A matança do porco

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A matança do porco



Renato K. Silva

O conto a seguir é um texto híbrido que mistura ficção e autobiografia. Fui verosímil em alguns casos e artificioso em outros... enfim, é uma narrativa que tenciona os limites afetivos entre os bichos, sejam eles bípedes ou não.



Todas às quintas-feiras, no início da noite, juntavam-se aproximadamente umas vinte pessoas para acompanhar a matança do porco. A ação ocorria na casa de número 323, da rua 17, aqui na Cohab.

Íamos juntos, meus amigos e eu, acompanhar a matança do porco após a indefectível pelada do fim da tarde.

Acredito que éramos atraídos pela excepcionalidade do evento. Morávamos entre as ruas 17 e 18. Mesmo não querendo presenciar o martírio do animal por mãos humanas, éramos obrigados a ouvir de longe o som histriônico do porco, no primeiro momento, para não ir à faca; no segundo momento, na agonia do esvair-se em seu próprio sangue.

Então, se era para ouvir e não ver o sofrimento do suíno, mais vale presenciar o triste espetáculo com som e imagem. Além do mais, para nós meninos da periferia habituados com as inúmeras faces da desgraça humana, a matança do porco servia a propósitos de consolidação de gênero e do espírito gregário, pois estávamos virando "homens" e esta espécie, como nos ensinaram, não abandona o grupo.

Por volta das 19h chegava Pinininho com mais dois homens que nunca sabíamos ao certo seus nomes porque sempre alternavam-se, não estavam fixos na empreitada como o primeiro. Pinininho chegava com uma corda escura, igualzinha à da roldana da cacimba de d. Nair, lá da rua 21, e duas peixeiras embainhadas nos cós da bermuda.

O pai de Tatá, um menino que sempre queria andar conosco mas não deixávamos porque era bem mais novo e seu pai era comerciante e filho de comerciante é cheio de frescura, sr. Adelson do Fiteiro, é que sedia o quintal de sua casa para a matança do porco.

Era um quintal enorme, havia uma frondosa mangueira que dava sombra e manga o ano inteiro, sobre ela um pequeno abrigo e uma calha feita com aqueles tonéis azuis de produto químico cortado ao meio com a parte côncava virada para cima. Nesta calha jogavam a lavagem para os porcos. Haviam três pontos de coleta de lavagem no bairro. O primeiro na rua 24; o segundo na 21 e o último na rua 8. Talvez por isso os porcos eram sevados de maneira muito rápida. A rotatividade de suínos no quintal da casa de sr. Adelson era grande.

A coisa parecia inacreditável, era Pinininho chegar ao quintal: os porcos entravam em pânico. Trocavam a tradicional onomatopeia: oinc, oinc! por urros inenarráveis. Era um som cruciante, oxítono cuja desinência era como o som de faca sendo amolada em pedra sabão.

Pinininho puxava a doze polegadas que levava consigo do lado direito da bermuda e colocava-a sobre a mesa. Com a corda escura em punho, ele esperava os dois homens controlarem o porco que seria abatido. Os demais estavam trancafiados. O pai-do-chiqueiro era o que mais fazia barulho, parecia não concordar com a covardia que estavam fazendo com um dos seus.

Após os dois homens mobilizarem o porco, Pinininho vinha por trás do animal, com uma das pontas da corda já amarrada sobre um forte galho da mangueira, e atava as duas patas traseiras do porco com um nó volta do fiel. Em seguida suspendia-se o animal que ficava debatendo-se no ar preso com as duas patas traseiras na mangueira.

Neste instante, os gritos do porco poderiam ser ouvidos em uma propagação semelhante à de uma pedra ao ricochetear em espelho d'água, formando sucessivos círculos que aumentam de tamanho na relação: tempo-espaço.

Antes dos homens concentrarem-se exclusivamente no ritual do abate, eles deixavam uma lata grande com água sobre duas pedras com estacas de madeira por baixo. Ateavam fogo e esperavam a água ferver. A duração da fervura era o tempo suficiente para matar o animal. Com a água fervendo, eles jogavam sobre o cadáver do bicho no intuito de lavar a pele das impurezas do chiqueiro.

A doze polegadas de Pinininho era desembainhada.

Os dois homens seguravam as patas dianteiras do porco que, neste momento, escumava tal sabão em pó em contato com água clorada. Antes, eles punham uma bacia de alumínio sob o corpo irrequieto do suíno.

Pinininho mirava a jugular do animal e desferia o golpe de cima para baixo segurando-lhe a orelha direita para que a cabeça não escapasse à lancetada.

Quando o golpe não acertava o destino desejado, Pinininho dizia para plateia, em tom de admoestação: "Tem alguém aí com pena do bicho, por isso tá ruim de morrer".

Uma vez acertado o golpe, de imediato, os dois assistentes de Pinininho suspendiam a bacia de alumínio para aparar o sangue quente que escorria do animal. O sangue era vendido para sr. Elias da Granja que o revendia fresco ainda naquela noite. Com o sangue, as mulheres do bairro preparavam o chouriço, o sarapatel e o sangue à vinagrete.

Antes de morrer, o corpo do animal já havia sido loteado. As partes já tinham dono. Alguns iam buscar na hora, os demais, recebiam em suas residências as frações correspondentes.

Lá em casa e na casa de minha avô materna não comia-se porco. Não por nenhum tabu religioso mas porque minha avô e minha mãe achavam suspeitas as condições higiênicas dos porcos abatidos.

Após Pinininho sair junto com os outros dois homens carregando, os três, as partes recém-decompostas do corpo do suíno, pairava um silêncio de luto na rua 17. Os outros porcos calavam-se, a rua quedava-se muda e até a mangueira sossegava o farfalhar de suas folhas.

Parece que toda a vila sentia o sumiço do animal. Parecia que seus gritos até nos estertores continuava a ecoar dentro de cada um de nós. Um grito de morte anunciada é o mais difícil de esquecer: câmara de ecos a ressoar na memória. A infância pode guardar sons inenarráveis que gretam-se nas paredes de outrora e ecoa no presente como se fossem um diapasão metafísico e violento.

Naquele tempo, os porcos da rua 17 morriam com uma tenacidade que é sinônimo de amor à existência, maior do que muita gente que víamos sangrar até morrer com a boca aberta nas canaletas da vila, pedindo água e clamando para que o algoz voltasse para concluir o serviço que, para todos efeitos de testemunhas oculares, era coberto por uma implacável e inexorável Lei do Silêncio.

Os porcos, como se vê, estavam acima da Lei do Silêncio.


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