Arte

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Arte


Daniel Cerato Germann

Homem expressa sua obsessão pelo liso cortando todos os pelos de uma cabeça humana. Ele é um pai de família amoroso obrigado a esconder o que considera sua arte.



A lâmina tensionava a pele em sua passagem delicada, produzindo um ruído viscoso na remoção da espuma e dos pelos. O cabo amarelado dançava ao compasso da mão pelas curvas do rosto. Os olhos buscavam as feridas, os nódulos, as imperfeições, e planejavam o caminho ótimo para um corte sem vestígios: cada pessoa carrega no corpo uma história, que deve ser respeitada para um resultado perfeito.

Descansou a navalha e admirou sua arte. O rosto que lhe emprestara a tez resplandecia agora macio e imberbe. Mantinha uma indiferença desconcertante; uma pena que não pudesse esculpir também expressões. Seria lindo se pudesse ditar sensações e sentimentos, e petrificar um instante de gozo – o júbilo da conquista, a alegria do primeiro filho – para só depois arrematar o exterior. Ou quem sabe a humilhação do engodo, as lágrimas da desilusão, pois na dor também existe beleza. Mas chega de devaneios, o artista trabalha a pedra que tem.

Pincelou magistralmente uma dose de espuma nas sobrancelhas do rapaz. Operou, a seguir, uma cirurgia precisa: raspou-as todas e nada mais. Fez um favor àquele moço anulando o olhar de cólera que ele trazia consigo, pois nem toda raiva aparente reflete uma alma intranquila. Isso havia aprendido com Mauro, grande amigo, irmão verdadeiro. Mauro tinha aquele olhar.

Matavam aulas juntos pra ir namorar as enfermeiras no Campus Saúde. Bons tempos aqueles da faculdade. Foi nessas andanças que acabou num laboratório de anatomia, acompanhado de uma moreninha danada que instigava safadezas sobre as mesas de inox. Foi lá que viu Adão. Nunca soube seu nome verdadeiro, mas julgou um apelido apropriado para aquele que fora o primeiro ser humano a lhe chamar atenção para a humanidade. Os olhos perdidos, fitando a eternidade, os lábios entreabertos, buscando um sussurro, o semblante suave, liberto das preocupações. Lindo. Poético. Apaixonou-se perdidamente, tanto quanto um homem heterossexual poderia apaixonar-se por outro. Adão representava a essência humana, o vulto sincero por detrás da máscara social, espetacularmente exposto por não possuir um único pelo no corpo. Tudo o que havia para ser visto estava ali. Assim nascia sua obsessão: a busca pela essência de Adão. Assim nascia sua arte.

Esfregou os restos no avental e seguiu a empreitada. O cabelo foi sumindo da nuca até o topo da cabeça, depois a franja, uma careca perfeita. Faltava apenas o contorno das orelhas, um trabalho cuidadoso para que não machucasse a pele. Um mísero corte, um arranhão, e a obra pereceria antes do tempo. O sangue é vida, é jovialidade, energia. Não se pode deixar a vivacidade escapar, pelo contrário, devemos aprisioná-la e abrilhantá-la. Pôs as mãos na cintura e apanhou uma gota de suor que lhe corria a testa. Deus, como era bonita a criação quando admirada em sua forma limpa e plena, verdadeira; alegrava-o poder ser ele o instrumento dessa transformação. Seria essa sua obra-prima?

Precisava agora da tranquilidade celestial para concluir. Inspirou, expirou, devagar, sempre. Com uma tesoura, cortou os diminutos pelos que cresciam dentro do ouvido esquerdo, respeitando as dobras de pele em incursões progressivas, corte sobre corte, até que mais nada fosse percebido. Seguiu-se o ouvido direito, depois as narinas; com muito cuidado, os pelos desapareciam. Por fim, deu cabo dos cílios: firmou o ângulo da mão numa postura estudada e foi contornando a curvatura dos olhos, num progresso pausado, girando o pulso a cada avanço. Estava terminado.

Batidas na porta. Sobe a escada apressado, pulando de dois em dois.

– O-ii!

– Oi, meu anjinho. Veio ver o papai?

– Uhun! – concordou.

– O papai tá terminando, tá? Já tá indo brincar com a Juju, tá? Quer botar o vídeo da galinha?

A menina assentiu fervorosamente.

– Então dá beijo aqui. Huun, que beijo bom! Vai, vai indo que eu já vou lá!

As passadas perdem-se no fundo do corredor.

Voltando ao porão, dá uma última olhada em sua obra antes de abrigá-la dos olhares censuradores. O rosto perfeitamente liso, como todos deveriam ser, exultando os traços de vida esculpidos pelo tempo, agora oferecidos em sua máxima apresentação. Abaixo dele, o suporte metálico respingado de vermelho-sangue e adornado pelos tendões cauterizados que pendiam como tentáculos. O corpo esquartejado ao fundo completava a paisagem perfeita, metáfora sábia de que o inútil e o feio devem ser destruídos e o belo, sobressaltado.

A arte nem sempre é compreendida.

Ecos 8Onde histórias criam vida. Descubra agora