Galinha

61 7 11
                                    


ereuss

Galinha

E. Reuss

Renuncie ao passado e limpe sua mente de memórias e pensamentos indesejados com Rememorize™! Visões de criaturas estranhas e insistentes podem ocorrer, mas não se preocupe, elas são um preço baixo a se pagar pela paz interior.


Mesmo sob os efeitos de uma droga ainda não testada em humanos, eu falava sobre as coisas de sempre enquanto guiava a caminhonete: que os coelhos nasciam cegos, que o pênis do porco tem formato de espiral, que dá pra treinar um ganso como se treina um cão pastor... essas coisas.

Terezinha sorria ao meu lado sem se incomodar com a luz do sol. Os olhos fixos em algo a sua frente, talvez o asfalto ou a névoa mental provocada por uma overdose de glicose depois de passar horas chupando cana.

Olhei para os seus lábios inchados, o sangue seco no canto da boca, o hematoma com um núcleo amarelo esverdeado na bochecha, e por um minuto tínhamos dez anos de novo e estávamos sentados na caçamba da caminhonete, meu pai dirigindo enquanto chupávamos cana e jogávamos os restos nas placas de sinalização da estrada.

Sob seu braço esquerdo, a única posse que ela havia trazido consigo: a almofadinha estropeada e fedorenta que viveu sob sua bunda durante dez anos.

De repente, vi o seu braço se retesar violentamente e agarrar o volante da caminhonete. Olhei em seus olhos e eles gritavam, e então o baque abafado de algo se chocando contra a lateral do carro.

"Que foi?" Eu gritei e pisei no freio.

Levamos uns cem metros para parar, milhares de peças vibrando e chiando alucinadamente enquanto o carro deixava um rastro negro de borracha queimada no asfalto.

Terezinha ainda segurava o volante e procurava sabe-se lá o que no retrovisor direito do carro. Em um momento de desespero, ela começou a balbuciar "bó", como se gaguejasse o início de uma palavra. Bolas, bota, bosta?

Olhei para sua mão, que dizia: Cachorro.

Por causa de uma lesão neurológica, seu cérebro não fazia a mínima ideia de como produzir sons com a boca. Claro, com exceção de uma sílaba, que ela falava fluentemente desde os seus dois anos: bó.

Por isso, pontos de exclamação viravam sobrancelhas arqueadas e olhos arregalados. Animais eram imitações cômicas em pequenos teatrinhos que sempre acabavam com cotoveladas em cabeças desavisadas. Falar sobre emoções era enxergar no seu rosto a sutileza de algumas expressões humanas, que às vezes se diferenciavam entre si apenas por um meneio na cabeça ou uma inclinação no queixo.

Dava ré pelo acostamento da BR-101 com o braço apoiado nas costas de Terezinha, olhando pela janela traseira o corpo do cachorro jogado para fora da estrada pelo para-choque enferrujado da Ranger 95 que eu e Terezinha chamávamos de Paçoca.

Para Terezinha, todas as coisas, inanimadas ou não, mereciam um nome.

Os carros passavam ao nosso lado a toda velocidade, as cabeças atrás dos vidros se virando para nós numa fração de segundo antes de se dissiparem na névoa do nosso cano de descarga.

Parei o carro ao lado do corpo do cachorro estirado em uma poça de sangue. À distância, vi um homem se aproximar vindo de lugar nenhum, carregando um saco preto na mão direita. Ele era idoso, vestia uma camisa aberta e uma bermuda que algum dia fora branca, a pele queimada pelo sol da cor de amendoim torrado.

Ecos 8Onde histórias criam vida. Descubra agora