Uma nota de Karlens Boskova

88 14 12
                                    

Entre um gole e outro do vinho, ele contava detalhadamente sobre a safra e algumas coisas que aconteciam no quartel. Como quase tudo era incrível, nos juntávamos todas as noites para apreciar a refeição, comprada do bolso dele e produzida por algum agricultor desconhecido. Minha mãe sempre sorria, tínhamos algo bom para comer, um lar para morar e pessoalmente, ela tinha um homem para transar e conversar sobre poucas coisas de seu cotidiano. Sua vida se resumia em acordar, cozinhar, cuidar de nós e escrever romances clichês. Meu irmão mais velho, Alekzandr, sempre se espelhou em nosso pai. Se eu voltasse no tempo e dissesse que todos os sonhos que ele tinha não foram realizados, ele não acreditaria em mim e negaria com todas as forças o seu futuro catastrófico de hoje em dia. E sabe, eu só posso me lamentar.

Lembro bem dos sons que surgiam quase todas as noites do quarto de meus pais, eram agonizantes. Eu não entendia o que acontecia, mas meu irmão sim, ele entendia e escondia tudo para que minha visão sobre o nosso pai fosse intacta, trabalho perdido depois do ocorrido que marcou bruscamente nossas vidas. Íamos à igreja quase todos os dias. Me lembro de um certo dia, estávamos dentro da igreja, lembro-me muito bem de vê-la se ajoelhar no chão e uma lágrima fugir dentre as pálpebras para descer a pele macia, eu não entendia de fato o motivo dela rezar e gritar nas noites em que ele abusava do álcool. Meu pai era perfeito pra mim, até que um dia ele nos deu uma noticia momentos depois do nosso almoço de domingo: "Ficarei fora de casa por uns dias, tenho uma missão para cumprir e posso não voltar.", e sabe, foi foda para caralho ver minha mãe abraçá-lo de uma maneira que me tocou, bem lá no fundo eu senti o coração estremecer e meu irmão ficar cabisbaixo e segurar minha mão, ele me protegia de algo que eu não sabia.

Meu pai havia saído de casa para essa misteriosa missão, e desde que ele saiu, os gritos e barulhos misteriosos não existiam, não em sua ausência. E depois que esses dias de sossego se passaram, eu vi a porta se abrir bruscamente, era meu pai, estava muito estranho, seu rosto expressava algo que me transmitia tudo de ruim, menos segurança paterna. Meu irmão, que assistia qualquer desenho idiota, se levantou para ir abraçá-lo, mas foi empurrado pelo meu pai, certamente alcoolizado e o enxerguei ir em direção da minha mãe. E eu juro que meus olhos perderam a inocência quando o primeiro tapa foi dado na mulher que era esposa, escritora e dependente do homem que a bateu pela primeira vez na minha frente, bem diante dos meus olhos. Eu lembro de segurar o Alfonso, meu cavalo de brinquedo, lembro de gritar várias e várias vezes para que meu pai parasse, esse não foi o pior da coisa toda. Meu irmão correu para esmurrar o meu pai, tentou defender minha mãe como se um pequeno pintinho tentasse proteger a galinha de um jacaré. Eu chorei, muito, entrei em estado de choque, vi as mãos que me seguraram várias vezes no colo bater em alguém que cantava Hey Jude, dos Beatles, para que eu dormisse tranquilo nas noites de chuva. E sabe, o que meu irmão tentou manter tinha se tornado falho, meu pequeno mundo fez puft de uma hora para outra. Meu pai continuava a bater na minha mãe enquanto meu irmão o esmurrava sem muito efeito, eu apenas olhava e pedia para que ele parasse, mas..., parece que Deus depois de um longo tempo atendeu meu pedido de desespero. Ela estava quieta, meu pai estava sobre ela, ele começou a gritar mais e mais e nós dois sem entender o por quê, nos olhamos com medo do pior. Não importava mais o sofá vermelho e o carpete bege caríssimos, os jarros sobre a lareira e fotos com sorrisos falsos, o apartamento caro e raios o que fosse, meu pai estava chorando e minha mãe sequer parecia se mover. Foi quando ele se virou para Alekzandr, pediu mil desculpas e me olhou, se levantou para me abraçar e deixou meu irmão só, sem abraço ou toque paterno algum, deixou ele ver minha mãe quase desfigurada por socos, estava morta. Seu rosto estava virado para uma foto de nós quatro juntos, estávamos felizes de verdade, algo que era puramente verdadeiro, aquela foi a pior noite de toda a minha vida.

E depois de seu enterro, anos vagos se passaram, meu pai havia tomado outra postura: falava menos e desaparecia mais, vivia no quartel sabe lá fazendo o quê, nunca mais foi de meu interesse. Meu irmão havia se tornado um adulto e me abandonou, deixando que o tempo dissesse o que fazer da minha vida. Ingressei a escola militar e me propus a me tornar um soldado russo que, infelizmente, tomava ordens superiores do próprio pai, foi tempo o suficiente para que eu fugisse da minha vida na Rússia para ser o que sou hoje, um homem de aluguel com uma fé duvidosa por um certo tempo.

Sabe o que mais doeu enquanto minha mãe apanhava e Alekzandr escondia de mim? A minha visão sobre meu pai se quebrou, eu o considerava como herói, como meu porto seguro em uma zona de caos e por fim, ele fez o que fez, tudo por causa de seu pequeno cérebro equilibrado e umas garrafas. E de fato, a minha única meta de vida é colocá-lo atrás das grades pelo que fez com minha mãe vinte anos atrás e seguir com minha vida normalmente.

Eu sou Karlens Boskova, e se você achou essa carta no bolso de algum paletó mofando em sua lavanderia, saiba que eu fiz essa pequena carta para desabafar em um momento de embriaguez. Apenas siga lavando minhas roupas, enquanto vou atrás de caras idiotas como ele.

Ass: Karlens Boskova.


— Escrito por: iMazakenji

Uma Porção De ContosOnde histórias criam vida. Descubra agora