Anthrax e o Porquinho

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Voltando da escola, olho aquele moleque alto e de pé ainda assim enormemente desproporcional, calça de moletom, sem camisa, riso fácil:

– Vai aonde, vagabundo?

Carlinho! Tínhamos estudado juntos desde a primeira série, num colégio à beira da rodovia dos Tamoios, até o começo da (então) 8ª série. Ele tinha passado no vestibulinho do Senai pra fazer eletrônica, e o curso era o dia inteiro. Lá ganhou o apelido de Porquinho, porque quando ria fazia aqueles barulhos de porco. Logo, ficamos uns 2 anos sem papear – muito embora ele morasse no bloco acima da rua de casa.

– Vagabundo é o senhor, nessa vida mansa em plenas 2 horas da tarde!

E paramos pra trocar ideia como se não tivéssemos deixado de trombar. Eu era bolsista num colégio de boy da cidade, tinha perdido meu pai havia dias, então era tudo meio nebuloso: mezzo ódio, mezzo cegueira mesmo: eu tinha 15 anos. Ele estudava no Macedão, colégio estadual perto de casa, famoso pelo slogan "Macedão, Macedão, entra burro e sai ladrão!". Era um ano mais velho que eu.

Ele tinha se formado no Senai, estudava a noite e ficava vadiando o dia todo. Eu também não trabalhava, mas estudava de manhã. Não demorou para que passássemos as tardes juntos por aí, falando de meninas, vadiagem, bola e... Heavy metal! Carlinho foi o primeiro cara da minha turma a perder a virgindade, então tinha meio a aura de mito, comedor da turma do futebol. E era do Senai, barra pesada. Diziam até que era maloqueiro, um neologismo da época que nunca entendi direito. Pra mim, um bom amigo num momento foda demais.

Jogávamos bola todo dia na quadra atrás do Meirelles, um colégio estadual onde tempos depois íamos ficar monitorando as meninas, com uns eventuais sucessos aqui e ali. Mas foi no vôlei de areia que a gente era foda. Chegamos até a nos federar, jogamos um aberto aqui na cidade contra o geração de prata Montanaro – nem vimos a cor da bola. Íamos pro litoral aqui perto e desafiávamos as pessoas, fingindo perder no começo pra depois apostar e ganhar o jogo – o que rendia toda sorte de goró, geralmente.

E, como era formado em eletrônica, adorava montar som. Pegava rádios automotivos (Moto Rádio, haha) do carro do pai e ficava horas montando som, tudo com fios e auto falantes dados, achado na rua. Chegou a montar um conjunto com cinco caixas, com equalização manual e tal, tudo projetado e montado por ele. Era um puta som, e aí a gente ficava queimando fitinhas k7. Foi um cara que me apresentou muita coisa de metal mais extremo, porque um vizinho dele tinha discos pra caramba – coisa impensável pra jovens desempregados como nós.

Tínhamos favoritos, claro: And Justice for All, estréia do Jason Newsted no Metallica, Season in the Abyss, do Slayer e Anthrax: uma fitinha 90 que tinha o State of Euphoria e uns sons soltos que a gente fritava de ouvir. Antisocial, cara! "You're anti, you're antisocial", e a gente era bem escroto mesmo.

E o Anthrax era muito tema dos papos por 02 motivos: era a banda mais divertida das que a gente ouvia e o Joey Belladonna tinha saído da banda naquela época: a gente especulava quem seria o substituto e porquê ele teria saído. Acaba que o Carlinho ainda descolou alguns outros discos do Anthrax que a gente passava a tarde ouvindo. O Among the Living logo virou favorito, o Persistence of Time era sério demais. (Adendo: o Among the Living veio numa fita VAT sem nome. Fui descobrir o nome do disco mais de 15 anos depois, quando baixei a discografia dos caras e fui ouvindo disco a disco) Aí a gente achava que era uma das razões do Belladonna ter vazado: alguém queria virar adulto ali – e olha que a gente nem se ligava em letra, era mais na base do som mesmo e uma ou outra impressão, clip, refrão.

Eu almoçava, a gente trombava e ia jogar bola, voltava pra casa dele e ficava ouvindo discos e falando merda, tramando o que fazer a noite: nessa época eu fazia o terceiro ano, período noturno, então a gente barbarizava. Ele começou a frequentar minha casa direto, porque a mãe dele era crente e achava que eu era "má companhia", e aí a gente ouvia som o tempo todo. Nessa mesma época, o pai dele começou a ensiná-lo a andar de moto, então a gente fazia uns corres numa CGzinha vermelha. Aos poucos, o velho começou a liberar uma CB400 pra ele ir aqui e ali, e ele pirava.

Até que, num dia chuvoso, a gente voltou do fut, combinamos de trombar depois da escola pra irmos na casa de umas meninas que a gente saía, ele entrou, eu desci. Ele catou a CB e foi à locadora devolver umas fitas alugadas e, até hoje não sei direito como, bateu em algo ou alguém, voou, meteu a cabeça na guia: era março de 1993 e o filho da mãe estava sem capacete. Ficou internado no pronto socorro municipal como indigente até morrer, 05 dias depois. Dali a duas semanas ele faria 18 anos, ia tirar carteira de habilitação e a gente ia rodar o litoral na Marajó do pai, que ele tinha instalado um som animal pra gente ir ouvindo. Não deu tempo.

Morreu com 17 anos! Estudando pra fazer o tal "Senai Suíço Brasileiro" em regime integral pra fugir daquela casa onde ele era massacrado: pai alcoólatra e mãe evangélica! Fazíamos planos de eu visitá-lo em São Paulo, depois eu faria faculdade lá e a gente moraria junto. Iria ganhar grana pra caramba e viajar o mundo, doidaços os dois. Eu pirei, minha irmã pirou, minha mãe pirou: o cara era irmão, filho, parceirão. Puta senso de humor e ponta firme de qualquer treta. Eu joguei a carteirinha de federado de vôlei no lixo da sala onde ele era velado, depois da mãe dele me falar que eu era "o próximo, se você não abraçar Jesus". Foi uma dor que me deixou desorientado um período.

E acaba que demorei pra voltar a ouvir Anthrax. Eu não queria mais, porque a banda não seria a mesma. Bloqueei mesmo. Assim que ouvi o John Bush eu odiei, eles lançaram o Sounds of White Noise naquele mesmo 1993, e eu odiei. E, bem, é o disco que tem Only, que puta som! Mas eu não queria saber de ouvir Anthrax. A dor do amigo perdido não me deixava sequer sacar qual era a da banda – e o tempo foi passando.

Fiquei anos sem ouvir nada deles. Voltei na virada dos anos 2000, fanzaço da fase Bush. Não acreditei quando Belladonna voltou, achei uma idiotice dos caras, até ouvir o Worship Music pelas mãos de outro brother, o Criz. Enfim, motivado pela turnê do disco "Book of Souls" do Iron Maiden que passou pelo Brasil com o Anthrax abrindo, voltei a ouvir esses nova iorquinos com furor, e tudo voltou à minha cabeça. Tatuei o logo dos caras no braço esquerdo. A porra toda bateu forte, como um barato legal – uma saudade bacana, de um cara bacana. Uma baita saudade do amigo que se foi tão novo. E discos que não ouvia desde o começo dos anos 90 hoje ecoam fortes na minha cabeça e coração. Assim como a certeza de que existem camaradagens eternas.

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