A ladeira, a névoa e o vôo

6 0 0
                                    


Lá vinha ele, descendo a mesma ladeira dos últimos 05 anos. Cansado, como nos últimos 05 anos. "Caminhando a essa hora da noite?" era a frase que ele mais ouvia. E explicava, calmamente, que era o único horário em que ele não precisava correr de um lado pro outro (sabe como é vida de professor, né?), então era o horário que ele pensava nas coisas dele. O trabalho, a família, os amigos, os parentes, os projetos... Era hora de organizar a cabeça. Ou de bagunçar ainda mais. E nessas de ficar meditabundo, a cabeça começou a rodar coisas mais ou menos assim:

– Quantos alunos e ex-alunos meus já devem ter me visto várias vezes descendo essa ladeira?

Falar sozinho era hábito de infância, jamais perdido. Caminhar longas distâncias também. E ele se preocupou em ser visto, depois de tanto tempo, mesmo sabendo que, naquela hora da noite, os poucos carros que ali passavam não iam se importar com um transeunte de mochila nas costas.

– Eles devem pensar "mas que miserável, faz a mesma coisa, trabalha há tanto tempo, nem grana pra comprar um carro teve, que perdedor" – e tomou um gole d'água. Quantos, nestes anos todos?

E Bono sussurrando nos ouvidos que "You don't know how you took it, you just know what you got". Naquela hora da noite, poeira dos carros, névoa que sobra de um dia todo alucinado, ele riu. Alto. E começou a cantar junto com o U2:

"Oh, no, don't be shy

You don't have to go blind

Hold me

Thrill me

Kiss me

Kill me..."

E lembrou que era opção. Caminhar na volta pra casa era a única hora do dia em que ele era ele, apenas. Mais que uma opção, uma convicção. Um grito de liberdade. E riu de novo, dessa vez de canto de boca. E continuou. Passou um ônibus, barulhento, lotado – e ele sentiu-se feliz por estar ali, sozinho. E a PJ Harvey avalizava:

"He's seen me

So pretty."

E a névoa ficava maior e maior. A ponto de ele se perguntar se realmente estava no caminho certo, porque não via mais nada. "Kiss From A Rose", Seal, linda. E ele viu a Dutra de cima. Estava voando, de fato. Mas não tinha asas (checou!), como era possível?

Voltou a lembrar, agora com mais sarcasmo que qualquer coisa, das opiniões dos outros. E entendeu que era um outsider, um gauche. Tudo que ele ganhou naquelas caminhadas, dinheiro nenhum compraria. Aí entrou a blueseira melancólica do Mazzy Star e o que era voo virou explosão – alguém prestou atenção? Nota por nota, em clima de garagem, até a hora em que o slide rasgou. Voou ainda mais alto, riu ainda mais alto. E foi-se feliz, por ter escolhido ser livre, ainda que no final da noite.

Viagens ao Centro da MenteOnde histórias criam vida. Descubra agora