Busão, linha 341, onze horas da noite. Sentado lá atrás, naquele banco logo depois do banco mais alto – não sei porquê, mas sempre gostei de sentar ali. Acho que é por ter menos gente olhando, pois o banco mais alto te esconde um pouco. Vai saber...
Fato é que ouvia Seasick Stevie e lia meu João Antônio. Absorvido pela leitura, nem percebi que o disco tinha acabado, quando comecei a ouvir vozes – e o papo me desviou da leitura. Como estava com fones de ouvido e livro aberto, as meninas jamais imaginavam que eu estava ouvindo a conversa. Duas negras muito bonitas. Ambas uniformizadas, saindo do trabalho.
– Vai passar o carnaval aonde?
– Ah, sei lá... Devo ficar pra cá, terminei com o Robson.
– Terminou???
– É... todo ano, perto do carnaval, ele começa a arrumar um monte de bobeira pra brigar. Aí a gente termina, ele volta na maior cara de pau logo depois, dizendo que pensou bem, que estava arrependido e que eu sou a mulher da vida dele. Decidi que 4 anos passando por isso era suficiente.
– Mas ele te adora! Você é boba, menina. Homem é assim mesmo... É só você se fingir de besta por uma semana e dominar o cara pro resto do ano! Ele te enche de mimos e presentes...
– (interrompendo) Só que eu não quero mimos e presentes! Quero respeito! Sem isso, ele que vá caçar vagabundas em qualquer lugar, azar!
– Você não gosta dele?
– Gosto mais de mim. E quer saber? A gente já tava parecendo aqueles casais que perderam o fogo, credo! Tenho 25 anos, só. Cansei de ser besta.
– E aí vai ficar sozinha?
Com a voz mais maliciosa daquele ônibus, a menina sussurra:
– Amiga, eu disse que ia ficar pra cá, não que ia ficar sozinha...
As duas explodem na gargalhada, a primeira se despede e desce do ônibus. Alguns pontos depois, a outra garota desceu, teclando furiosamente no celular, sem nem olhar pro resto das pessoas no ônibus, cantando algo que não captei. Quis que fosse Beatles, Blackbird – e é isso, era Blackbird. Enfim, ela tava falando com o Robson? Com algum outro amor? Com os pais? Bem, sei lá. Só sei que levou com ela a minha torcida. Uma garota trabalhadora que decide ser respeitada acima de tudo, nestes tempos tão bicudos, tem mais é que ser feliz. "Blackbird singing in the dead of night / Take these broken wings and learn to fly / All your life / You were only waiting for this moment to arise"...
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Viagens ao Centro da Mente
Short StoryHistórias curtas, reais ou não, meio reais ou não, irreais ou não, paridas pela cabeça de Rover.