Discutiram a situação e finalmente se decidiram. O rapaz recebeu a permissão para ir até as embarcações. Mas ele não iria sozinho. Outros jovens foram designados para ir com ele.

***

As embarcações chegaram na praia. Aparentemente era o mesmo grupo do dia anterior. Mas também podiam ser outros homens, mesmo que tivessem a mesma estatura, vestimentas, gestos e forma de se movimentarem. Moviam a embarcação como qualquer um dos Taíno, usando as mãos e braços para dar impulso com objetos semelhantes aos remos. O mais indecifrável continuava sendo o que eles usavam sobre corpo. Não era somente o tecido que conheciam, feito de algodão. Havia partes duras, que refletiam o sol.

— Nós vamos até eles? — um dos rapazes perguntou ao líder dos guerreiros quando já saíam para fora da proteção das árvores.

— Ainda não. Vamos esperar mais um pouco até eles arrastarem o barco para a areia. Depois a gente se aproxima. — Guaicaba tinha uma espécie de curativo de tecido de algodão na mão cortada.

O rapaz manuseava o tacape com a mão esquerda. Isso não era um problema para ele. Tinha a mesma destreza com ambas as mãos. Fora treinado por anos no uso daquelas armas: flechas, facas de pedra ou ossos, lança e tacape. Gostava mais do tacape. De uma forma geral essa era a arma preferida dos Taíno. Trabalhavam demoradamente em suas armas, até deixá-las na espessura e peso ideal. Alguns tacapes tinham pedras cortantes fixadas a eles. Outros eram lisos, no entanto não menos mortais.

De onde estavam conseguiam ver claramente os seres do mar, que também pareciam atentos a qualquer movimentação vinda de sob as árvores. Os estranhos já tinham percebido o grupo de homens que ali permanecia.

***

Naquele dia, antes do meio dia Ibura conseguiria o seu intento. Conseguiu se fazer entendido pelo grupo dos seres brancos e foram, em grande número, até às grandes embarcações. Usaram seus próprios barcos, que os Taíno haviam trazido descendo pelo rio com as oferendas.

Ao pisar na Caravela, Ibura teve uma sensação de aperto em suas entranhas. Não sabia se era o cheiro horrível que vinha do seu interior, cheiro podre, de coisa estragada, que estava impregnado no ambiente. Parecia mais uma presença, um peso. Como se a morte fizesse morada naquele lugar e com aqueles seres. 


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Taínos: os herdeiros da invasão - WATTS2019Onde histórias criam vida. Descubra agora