Vinha caminhando pela mesma avenida, como sempre desde 2010. Toda quarta-feira, há 3 anos e alguns meses, ali é caminho. Onze horas da noite, onze e dez, show do intervalo, a gente se liga em você. A rapaziada e as meninas no bar, comendo e bebendo e vendo futebol. Dependendo do jogo, atravesso a rua só pra xeretar o placar.
Mas nesse dia tava um frio de lascar, não quis saber placar de nada. O Flamengo levara o gol de empate quando ainda estava no prédio onde leciono e isso não costumava acabar bem. E esse frio, brrrr...
Após passar a avenida maior, vi o vulto. Bicicleta, como toda quarta, ali havia de monte. Mas esse cara vinha sozinho e não parecia ter medo de mim. Ao contrário, veio freando e sorrindo. Piu Piu?
– Graaaande garoto!
– Piu, você?
Piu Piu foi um cara que estudou comigo num curso técnico, anos atrás. Ficamos amigos por que ele descobriu que eu gostava de Poe. E eu amava Poe, embora só tivesse lido um "Histórias Extraordinárias", capa dura, que minha avó me deu pelo Círculo do Livro, até então. E acaba ficamos amigos durante o curso todo e depois também.
Mas o grande lance não é nem esse. É que o Piu Piu foi um amigo cuja notícia da morte eu já recebi 2 vezes, ambas mentirosas. A primeira no fim de ano, assim que nos formamos, para encontrá-lo num ponto de ônibus meses depois. A outra foi por uma colega de sala que encontrei-o num velório (!) do pai de um amigo comum. E aí eu trombava ele do nada, falava dessas fitas e ríamos. Continuamos a nos trombar ocasionalmente, em espaços de tempo cada vez maiores. E sempre era visível a alegria dele em me ver.
– O que anda fazendo, garoto? – Ele só me chamava de garoto. Eu com barba branca e ele me chamando de garoto. Mas acho que ele faz isso porque não lembra do meu nome. Tudo certo, eu também não lembro o dele. Éramos, como sempre, Piu e Garoto.
– Tamo aí, Piu. Correndo atrás.
– Sei como é. Pô, queria tanto te ver, faz tempo que a gente não se fala...
– Verdade, cara. A gente tem que se falar mais. Pô, você tem Facebook?
– Ah, pra mim essas coisas não adiantam, garoto.
– Sei como é. Ih, olha lá a chuva vindo direto pra cá...
– Garoto, essa chuva é pra lavar a sua alma. É um presente meu pra você.
O Piu tinha esses papos doidos, cósmicos. Muito de ciências da religião (e Janis!) que eu conheço devo a ele.
– Pô, Piu, você me aparece depois de um tempão e me dá uma chuva de presente?
– Garoooto, meu velho, eu sei que você se liga nesses papos, sei disso. Olha pra chuva, cara. Olha se não é redenção isso aí!
E eu entrei numas de olhar mesmo. E não era bem uma chuva, era uma névoa, uma neblina. Densa, parecia se dissolver na atmosfera antes de tocar o chão – e aí eu vi também que o chão estava completamente seco.
-Mano, olha só, mó chuva e o chão tá se... Piu?
Nada. Nem pra cima, nem pra baixo, nem na outra rua.
E aí eu tive a certeza que o Piu se fora pela terceira vez. Agora, pra valer. Trocamos a última ideia e pronto. Como diria o corvo, "nunca mais".
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Viagens ao Centro da Mente
Cerita PendekHistórias curtas, reais ou não, meio reais ou não, irreais ou não, paridas pela cabeça de Rover.