No caminho

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Dirigia pelas ruas como se não quisesse ir aonde tinha que ir. O quebra-cabeça não fazia sentido. Não podia crer que fora uma peça. Aliás, não pensou que fosse a peça mais importante daquele jogo que em momento algum fora lhe confidenciado. Pensou nas noites que o acompanhou. Relembrou o calor do seu corpo, a maneira como o olhava. Quisera ele ter uma última noite juntos novamente, para então lhe dizer o quanto era significativo. Deslocava-se em velocidade tão baixa que os demais veículos muitas vezes buzinavam. O choro estava entalado. O rádio do carro anunciava assuntos aleatórios em volume super baixo. Não tinha reparado nisso, até que a música que ouviram juntos na sua primeira vez começou a tocar. Um filme se passava vagarosamente. Perdeu o fôlego. O gosto do beijo, o cheiro, o olhar, os toques pela pele, os arrepios provocados, aquele dia de seu aniversário, os jantares, os elogios por serem um casal lindo, se fizeram presentes instantaneamente. Deu um soco no rádio, tremia e não conseguia desligá-lo. A música parecia não ter mais fim. As noites frias de inverno juntos, os planos que não se concretizaram, ceifados repentinamente. Respirou. Diminuiu o rádio até não escutar mais nenhum som. Os olhos lacrimejavam a todo instante. Limpou a corisa no antebraço. Almadiçou-o. Xingou-o. Esbravejou toda sua raiva reprimida em vão. Até que chegou aonde não queria chegar. Estacionou o carro branco, a mesma cor do dele. Desceu vagarosamente do carro. O sapato preto estava impecável. Reluzia. Caminhou pela grama ainda úmida. Sentou-se diante da cova. E mais uma vez, não acreditou. Ao lado, uma coroa de flores e várias fotos. Várias fotos em que havia um largo sorriso. Nunca pensou que por trás de tantas, poderia ter um coração tão infeliz e deprimido. Nunca pensou que fosse tão solitário. Era só uma aparência de forte. No fundo, estava cheio de problemas e dilemas. Desejou jamais ter o conhecido. Nunca ter ouvido aquela música. Odiou-o. A cova era funda. A terra era avermelhada e úmida. O sol estava fraco, como se recusasse também a acreditar. Sem perceber, fora o primeiro a chegar. Algumas pessoas cabisbaixas se aproximavam. Ele nunca permitiu que se fizesse parte da vida dele. Era extremamente reservado com os seus sentimentos. Era difícil saber o que pensava. Não convivia com os amigos ou com sua família. Questionou-se o motivo pelo qual estava ali. Um amigo dele sentou-se bem ao lado. Pôs as mãos sobre as minhas e as apertou. Disse que com toda certeza eu fora especial para ele. Olhei-o e assenti com a cabeça. Quis abraçá-lo, pois era o único que sabia do que um dia tivemos. Contive-me. Olhei em direção à cova novamente.

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