Quando a cidade dorme

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Em casa, meu avô estava acordado quando cheguei.
Sentado na varanda da sala,olhando a paisagem que por tantos anos foi a moldura da vida,parecia até meu vô de sempre. O de antes da doença.
O que recitava poesias, que conversava comigo como o amigo.
O meu melhor amigo.
É ele o único que ouviu sobre meu louco sonho.
Aquele que me aguardava na portaria da escola todo dia com um pirulito diferente.
O trato era que eu provasse todos os pirulitos do mundo,mas a vó não podia saber,brigava comigo por comer doce antes do almoço e com ele por me fornecer.
As broncas sempre acompanhavam um sorriso escondido.
A delicadeza da minha avó nunca deixou ela brigar de verdade com nenhum de nós dois.
Ele queria adoçar minha infância e teve sucesso.
Todas as minhas lembranças felizes são ao lado daqueles dois velhos.
O barulho das minhas chaves no tampo da mesa não penetrava mas no seu mundo.
Antes quando eu chegava em casa,ele vinha de onde estivesse para saber como havia sido o meu dia.
Largava qualquer leitura,qualquer conversa ao telefone, nada era mais importante do que aquele nosso momento.
Como sempre da porta da cozinha, minha avó veio me beijar a cabeça.
Estava sorridente,animada como sempre ficava quando o dia era bom para o marido, preparava um cozido português para o jantar.
Era um dos pratos prediletos do vô.

__Hoje no almoço ele pediu por cozido,Ju. Fiquei tão feliz!
Tô terminado de fazer para o nosso jantar. Vou até arrumar a mesa para o jantar hoje.

__Que bom,vó!

Não existe vitória contra o alzeimer. Nunca.
E esses pequenos fragmentos de lembrança ou informações aleatórias que o familiar deixa transparecer vez em quando, são fios de esperança para quem todos os dias ver o amado perder mais um pouco para a demência. Desfiz minha mochila,coloquei a roupa para lavar e ao pegar minhas calcinhas lembrei do Rodrigo.
Peguei o celular para mandar uma mensagem mas ele já tinha me enviado uma há dez minutos atrás.

Rodrigo:
Espero que você tenha chegado bem em casa.
Será que a gente consegue se ver ainda hoje?
Quero muito te encontrar,Ju. Muito! Quando você estiver livre,me avisa. A hora que for irei ao teu encontro.

Fiquei um tempo me decidindo se respondia ou não a mensagem.
O que eu poderia colocar?
Não posso sair a noite e deixar meus avós sozinhos.

Eu:
Não vai dar...
Talvez só consiga te ver na quinta.
Minha semana é complicada.
Desculpe.

Jantamos os quatro na mesa,essa noite Tete só foi embora depois de comer conosco.
Ela também estava contente com o dia tranquilo. Era uma pequena comemoração entre nós mulheres,aquele cozido.
De sobremesa teve cocada de colher,doce preferido do vô,mas ele não quis comer.
Disse que odiava cocada.
Ok.
Não se pode vencer todas as batalhas,quando a guerra já foi perdida.
Lavando a louça, no silêncio da noite,com meus avôs já deitados cada um em seu quarto ouvi meu celular tocar. Não toque de mensagens, o toque de ligação de voz.
Eram quase dez da noite.
Tinha certeza de saber quem estava ligando.
Olhei o visor para confirmar o que eu já sabia, era o Rodrigo me ligando.

__Alô.

__Tô te atrapalhando?

__Se estivesse eu não atenderia o telefone.

__Ok. Deixa quieto, melhor eu desligar.

__Eu que fui grossa. Desculpa, foi sem intenção. Não precisa desligar. Sério. Gostei de você ter ligado.

__Nem sei porque te liguei. Sei lá. Pensei em tentar te convencer a me ver hoje. Ou talvez só tenha sentido vontade de ouvir tua voz.

__Eu também queria te ver hoje,Rodrigo. Queria muito. Só que não dá.

__E não dá porquê? Tá presa? Ei, será que você é quem é a comprometida?

__Acertou.Eu sou comprometida sim. Mas não é com nenhum cara.

__Porra você curte mulher?

Ele me interrompeu e pelo tom de voz percebi que ele estava fazendo piada.

__Engraçadinho!

__Não culpe um cara por ter imaginação.

__Meninos! São tão previsíveis.

__Me deixa te montrar o quanto imprevisível eu posso ser,essa noite. Me dá teu endereço,chego rapidinho,a gente pode comer alguma coisa,papear ou só se beijar,ou...Você escolhe.

__A proposta é sensacional,só que tô falando sério. Não posso sair de casa hoje. Minhas noites só são livres no fim de semana.

__Por quê?

O tom dele mudou. Ele tinha finalmente entendido que eu não iria sair.

__Moro com meus avós e não posso deixa los sozinhos,Rodrigo. Meu avô tem alzheimer e minha avó não aguenta cuidar dele sozinha.
Na realidade eles não ficam sozinhos nunca.
Eles são meu compromisso. E eu tô bem com isso. Faço por eles o que eles fizeram por mim no passado. Enfim. É isso.

__Continua. Conversa comigo. Quero saber tudo de você, Ju. Todos os seus lados. Te conheço arrumadinha.Te conheço motoqueira. Te conheço mulher que me fascina. Também quero conhecer você família. Você inteira me interessa.

Foi o suficiente para eu querer contar tudo para ele.
Contar minha rotina,meus medos,meus anseios.
Contar o que me custava calar.
Contar quantas vezes eu queria chorar.
Contar sobre o que eu nem sabia que queria compartilhar com alguém.
Dei meu endereço e nem percebi. Ele não desligou,continuamos conversando e eu fui falando sobre tudo. Resumindo uma vida deixando ele conhecer o meu coração e nem acreditei quando ele interrompeu o que eu falava e soltou a bomba.

__Tô na frente do teu prédio. Pede o porteiro para me deixar subir.

__Você veio! Garoto! Pensei que você estava em casa ainda.

Com o celular ainda no ouvido,interfonei para a portaria.
Certeza que de manhã o Seu Beto ia contar para minha avó da visita que eu recebi a noite.
Rodrigo me disse perai e desligou.
Corri para a porta,fiquei olhando pelo olho mágico.
Pela minha esquerda o vi aparecer no meu campo de visão. Abri a porta antes que ele batesse.

__Cê é louco? Veio igual um cachorro louco pelas estradas né.

__É você quem faz isso comigo e se eu estiver ficando louco, é por você.

Ele ainda na entrada da porta,meio fora no corredor, meio já dentro da sala da minha casa.
Jaqueta preta,o fone de ouvido pendurado no pescoço, denunciando como estava conversando comigo e guiando a moto ao mesmo tempo.
Cheiroso,moreno,lindo.
Me pegou pelo cabelo,aproximou nossas bocas.
E antes de me beijar,perguntou se podia.
Eu balancei a cabeça e deixei ele me beijar.
O barulho da porta do levador me fez empurrar ele de leve.
O convidei para entrar com um puxão na jaqueta de couro , antes que algum vizinho aparecesse no corredor.

__Só não podemos fazer barulho,tá. Meus avós já estão dormindo.

__Claro.

Sentamos no sofá, perguntei se ele queria beber alguma coisa.
Ele quis água. Fui para a cozinha e quando voltei ele estava olhando as fotos no aparador.

__Tá admito que você ganhou pontos na imprevisibilidade, chegando aqui sem eu nem perceber que você já tinha saído de casa,mas perdeu os pontos agora. Tem nada mais previsível que olhar as fotos de família quando estamos sozinhos na sala de alguém.

Ele riu baixinho.

__Cê tem razão.

Dei o copo para ele,respondi as peguntas que ele me fez sobre as fotos da minha infância, foto do meu pai e da minha madrasta no casamento deles,fotos dos meus avós e eu, e o convidei para a varanda.
Ali sentados,conversamos pela madrugada.
E enquanto a cidade dormia algo novo acordava na gente.
Nos olhares,nos sorrisos.
A gente não fez nada além de conversar e no final, já lá pelas quatro da manhã e ele foi embora, é que percebi que estava apaixonada.
Apaixonada por aquele moreno lindo.





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