Sob a minha carteira

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Sob a minha carteira


Antônio Roberto Szabunia

Andava eu pelos 15 anos, aulas no antigo Científico pela manhã, período vespertino para estudos, tarefas, campinho, leitura... Minutos antes, acabara de ler um gibi de ficção científica, uma coletânea de histórias de autores variados. Uma delas me chamara a atenção: o tema era uma porta dimensional. Creio ter sido o primeiro capítulo da saga "A Torre Negra", que um jovem estudante chamado Stephen King publicava em quadrinhos.

Lia, como sempre, sentado em minha carteira escolar, adquirida por meu pai na Móveis Cimo, onde ele trabalhava. Encerrada a história, fiquei matutando um tempinho, olhando pela janela e digerindo o enredo.

Ocorreu-me, então, uma brincadeira solitária – na média adolescência, preservava o espírito infantil. Escolhi uma pistola Colt no meu arsenal, cópia perfeita da original utilizada na Segunda Guerra, meti-a no cinto da jeans e, com base na HQ lida pouco antes, levantei o assento da carteira, por ali passando, como se fosse a entrada de um alçapão.

Passei por baixo da carteira, fechei a "porta do alçapão" e me vi no meio do meu quarto, fantasiando ter atravessado um portal dimensional, tal como o pistoleiro Roland. Era simplesmente meu quarto, como sempre, mas...

Senti um peso nos ombros, como se um imenso cobertor ali tivesse sido colocado. A tarde ensolarada pareceu se tornar silenciosa e sólida, sem sons externos, sem reverberação, sem "vida" (King de novo, mas "Fenda no Tempo" só viria nos anos 90). Empunhei o Colt, fingindo puxar a trava como via nos filmes e encarei a porta do quarto. A maçaneta permanecia imóvel, como tudo o mais ao redor. Quis olhar pela janela, na expectativa de algum movimento lá fora, mas não me atrevi a tirar os olhos da porta. Não havia ruído algum, era como se eu fosse o último ser humano sobre a face da Terra (sim, já havia lido "Eu Sou a Lenda", de Richard Matheson, e assistido "The Omega Man" com Charlton Heston).

Comecei a tremer, suando frio com a ansiedade. "Mas, pô! – pensei – Tô no meu quarto, em Rio Negrinho."

Ao ouvir um levíssimo som do lado de lá da porta ("imaginassom"?), fui rápido: tornei a enfiar a pistola no cinto e recuei dois passos até bater a bunda na carteira. Enfiei-me por baixo dela, levantei o assento-portal e subi. Baixei e fechei o alçapão, desci para o chão, saquei novamente o Colt e fiquei alguns segundos ali, provavelmente pálido, tremendo de medo. Ao certificar-me de que não fora seguido, improvisei algum objeto à guisa de chave, lacrei o portal e me arranquei lá pra fora.

O mundo voltara ao normal: pássaros se esgoelavam, no rádio Iglesias louvava Manuela, Babka se entretinha nas tarefas domésticas, na rua a piazada jogava pêca... Nunca tive coragem de relatar a aventura interdimensional. Mas também jamais levantei novamente o assento da carteira.

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